Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Morro do Livramento, na zona portuária do Rio de Janeiro, então capital do Império, em 1839. A família de sua mãe, Maria Leopoldina Machado da Câmara, era originária dos Açores e chegou ao Brasil nos anos finais da colônia.
A biografia de Machado de Assis
Seu pai, Francisco José de Assis, era de família descendente de negros africanos e brancos europeus. Ainda na infância perdeu uma irmã e, anos depois, a mãe. Seu pai faleceu tempos depois de um segundo casamento, com a lavadeira Maria Inês da Silva. A ambos, pai e mãe, dedicou sua primeira coletânea de poemas, “Crisálida”, publicada em 1864.
A essa altura, Machado de Assis já havia iniciado seus estudos numa escola pública e se interessava por livros. Auxiliava nas missas, tendo o padre tornado-se seu mentor em latim. O francês, por sua vez, estudava com um padeiro imigrante durante a noite. Em 3 de outubro de 1854 teve publicado seu primeiro soneto, na edição 103 do “Periódico dos Pobres”:
No ano seguinte publicou mais dois poemas no “Marmota Fluminense”, do tipógrafo e jornalista Francisco de Paula Brito, antes de ser contratado, aos dezessete anos de idade, pela Imprensa Nacional, onde se tornou protegido do escritor Manuel Antônio de Almeida, autor de “Memórias de um Sargento de Milícias”. Nesta época, escreveu uma ópera com libreto de sua autoria, “Pipelet” e, em seguida, outro - “As Bodas de Joaninha”, ambos um fracasso de crítica e recepção do público.
O jornalista e político Quintino Bocaiúva levou Machado para o “Diário do Rio de Janeiro”, onde escrevia sobre teatro, ofício que o levou a se aprofundar no teatro grego e na obra de Platão, frequentando também as rodas sociais com nomes como José de Alencar (com quem aprendeu inglês) e Joaquim Manuel de Macedo. Foi em 1867 que se tornou diretor-assistente do Diário Oficial, tornando-se um burocrata em ascensão. Machado, nascido no morro, passava a morar no Catete - passando antes por São Cristóvão, Santa Teresa, Lapa, Castelo e Laranjeiras.
Machado e Carolina
Carolina Xavier de Novais - crédito: IMS
Em 1869, Machado de Assis conheceu Carolina Augusta Xavier de Novais, irmã de seu amigo Faustino Xavier de Novais. Ela rapidamente despertou o interesse de muitos, inclusive de Machado, que se encantou por sua beleza e simpatia. Apesar da oposição dos irmãos de Carolina ao relacionamento devido à origem mestiça de Machado, ambos se casaram ao final do ano e ficaram juntos por 35 anos, até a morte dela em 1904, um baque enorme para Machado. Foi um amor marcado por cartas apaixonadas e um profundo respeito mútuo. Carolina, uma mulher culta, apresentou ao marido grandes clássicos da literatura portuguesa e inglesa, e, segundo relatos, revisava seus textos durante suas ausências, exercendo uma influência significativa sobre sua escrita.
Querida! Ao pé do leito derradeiro,
em que descansas desta longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração de companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
que, a despeito de toda a humana lida,
fez a nossa existência apetecida
e num recanto pôs um mundo inteiro...
Trago-te flores – restos arrancados
da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados;
que eu, se tenho, nos olhos mal feridos,
pensamentos de vida formulados,
são pensamentos idos e vividos.
(“A Carolina”, soneto de Machado escrito após a morte da esposa)
Após a morte de Carolina, Machado foi se tornando cada vez mais recluso, mas não menos produtivo, publicando romances como “Esaú e Jacó” (1904) e “Memorial de Aires” (1908), além de “Lição de Botânica”, sua última peça de teatro (1905). Sua saúde foi piorando, não apenas pela epilepsia, mal do qual sofreu durante toda a sua vida, mas também por uma úlcera cancerosa na boca, que o impedia de se alimentar direito.
O adeus de Machado de Assis
Imagem: Cortejo de Machado saindo da ABL
Machado de Assis morreu no dia 29 de setembro de 1908, em sua casa, no Cosme Velho, cercado de amigos e admiradores. Há um relato de que, a certa altura, um jovem desconhecido adentrou a casa e insistiu em ver Machado que, incomodado com o burburinho, ordenou que o jovem entrasse.
Este, o tempo todo em silêncio, pegou a mão de Machado, beijou-a e a colocou em seu próprio peito e, depois de um tempo, saiu. Euclides da Cunha narra a cena em “A Última Visita”, dizendo que, antes de sair, José Veríssimo perguntou seu nome - o texto não nos apresenta o jovem misterioso. Mais importante que um nome, o que Euclides narra é o seguinte:
“Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.
Ele saiu – e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração.
o fastígio de certos estados morais concretizam-se às vezes as maiores idealizações.
elos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade…”
(Euclides da Cunha, “A Última Visita”, publicado no “Jornal do Commercio” em 1º de outubro de 1908).
De origem humilde, tornou-se referência incontornável ainda em vida. Sua obra, composta principalmente por nove romances e mais de uma centena de contos, é capaz de dialogar com seu leitor ou leitora independentemente de sua camada social ou de seu tempo. Talvez resida também aí seu encanto, manifestado numa literatura de simplicidade e clareza que, ao contrário de encerrar qualquer debate, acertam em certos mistérios comuns a todos nós. Sem resolvê-los, Machado nos convida, sim, a explorá-los ainda mais.
A obra de Machado de Assis
Em seu “Iniciação à Literatura Brasileira”, Antonio Candido atribuiu à obra de Machado o sinal de um amadurecimento da literatura brasileira enquanto sistema, não mais composta de autores isolados e que, “a despeito das influências estrangeiras normais, já podem ter como ponto de referência uma tradição local” (CANDIDO, A. 2023, p. 53).
É Candido, ainda, que afirma ser a melhor fase da produção de Machado aquela compreendida a partir de seus quarenta anos, citando, para além das coletâneas de contos “Papéis Avulsos” (1882), “Histórias sem Data” (1884) e “Várias Histórias” (1896), os romances “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), “Quincas Borba” (1891), “Dom Casmurro” (1899), “Esaú e Jacó” (1904) e “Memorial de Aires” (1908).
O Brasil de Machado de Assis
Fonte: acervo IMS
É interessante observar o momento em que ocorrem não apenas essas produções, mas o período de “maturação” e desenvolvimento do conjunto de sua obra.
Machado nasceu às vésperas do Golpe da Maioridade, que encerrou o período regencial no Brasil e deu início ao reinado de D. Pedro 2º, então com 15 anos incompletos. Uma série de revoltas populares eclodiu no país ao final da década de 1830, muito em função de movimentos abolicionistas, mas também de transformações nas formas de se produzir e ganhar dinheiro.
As revoluções liberais ocorridas na Europa e nos Estados Unidos, que se industrializavam, eram incoerentes com a prática escravista que ainda imperava por aqui. No entanto, essa mesma ideologia liberal alimentava as elites brasileiras, num contrassenso que ainda hoje figura no trato social e nas estruturas das instituições. Estava montada uma “comédia ideológica”, como escreveu Roberto Schwarz em “As ideias fora do lugar” (2012), ao propor que as dinâmicas sociais instituídas à época se baseavam em propostas incongruentes com a realidade do país:
“Essa impropriedade de nosso pensamento, que não é acaso, como se verá, foi de fato uma presença assídua, atravessando e desequilibrando, até no detalhe, a vida ideológica do Segundo Reinado. Frequentemente inflada, ou rasteira, ridícula ou crua, e só raramente justa no tom, a prosa literária do tempo é uma das muitas testemunhas disso (...) Como é sabido, éramos um país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro do mercado externo (...) Era inevitável, por exemplo, a presença entre nós do raciocínio econômico burguês - a prioridade do lucro, com seus corolários sociais - uma vez que dominava no comércio internacional, para onde a nossa economia era voltada (...) Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles”. (SCHWARZ, R. 2012, p. 13)
O comércio de pessoas escravizadas só foi legalmente abolido em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, o que não impedia nem o tráfico, nem a manutenção do sistema com migrantes vindos dos antigos engenhos do Nordeste, mas agora convivendo também com imigrantes que desde a época de 1820 já vinham para o Brasil, parte não só de um projeto de branqueamento do país (ilustrado na obra “A Redenção de Cam”, de Modesto Brocos), mas também de uma adaptação às dinâmicas de produção e consumo de um capitalismo industrial (ainda que participássemos dele apenas nas duas pontas da cadeia).
Essas contradições não passaram ilesas pela ironia aguda de Machado, alimentada sobretudo pela sua participação nos círculos sociais da burocracia estatal e dos jantares das elites intelectuais do país.
“Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881)
A escritora e influencer estadunidense Courtney Henning Novak ficou fascinada com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”
Brás Cubas é personagem exemplar dessas questões. A infância privilegiada e a relação abusiva com os escravizados da família. Os estudos em Coimbra e as escapadas imorais frente aos bons costumes. Os empreendimentos frustrados movidos pelo desejo de fama e reconhecimento.
Sobretudo a criação de um remédio que curasse todos os males - inclusive aqueles dos quais era um sintoma -, que culminam em seu depoimento final no romance: “Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto.” No romance, apresentam-se algumas características que perdurariam na obra posterior de Machado.
Para além da ironia, destaca-se o cinismo com que ele encarava o cientificismo e as filosofias em ascensão no último quarto do século 19. Sobretudo o positivismo, o evolucionismo, a psiquiatria e o desenvolvimento de outras ciências, que figuravam como a própria panaceia universal de Brás Cubas e que, como apresentou Antonio Candido, colocavam “em xeque o idealismo romântico e as explicações religiosas, questionando a legitimidade das oligarquias” (CANDIDO, A. 2023, p. 52).
É por meio da voz e na figura de um morto que Machado destila as ambiguidades características da sociedade que descreve com minúcia, apesar do ceticismo. Ao contrário, em certo sentido, até com demasiado interesse em expor suas hipocrisias.
Fato curioso é que em 1840, o recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro promoveu um concurso para o melhor plano de escrita da história do Brasil, tendo como vencedora uma proposta estrangeira, elaborada pelo alemão Carl Friedrich Philipp von Martius: deveríamos ser estudados pela mistura dos elementos raciais de brancos, negros e indígenas. Não bastasse essa ironia, vale lembrar que dois anos antes, pela obra de Manuel Araújo de Porto Alegre, o Brasil havia sido apresentado à arte da caricatura - já éramos iniciados.
Em “Papéis Avulsos”, encontramos um Machado que, enquanto amolava a lâmina da ironia com requinte e sutileza, não deixava barato nem para a própria forma da literatura. Sem em “Memórias” havia rompido com uma narrativa linear do romance, aqui nos traz não apenas personagens memoráveis, mas enredos que suscitam questões em torno do próprio ofício.
“Papéis Avulsos” (1882)
Contracapa da primeira edição de “Papéis Avulsos”, assinada por Machado
A obra é mordaz em várias frentes. De um lado, num sanatório em Itaguaí, o alienista Simão Bacamarte passa a internar toda a cidade, até chegar à conclusão de que, no fundo, talvez o louco seja ele. Quem, no fim das contas, detém o discurso oficial da razão?
Em outro conto, o jovem adulto Janjão, após o jantar, recebe de seu pai os conselhos que o tornariam distinto no mundo: a recusa a qualquer originalidade, a fuga de qualquer princípio de reflexão e a adesão às conclusões já tomadas. Machado remete aqui ao Conselheiro Acácio, personagem célebre de “O Primo Basílio”, de Eça de Queiroz, figura moralista e admirada, ainda que se comunicasse por meio de chavões, platitudes e frases feitas.
A “O Alienista” e “Teoria do Medalhão”, seguem-se contos como “A Chinela Turca” e “O Espelho”, por exemplo. O primeiro coloca em xeque uma sociedade de aparências, em que o sonho, ainda que momentâneo, toma o lugar do trato enfadonho das maneiras e bons costumes e se mostra como uma fuga; o segundo, por sua vez, remete ao vazio dessa mesma sociedade de aparências apegada a seus rituais e identidades - ou o quanto esse regime de papéis pode nos esvaziar.
“O Espelho” ainda suporta, como outros textos de Machado também, “uma leitura filosófica” (CANDIDO, A. 2023, p. 56). Mesmo que as teorias de Freud não estivessem desenvolvidas à época, o tema do inconsciente estava em voga nas últimas décadas do século 19 e a ideia de um eu que pressupõe um olhar que o identifica e constitui parece prefigurar parte fundamental da teoria lacaniana. Este foi um momento em que, como mencionado antes, uma série de saberes estavam em pleno desenvolvimento - a psicologia, a antropologia e a biologia entre eles. Havia ali certa ambição de desvendar os mistérios humanos, o que também provocou a atenção de Machado, sobretudo em personagens como Quincas Borba (já apresentado a nós, leitores, em “Memórias Póstumas”), Rubião e Bentinho, o Dom Casmurro (adjetivo também já usado para descrever Jacobina, em “O Espelho”).
“Quincas Borba” (1891) e o humanitismo
Ilustração de Verônica Berta para a versão em quadrinhos de “Quincas Borba” (FTD)
Borba, filósofo, morreu ainda em “Memórias Póstumas” - louco, diga-se de passagem. Aqui, no entanto, faz de Rubião seu discípulo e herdeiro, deixando-lhe, além da fortuna, o legado do humanitismo, ideologia que considera natural - senão necessário - que parte da vida seja destruída para que outras vicejam. Daí a famosa afirmação de que “ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor as batatas”.
A Humanitas seria a substância última, um princípio indestrutível presente em todas as coisas. Não sem ironia, Rubião foi alvo de toda sorte de interesseiros em usufruir de sua herança, até que enlouqueceu, como seu mestre, e teve até o último suspiro a ilusão de uma grandeza que nunca lhe coube. No universo das ilusões está também Bentinho, em “Dom Casmurro”.
“Dom Casmurro” (1899) - Traiu ou não traiu?
Cena de “Capitu”, minissérie da Rede Globo, dirigida por Luiz Fernando Carvalho (2008)
O lugar de “Dom Casmurro” na obra de Machado e no corpo da literatura brasileira é inestimável. Resgatando elementos do “Otelo”, de Shakespeare, Machado brinca com os leitores numa narração em primeira pessoa que, tomada de pressupostos e desconfianças, torna-se tendenciosa, pouco confiável.
Não se trata apenas de um mergulho nas inconsistências íntimas de Bentinho (a “traição” do desejo de sua mãe, a “santa” D. Glória, de que se tornasse padre, ou a relação com Escobar no seminário), mas também naquelas que são projetadas na realidade a partir das próprias ilusões e fantasias, então tomadas como verdade. Não é nas palavras ou nos atos de Capitu em que Bentinho se baseia, mas nos gestos - sobretudo os “olhos de ressaca” e o “olhar de cigana oblíqua e dissimulada”. Ainda hoje, “Dom Casmurro” permanece um signo aberto, passível de leituras e interpretações de múltiplas abordagens, sem encerrar-se ou se completar em nenhuma (daí, talvez, derive sua grandeza).
“Esaú e Jacó” (1904)
O Último Baile do Império, por Francisco Figueiredo
Esse sentido de alienação retorna em “Esaú e Jacó”. A alusão bíblica aos irmãos inconciliáveis se projeta nas figuras de Pedro e Paulo, gêmeos, porém diferentes em tudo - sobretudo nas posições políticas de um Brasil na ebulição do fim do Império. Um é monarquista, o outro, republicano; ambos são apaixonados por Flora, que não consegue se decidir por nenhum. De fora, observa e narra a personagem de Conselheiro Aires, espécie de manifestação autobiográfica de Machado, observador, prudente, uma figura marginal entre a burocracia (era diplomata aposentado) e a vida comum, no espaço em que ela acontece.
Perdidos em seus desejos e discussões intermináveis, Pedro e Paulo disputam um contra o outro um lugar de destaque que é, talvez, desimportante para quem os cerca. Flora adoece e se distancia de ambos, morrendo sem de fato decidir. Natividade, a mãe, quis durante toda a vida que ambos convivessem bem - o que dura um ano após sua morte. A metáfora atinge um nível cômico no episódio da tabuleta da confeitaria.
Custódio, dono da confeitaria, aparece desesperado para buscar um conselho com Aires. Ele havia mandado reformar a tabuleta de sua confeitaria, a “Confeitaria do Império”. Acontece que, no meio do trabalho, houve o golpe político.
Ele ordenou ao artesão que parasse, portanto, na letra “d”. Não caberia manter “do Império”, mas também não havia garantia de manutenção do novo regime, daí também não seria “da República”. Já havia uma “Confeitaria do Catete”, restando então a sugestão de Aires: “Confeitaria do Custódio”:
“Um nome, o próprio nome do dono, não tinha significação política ou figuração história, ódio nem amor, nada que chamasse a atenção dos dois regimes, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus pastéis de Santa Clara, menos ainda a vida do proprietário e dos empregados. Por que é que não adotava esse alvitre? Gastava alguma coisa com a troca de uma palavra por outra, Custódio em vez de Império, mas as revoluções trazem sempre despesas.
— Sim, vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em que param as modas, disse Custódio agradecendo.(ASSIS, M. 2012, p. 171)”
“Memorial de Aires” (1908)
Possível última foto de Machado, em 1908
Percebe-se, ao longo da obra mais tardia de Machado, o amadurecimento de sua visão crítica acerca das dinâmicas e elaborações que constroem e elaboram as tramas sociais das quais ele participava. Crítica não apenas cáustica, maledicente, ainda que sua ironia e agudeza o colocassem também nesse lugar, mas também atenta, simbolizando os deslocamentos de sentido entre discurso e ação numa sociedade que se construía e reproduzia sobre contradições. Seu último romance, “Memorial de Aires”, resgata a figura do Conselheiro e elabora seu diário entre os anos de 1888 e 1889.
Depois de retornar ao Brasil, Aires conhece o casal Aguiar e a jovem Fidélia, por quem nutre um afeto nunca declarado. Os Aguiar não tinham filhos, algo semelhante ao próprio Machado e sua esposa Carolina, por isso eram muito afeitos à Fidélia e também a Tristão, que volta depois de estudar na Europa. Pouco tempo depois, Tristão se apaixona por Fidélia, eles se casam e partem para viver juntos na Europa.
“Memorial” traz ainda um tanto de crítica, sobretudo no momento da abolição da escravidão. Aires, ao ver nos Aguiar uma agitação de felicidade, vê que a situação se trata de uma carta com notícias de Tristão, não do fato público que havia se consumado. E conclui: “Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular”.
O livro termina numa entrada sem data no diário de Aires. Os Aguiar numa “orfandade às avessas” após a partida de Fidélia e Tristão, com uma expressão indefinida no rosto. No entanto, na entrada anterior, fica talvez a mensagem derradeira de Aires (ou de Machado?):
“Campos não me entendeu, nem logo, nem completamente. Tive então de lhe dizer que aludia ao marido defunto, e aos dous velhos deixados pelos dous moços, e concluí que a mocidade tem o direito de viver e amar, e separar-se alegremente do extinto e do caduco. Não concordou - o que mostra que ainda então não me entendeu completamente.”
(ASSIS, M. 1997, p. 116)
Assim terminou a obra de Machado. “Memorial” foi seu último livro, publicado no ano de sua morte. Na figura de Aires temos um relato da vida comum que se desenrola paralelamente aos grandes eventos, ideias e mudanças que, sim, influenciam essa vida comum, mas que também a contornam em seus dramas particulares. Afinal, segundo o próprio Machado, “o melhor drama está no espectador e não no palco”.
Referências
ASSIS, M. Esaú e Jacó. Penguin-Companhia, 2012.
ASSIS, M. Memorial de Aires. Nova Aguilar, 1997
CANDIDO, A. Iniciação à Literatura Brasileira. Todavia, 2023.
SCHWARZ, R. Ao Vencedor as Batatas. Editora 34, 2012.