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O lar que criamos com outras mulheres

O lar que criamos com outras mulheres

Quando me mudei de Teresina para o Rio de Janeiro, eu sabia que ia sentir falta de muita coisa: do cheiro do café passado às 16h na cozinha da minha mãe, das conversas na calçada da casa da minha avó, das visitas à minha melhor amiga e seus cachorros, do calor sufocante que, na época, eu jurava que odiava.

Eu sabia que, além disso, eu também iria perder momentos importantes, como aniversários, dias das mães e dia dos pais. Apesar de estar ciente do quanto esse processo não seria fácil, minha vida precisava acontecer em outro lugar.

Foi então que eu notei, que no fundo, o que mais pesa quando a gente vai embora não são os espaços em si, pois temos a possibilidade de revisitá-los e experienciá-los de outra maneira. Na verdade, o que mais pesa mesmo é gente. E gente não cabe em mala.

No começo, tentei manter tudo o mais parecido possível com a vida que eu tinha antes. Me tornei quase uma “repórter” da minha própria rotina: mandava mensagens o tempo todo para os meus pais, irmãos e amigos, fotos de qualquer detalhe na rua ou em casa, seja do café que tomei sozinha, do livro do doutorado que comprei e que veio rasurado, ou da vista da janela do novo apartamento.

Por outro lado, eu também fazia questão de saber deles, o que estavam fazendo, o que tinham jantado hoje e quais seriam os planos do final de semana. Como se, de alguma forma, isso ajudasse a reduzir a distância e os trouxesse para mais perto de mim. E ajudava, de certo modo, mas também deixava claro que não era a mesma coisa.

Eu, que sempre tive imensas dificuldades em manter relações à distância, precisei arranjar formas de me fazer estar presente mesmo na ausência física. Foi necessário um jogo de cintura e preparo emocional para compreender que, infelizmente, ainda não é possível ocupar dois espaços ao mesmo tempo. Não dava para viver com um pé no Piauí e o outro no Rio de Janeiro.

Nesse caminho, percebi que não é apenas sobre investir na manutenção de cada relação, mas que é preciso encontrar formas múltiplas de fazer ela sobreviver. A mudança nunca é apenas geográfica, pois quando se trata de território, o passo não é apenas material, mas, sobretudo, simbólico.

Quando a gente muda de cidade, também mudamos um pouquinho por dentro. E, quando retornamos à fonte, percebemos que lá eles também mudaram. O cabelo da minha avó ficou ainda mais branco e brilhoso, minha mãe já não usa mais as mesmas roupas, e minha melhor amiga agora têm até um novo cachorro — que eu ainda não conheço.

Quando migramos e transformamos os nossos laços afetivos, abrimos caminho para uma mudança muito mais profunda, sendo esta capaz de fortalecer os laços, quando compreendemos que assim como qualquer outra relação presencial, é necessário que haja cuidado, dedicação e simetria.

Mulheres com roupões coloridos abraçadas
Foto de Vonecia Carswell/ Unsplash


Para nós, mulheres, talvez esse processo seja ainda mais profundo e complexo, porque nossos vínculos não são apenas sobre convivência, pois eles se alimentam de intimidade, trocas bastante particulares, e de saber ler no olhar quando a outra não está bem.

Essa forma de conexão vai além do que o espaço físico permite e se torna um exercício constante de cuidado, confiança e presença. As redes e núcleos estabelecidos nos laços de afeto se mostram, para muitas mulheres, ainda mais essenciais do que a ideia tradicional de família.

Considerando que os laços familiares nem sempre são acolhedores ou seguros para algumas de nós, a amizade entre mulheres passa a se tornar um espaço de sobrevivência e lucidez. Para mim, pelo menos, é como me colocar nos eixos novamente após um período de atordoamento. É reencontrar um alinhamento dos astros dentro de mim.

Construir e fortalecer essas redes exige mais do que a simples passagem do tempo, pois passa pela nossa compreensão de afeto — um cuidado que respeita o espaço da outra, que reconhece a importância de estar disponível, mas também de preservar limites e lidar com as diferenças.

Não se trata de estar sempre junto fisicamente, mas de garantir que a presença emocional seja real e constante. Nesse cenário, esses vínculos entre mulheres operam como pilares que seguram o nosso emocional, que ajudam a reconstruir a autoestima e que dão força para seguir enfrentando tanto os dias difíceis quanto celebrando os dias mais fáceis. E isso se dá porque há um lugar de identificação e solidariedade que só acontece entre nós. É como se houvesse uma espécie de pacto, um acordo tácito, em que é permitido apenas ser… você.

Essas mulheres que escolhemos para estar ao nosso lado são as guardiãs das nossas histórias, testemunhas das nossas lutas e das nossas vitórias. Elas nos lembram que não há barreira espaço-tempo que não possa ser rompida, ou ao menos, fragilizada, pois como cita Ana Suy, a amizade é a modalidade de amor que mais salva vidas.

Além disso, essas redes se formam e se fortalecem a partir da vulnerabilidade compartilhada, na qual não sentimos vergonha ou constrangimento em expor, pois do outro lado, sabe-se exatamente o que está sentindo.

É na permissão para ser vista em nossas fraquezas que as conexões verdadeiras acontecem. O acolhimento e a empatia que recebemos das outras mulheres nos devolvem o poder de continuar, de reconstruir, de criar novos caminhos.

Além disso, essas redes também são espaços de aprendizado e de crescimento, pois nos inspiram a questionar padrões, a romper ciclos, a construir um futuro onde o cuidado mútuo e a solidariedade sejam prioridades.

Esse caminho só pode ser feito em conjunto. E é justamente o olhar de quem vem de fora, mas que sempre esteve por perto, que deixa esse processo menos doloroso e por vezes, mais bonito, mesmo que doa, porque ele nos ensina que existe a oportunidade de crescer com aqueles e, sobretudo, aquelas, que sabem exatamente a hora de dizer “amiga, acho que aqui você tá errada”.

O que isso nos diz?

Essas conexões verdadeiras nos dizem e nos lembram que, mesmo quando a família ou o núcleo principal tradicional não oferece o acolhimento esperado, nunca estamos sozinhas, pois temos umas às outras.

Além disso, nunca é demais lembrar que família é um conceito elástico, pois tem a que nasce com a gente e a que a gente constrói no caminho. Ambas importantes, cada uma com seu papel. E, no fundo, todas elas fazem parte da nossa história.

Hoje, sinto que vivo entre dois mundos: o meu ponto de partida e o que construí. Teresina continua sendo o meu cais, a cidade que formou meu jeito de ver a vida; e o Rio de Janeiro se tornou um outro tipo de lar, onde eu consigo visualizar outras configurações de família possíveis.

Aqui, encontrei outras casas, outras conversas de madrugada, outros abraços que também me pertencem e que me fazem construir essa nova percepção de casa, antes jamais acessada. Foi aqui também que aprendi a dar forma pra tudo que eu quis pra mim, pois quando precisamos construir algo do zero, colocamos um pouquinho de nós a cada movimento realizado.

A saudade continua, mas agora ela toma outros formatos, sendo estes, mais gentis e carinhosos e, por vezes, menos doloridos. Seja nas visitas surpresas, nas videochamadas, nos Natais compartilhados ou nos encontros no meio do mapa, é lá que a saudade opera como uma própria figura da amizade.

E ser amiga da saudade é um verdadeiro presente. É sentir falta do que ficou e, ao mesmo tempo, se encantar com o que encontrou. Essas relações, quando cuidadas, viram laços que não dependem de CEP.

E, com o tempo, você percebe que é possível criar um senso de casa em mais de um lugar, porque casa é onde nosso coração está. E se meu coração está com as minhas pessoas, é exatamente assim que a moradia se faz em mim.

No fim, o que nossas redes femininas mostram é que pertencimento e apoio não dependem de laços sanguíneos ou de tempo de amizade. São escolhas que fazemos, gestos que repetimos, presenças que oferecemos. E é justamente essa escolha de se apoiar, de se fortalecer em grupo, de resistir juntas, que faz toda a diferença para que a gente não só sobreviva, mas floresça em qualquer lugar onde a vida nos coloque.

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