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Esquizofrenia: o que é, sintomas, causas, tipos e tratamento
Camila Fortes
Esquizofrenia: o que é, sintomas, causas, tipos e tratamento
Esquizofrenia é um transtorno mental que afeta a percepção da realidade. Veja sintomas, causas, tratamentos e como oferecer apoio sem estigmas.

A esquizofrenia é um dos transtornos mentais mais estigmatizados e incompreendidos da saúde mental. Não são raros os casos em que as pessoas chamam de “esquizofrênico” qualquer indivíduo que assume um comportamento considerado impróprio socialmente.

No entanto, esse é um estigma que precisa ser rompido, pois a esquizofrenia trata-se de uma condição psíquica grave, que faz com que a pessoa apresente perdas de contato com a realidade, afetando diretamente suas relações.

Marcada por sintomas como delírios, alucinações e alterações no pensamento, ela afeta cerca de 1% da população mundial, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, estima-se que entre 0,3% a 2,4% possuem o transtorno.

Neste artigo, vamos abordar de forma clara o que é a esquizofrenia, seus sintomas, causas, diagnóstico, tipos, formas de tratamento e, principalmente, como oferecer acolhimento.

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O que é esquizofrenia e qual a sua origem?

A esquizofrenia é um transtorno psicótico que afeta a forma como a pessoa vê a si e ao mundo. Caracterizado por distorções do pensamento e da percepção, a pessoa esquizofrênica tem a sensação constante de que seus sentimentos, pensamentos e atos são partilhados por outros, como se estivesse sendo analisada e vigiada frequentemente.

O termo “esquizofrenia” foi cunhado em 1911 pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler, a partir da junção dos termos schizo (dividir) e phren (mente), para descrever uma “divisão” entre pensamento, emoção e comportamento.

Não se trata de uma “dupla personalidade”, como muitos acreditam equivocadamente, mas sim de um transtorno mental crônico que afeta a forma como a pessoa percebe a realidade.

A esquizofrenia costuma surgir no final da adolescência ou início da vida adulta, entre os 15 e 35 anos, embora existam casos de esquizofrenia infantil ou início tardio (após os 40 anos). O transtorno pode se manifestar de forma leve ou grave, e nem todos os casos envolvem comportamentos agressivos ou perigosos.



Principais sintomas da esquizofrenia

Os sintomas da esquizofrenia costumam ser divididos em três grupos principais: positivos, negativos e cognitivos.

Vamos compreender melhor:

Sintomas positivos

São assim chamados porque “acrescentam” algo à experiência psíquica do indivíduo. Incluem:

  • Delírios: Crenças falsas e fixas, que não se abalam mesmo diante de evidências contrárias.
    Exemplo: Acreditar que está sendo perseguido ou que possui poderes especiais.
  • Alucinações: Percepções sensoriais sem estímulo real.
    Exemplo: Ouvir vozes (o sintoma mais comum).
  • Pensamento desorganizado: Dificuldade para organizar ideias e falas.
    Exemplo: Falas incoerentes, saltos de pensamento e raciocínio confuso.
  • Comportamento motor acelerado: Pode variar da agitação à catatonia, gerando ansiedade.
    Exemplo: Ficar imóvel e distante no pensamento por um longo tempo ou desenvolver movimentos repetitivos.

Sintomas negativos

São déficits emocionais e sociais que comprometem a qualidade de vida da pessoa esquizofrênica. Os sintomas negativos incluem:

  • Apatia ou falta de expressão emocional, sem muita capacidade de resposta;
  • Isolamento e reclusão social;
  • Diminuição da fala e das interações;
  • Falta de motivação, prazer ou interesse em atividades antes agradáveis.

Sintomas cognitivos

Têm relação com a dificuldade de pensamento, com um comprometimento da memória e dos processos de tomada de decisão.

  • Memória de curto prazo prejudicada;
  • Mau funcionamento de processos cognitivos complexos, como a resolução de problemas, tomada de decisões e planejamento;
  • Déficits de atenção.

A pessoa com esquizofrenia pode desenvolver delírios de que forças externas influenciam nos seus pensamentos e ações, além de exibir um raciocínio vago e obscuro, acreditando que situações cotidianas possuem um significado complexo, relacionado exclusivamente com ela.

O humor geralmente é superficial ou incongruente, acompanhado de momentos de inércia, negativismo ou estupor.

É importante destacar que a esquizofrenia não tende a começar com delírios e alucinações, mas sim com um isolamento social e outras mudanças de comportamento que fazem com que a pessoa seja vista como “diferente” por aqueles do seu convívio.



Causas e fatores de risco para a esquizofrenia

Ainda não existe uma causa única para a esquizofrenia. O transtorno é multifatorial e precisa ser investigado com bastante atenção, para identificar os fatores de risco.

No entanto, uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde aponta que o modelo de maior aceitação para compreender suas causas e fatores de risco é o da “vulnerabilidade versus estresse”. Em outras palavras, uma predisposição genética interage com estressores ambientais e psicológicos, aumentando a possibilidade do desenvolvimento do transtorno.

Assim, vemos a interferência de:

Fatores genéticos:

Casos de esquizofrenia na família aumentam a probabilidade do desenvolvimento do transtorno. No entanto, é importante ressaltar: ter histórico familiar aumenta o risco, mas não garante o desenvolvimento do quadro.

Fatores neurobiológicos:

Alterações na química cerebral, especialmente nos neurotransmissores dopamina e glutamato (responsáveis pelo prazer, motivação e excitação, respectivamente), estão associados ao transtorno.

Disfunções nesse sistema podem explicar os sintomas negativos e o pensamento desorganizadocaracterísticos da esquizofrenia.

Fatores ambientais:

Situações de estresse intenso, como perdas significativas, violência ou mudanças abruptas na vida, podem desencadear ou agravar sintomas em pessoas predispostas. Traumas na infância, como abuso físico, sexual ou negligência emocional, também estão associados a um maior risco.

Outro fator importante é o uso abusivo de substâncias psicoativas, especialmente em fases críticas do desenvolvimento, como a adolescência. Drogas como cocaína, LSD e metanfetaminas podem precipitar surtos psicóticos ou antecipar o início dos sintomas de esquizofrenia em indivíduos vulneráveis.

Além disso, complicações na gestação e no parto, como infecções virais intrauterinas, sofrimento fetal, desnutrição materna ou exposição a toxinas, podem afetar o desenvolvimento neurológico e contribuir para alterações cerebrais relacionadas ao transtorno.

Diagnóstico de esquizofrenia e seus tipos

O diagnóstico de esquizofrenia é feito por médicos psiquiatras com base na avaliação clínica, levando em conta a história de vida, os sintomas e a duração deles.

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e a Classificação Internacional de Doenças (CID-11) orientam os critérios diagnósticos.

Segundo o CID, o transtorno esquizofrênico inclui diferentes apresentações clínicas. Os tipos mais conhecidos são:

Esquizofrenia paranoide

É o tipo mais comum e costuma se manifestar com delírios de perseguição e alucinações auditivas, mas com preservação do pensamento e da afetividade.

Na esquizofrenia paranoide, os delírios são geralmente organizados e sistemáticos, fazendo com que a pessoa acredite, por exemplo, estar sendo espionada, vigiada ou alvo de uma conspiração. As alucinações auditivas são frequentes, com vozes críticas ou ameaçadoras.

Apesar disso, a capacidade de se comunicar e a expressão emocional podem estar relativamente preservadas, o que pode dificultar o reconhecimento do transtorno por quem convive com a pessoa.

Esquizofrenia hebefrênica (ou desorganizada)

Caracteriza-se por desorganização do pensamento, fala incoerente e comportamento inadequado. Frequentemente inicia-se de modo precoce.

O comportamento tende a ser imprevisível ou infantilizado, com risos inapropriados ou ações sem propósito claro. O discurso pode ser difícil de seguir, com trocas rápidas de assunto, frases desconexas ou uso de palavras inventadas.

Esquizofrenia catatônica

Envolve distúrbios motores extremos, desde imobilidade total (catatonia) até movimentos repetitivos.

A pessoa pode permanecer longos períodos em posturas rígidas, sem falar ou reagir ao ambiente ao redor, ou, ao contrário, apresentar agitação motora intensa e movimentos repetitivos, como bater as mãos ou andar em círculos.

Esquizofrenia simples

É mais difícil de ser identificada, pois é marcada principalmente pelos sintomas negativos. Pode ser confundida com depressão ou transtornos de personalidade.

Os sintomas se desenvolvem de forma lenta e progressiva, sem episódios psicóticos evidentes. A pessoa pode começar a se isolar socialmente, perder o interesse por atividades antes prazerosas e mostrar desmotivação.


Tratamento para esquizofrenia

Embora seja um transtorno crônico, a esquizofrenia pode ser tratada para alcançar estabilidade, autonomia e bem-estar.

Antipsicóticos

A base do tratamento envolve o uso de antipsicóticos, que regulam a atividade dos neurotransmissores. Os efeitos variam entre os pacientes, e o acompanhamento médico regular é essencial para ajustar doses e manejar os efeitos colaterais.

Psicoterapia

Abordagens como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), a psicanálise e o fortalecimento da escuta clínica ajudam na elaboração dos sintomas, na reconstrução do laço social e na melhoria da autoestima.

Reabilitação psicossocial

A inserção na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) com foco nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), além de oficinas terapêuticas e grupos de convivência, compõem estratégias de reabilitação psicossocial, sendo fundamentais para a autonomia e o pertencimento.

Para saber mais sobre a RAPS e os centros de atendimento psicoterapêutico, se informe nos sites oficiais do Ministério da Saúde ou procure o CAPS mais próximo de você na rede pública da sua cidade.



A importância da rede

O tratamento para esquizofrenia exige uma rede de cuidados integrada entre usuários do sistema de saúde mental, familiares, profissionais da saúde e serviços públicos. A construção dessa rede passa por políticas públicas de saúde mental assistenciais, somada ao combate à exclusão social.

Dois homens se abraçam em auditório durante evento ou palestra, demonstrando empatia e apoio emocional
Uma rede de apoio bem estruturada é fundamental para quem vive e convive com a esquizofrenia - Fonte: Adrianna Geo/ Unsplash


Como acolher uma pessoa com esquizofrenia?

Viver com esquizofrenia ou conviver com alguém com esse diagnóstico exige empatia, paciência e informação.

Confira algumas práticas essenciais:

  • Evite julgamentos: não invalide ou ridicularize os relatos da pessoa. Lembre-se que, para ela, o que ela está contando é real.
  • Ofereça escuta: ouvir vozes, por exemplo, não é sinônimo de “loucura”, mas um sinal que merece atenção.
  • Se informe: compreender o transtorno ajuda a lidar com ele sem medo.
  • Promova vínculos: o isolamento agrava os sintomas. Laços afetivos são essenciais.
  • Esteja atento a recaídas: mudanças no comportamento, no sono ou no humor podem sinalizar necessidade de reforço no tratamento.




Mitos sobre a esquizofrenia

Muitos são os estereótipos sobre a pessoa com esquizofrenia. A imagem de que são sujeitos perigosos, potencialmente violentos e agressivos, está na percepção social há séculos.

No entanto, para tratar o transtorno, amenizar os sintomas e reduzir os estigmas, é necessário informação para romper com esses preconceitos.

A seguir, alguns dos mitos mais comuns, e o que a ciência e a experiência clínica dizem de fato:

“Pessoas com esquizofrenia são perigosas”

Esse é um dos estigmas mais danosos. A maioria das pessoas com esquizofrenia não é violenta. Na realidade, elas estão mais vulneráveis a sofrerem violência do que a cometê-la.

O comportamento agressivo, quando existe, geralmente está associado à ausência de tratamento, ao uso de substâncias ou a contextos de profunda exclusão social.

“Esquizofrenia é sinônimo de múltiplas personalidades”

Esse também é um equívoco comum, mas, não. A esquizofrenia não é um transtorno dissociativo de identidade. Quem convive com esquizofrenia pode ter delírios e alucinações, mas não vive como se houvesse em si “duas ou mais pessoas”.

A confusão entre esses quadros dificulta a compreensão adequada da condição.

“Esquizofrenia é causada por ‘fraqueza emocional’”

A esquizofrenia tem base neurobiológica e multifatorial, envolvendo alterações químicas no cérebro, predisposição genética e fatores psicossociais e ambientais. Não é um sinal de fragilidade, falta de força de vontade e nem é uma escolha individual.

“Pessoas com esquizofrenia morrem cedo”

Embora existam riscos aumentados de doenças associadas (como as cardiovasculares) e vulnerabilidade social, pessoas com esquizofrenia não necessariamente terão uma expectativa de vida reduzida.

“Quem tem esquizofrenia sempre precisa ser internado”

Falso. A internação é uma medida excepcional, usada em casos graves e pontuais, geralmente quando há risco à vida ou necessidade de estabilização rápida.

É fundamental lembrar que a proposta do cuidado em saúde mental, sobretudo no Brasil através da RAPS, é valorizar o cuidado em liberdade, com suporte no território, tratamento ambulatorial e vínculo com os CAPS.

Indicação da Casa

Alguns livros clássicos tratam sobre o processo de construção de estigmas sobre a pessoa com transtornos mentais. Entre eles, podemos mencionar A História da Loucura na Idade Clássica (1961) de Michel Foucault e Loucura na Civilização: Uma história cultural da insanidade (2023) de Andrew T. Scull.

Além disso, obras como Entre a Razão e a Ilusão: Desmistificando a Esquizofrenia (2023) de Jorge Cândido de Assis, Cecília Villares e Rodrigo Bressan tratam especificamente sobre a esquizofrenia e a convivência com o transtorno.

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Referências:

https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/protocolos/pcdt-esquizofrenia-livro-2013-1.pdf

https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2022/outubro/sus-oferece-atendimento-as-pessoas-que-vivem-com-algum-tipo-de-transtorno-mental

Ceticismo na Filosofia: o que é, origem e filósofos
Paula Delgado
Ceticismo na Filosofia: o que é, origem e filósofos
Ceticismo é a corrente filosófica que questiona a certeza do saber. Veja ideias de Pirro, Descartes e Hume e os principais tipos de ceticismo.

Provavelmente a palavra “ceticismo” não é estranha para você. Sabe o ditado “ver para crer”? Ele exemplifica o pensamento comum do que é o cético: aquele que não acredita em nada. Mas não é bem assim. Talvez você não conheça o verdadeiro significado, nem onde, nem quando o ceticismo começou.

Um spoiler que podemos te dar é que foi ainda na Grécia Antiga e a teoria cética foi se ressignificando com o passar dos anos e com as novas ideias dos filósofos da história. Vem entender o que é ceticismo, sua transformação ao longo do tempo e como você pode aplicar – e talvez já até aplique – no seu dia a dia.

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O que é ceticismo na filosofia?

A palavra “ceticismo” vem do grego “sképsis”, que significa “exame, investigação”. E é exatamente isso que essa corrente filosófica propõe.

O ceticismo na filosofia é uma corrente que tem como base a dúvida sistemática e a suspensão do juízo.

Em outras palavras, essa vertente sustenta que é preciso questionar crenças, descrenças, opiniões e verdades já estabelecidas para alcançar a tranquilidade da alma.

Para resumir: as 3 ideias fundamentais do ceticismo

  • Questionamento de tudo: a dúvida como ferramenta crítica diante do saber e das crenças.
  • Suspensão do juízo (epoché): suspender o julgamento de algo, sem negar nem afirmar nada categoricamente (dúvida saudável).
  • Busca pela ataraxia (imperturbabilidade): é o alcance da tranquilidade ao aceitar as incertezas. A felicidade está no não julgamento das coisas.


Apesar de questionar a possibilidade de alcançar o conhecimento de forma absoluta, o ceticismo não nega o conhecimento em si, mas propõe uma atitude de suspensão de juízo diante das certezas ou incertezas.



O origem do “ceticismo”

O ceticismo surge na filosofia antiga com Pirro de Élis (c. 360–270 a.C.), que é considerado o pai desta corrente filosófica.

Entretanto, é possível encontrar precursores do ceticismo em alguns dos principais filósofos da história, como Demócrito de Abdera e Aristóteles. Ainda que esta doutrina não estivesse fundamentada, já trazia pensamentos que continham elementos filosóficos céticos.

Marcondes (2007) exemplifica esses sinais pré-existentes do ceticismo com o princípio da não-contradição, de Aristóteles, o qual diz que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente, exigindo prova de ambas as possibilidades.

Contudo, Pirro de Élis é conhecido como o pai do ceticismo. Para ele, a suspensão do juízo (epoché) conduzia à ataraxia, isto é, à tranquilidade da alma, uma vez que evita o sofrimento causado pela frustração com verdades inquestionáveis.

Diferentemente do dogmatismo (verdades definitivas), o ceticismo filosófico assume uma postura crítica diante das certezas incontestáveis.

Por meio da reflexão crítica e do reconhecimento dos limites do conhecimento humano, o ceticismo propõe uma postura investigativa diante da realidade e da experiência.

Ter uma atitude cética é não aceitar afirmações sem um exame rigoroso. É duvidar tanto dos sentidos quanto da razão, não aceitando nenhum como fundamento inquestionável do conhecimento verdadeiro.

Esse questionamento radical contribuiu para o desenvolvimento do pensamento filosófico moderno, influenciando pensadores como Descartes, que utilizou a dúvida como método para alcançar certezas indubitáveis.


Ceticismo Antigo

O ceticismo antigo é uma corrente filosófica que tem como característica a dúvida filosófica e a suspensão do juízo quanto à possibilidade de alcançar verdades absolutas.

O ponto central do ceticismo de Pirro está na suspensão do juízo (epoché), ou seja, não aceitar nem negar uma proposição.

Segundo essa vertente, como não é possível ter certeza sobre as coisas, questiona-se a capacidade humana de alcançar conhecimento definitivo.

O ceticismo compartilha com as principais correntes da filosofia helenística – o estoicismo e o epicurismo – uma preocupação essencialmente ética, ou prática.

Pirro de Élis

O ceticismo antigo foi uma escola filosófica do período helenístico, tendo Pirro de Élis (360–270 a.C.) como seu principal fundador.

Busto de Pirro de Élis, filósofo grego considerado o fundador do ceticismo pirrônico
Busto de Pirro de Élis, precursor do ceticismo na Grécia Antiga

Pirro desenvolveu um ceticismo radical, o qual negava a possibilidade de alcançar qualquer forma de conhecimento seguro ou estável.

Assim como Sócrates, Pirro entendia a filosofia não como uma doutrina, mas como uma prática e um modo de viver. Portanto, foi seu discípulo Timon o responsável por transmitir as ideias de forma oral ou poética as ideias do filósofo.

Entretanto, foi com Sexto Empírico, séculos depois, que tivemos os primeiros registros escritos do ceticismo pirrônico.

Assim, conhecemos as 3 questões fundamentais de Pirro:

  1. Qual a natureza das coisas?
  2. Como devemos agir em relação à realidade que nos cerca?
  3. Quais as consequências dessa nossa atitude?


Para alcançar as respostas para essas perguntas, Pirro seguiu uma linha de pensamento.

Basicamente, o ceticismo fala sobre a postura de constante questionamento diante das muitas ideias ou teorias sobre a verdade (dogmatismo). Essas ideias não estão em acordo (diaphonia), já que são excludentes (para uma estar correta, a outra está errada).

Com isso, como não existe uma maneira totalmente confiável de saber qual ideia está certa ou é superior, todas acabam tendo a mesma relevância (isosthenia).

Ao entender isso, deixa-se de lado a ansiedade da busca pela verdade e pela certeza.

Desta forma, é possível encontrar-se livre das inquietações da busca pelo conhecimento inquestionável, alcançando a tranquilidade da alma (ataraxia), já que houve a libertação da necessidade de provar se algo é verdadeiro.


É dessa forma que devemos entender o objetivo primordial da filosofia de Pirro: atingir a ataraxia (imperturbabilidade), alcançando assim a felicidade (eudaimonia).

Sexto Empírico

O filósofo Sexto Empírico viveu entre os séculos II e III d.C. e foi quem primeiro sistematizou o ceticismo antigo. Recebeu o nome “Empírico” porque pertencia à Escola Empírica de Medicina.

Gravura de Sexto Empírico, filósofo grego do período helenístico associado ao ceticismo pirrônico
Gravura de Sexto Empírico, uma das principais fontes sobre o ceticismo pirrônico

Em suas obras, especialmente nos Esboços Pirrônicos, ele reuniu e organizou os argumentos céticos desenvolvidos durante séculos.

Sexto mantém a interpretação de epoché como a suspensão do juízo e reforça a busca pela tranquilidade da alma (ataraxia).

Como Sexto Empírico responderia à questão: “o que é ceticismo?”

Ele diria que é uma habilidade, não um conjunto de crenças, retomando a ideia de Pirro de que o ceticismo é uma postura, uma atitude diante das certezas já apresentadas.

Embora Pirro seja considerado o pai do ceticismo, outros pensadores já propunham ideias que poderiam ser consideradas céticas no pensamento antigo.

Para Sexto Empírico, Pirro “parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais completa e explícita que seus predecessores” e, por isso, os céticos se autodenominavam pirrônicos.

Então, Sexto, em Hipotiposes pirrônicas, diz que “há três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética”.

  • Dogmática:
    Afirma conhecer a verdade com certeza, acreditando que suas doutrinas correspondem à realidade objetiva.
  • Acadêmica:
    Nega ser possível alcançar o conhecimento verdadeiro, afirmando que a verdade é inacessível ao ser humano.
  • Cética:
    Nem afirma, nem nega a verdade; suspende o juízo para alcançar a tranquilidade (ataraxia).


Para você compreender melhor na linha do tempo a trajetória de desenvolvimento dos diversos caminhos do pensamento pensamento filosófico considerados céticos na antiguidade, preparamos a tabela abaixo:

Fases do ceticismo Período Principais filósofos Principais características
Protoceticismo Século VI a.C. Pré-socráticos (referidos por Aristóteles) Questionamentos iniciais sobre o conhecimento e a realidade.
Ceticismo de Pirro de Élis 360–270 a.C. Pirro de Élis; Tímon de Flios (discípulo) Suspensão do juízo (epoché) e busca pela imperturbabilidade (ataraxia).
Ceticismo Acadêmico 270–110 a.C. Arcesilau, Carnéades, Clitômaco Crítica ao dogmatismo; uso de argumentos probabilísticos.
Declínio do Ceticismo Acadêmico A partir de c.110 a.C. Fílon de Larissa Transição para uma filosofia mais dogmática dentro da Academia.
Ceticismo Pirrônico Século I a.C. ao II d.C. Sexto Empírico, Enesidemo de Cnossos Retomada do pirronismo original (epoché e ataraxia); sistematização dos argumentos céticos.


Como você pode perceber, o ceticismo antigo passou por diversas fases, cada uma com sua especificidade, mas todas apresentaram algo em comum: a dúvida como ponto de partida e a crítica à possibilidade de se alcançar um conhecimento absoluto.



Ceticismo moderno: Descartes e Hume

No ceticismo moderno, temos René Descartes e David Hume como duas abordagens diferentes quanto à questão do conhecimento.

O ceticismo moderno, de maneira geral, é uma vertente filosófica que tem como características a dúvida e o questionamento das verdades já estabelecidas.

Descartes propôs um modelo cético quando introduz a dúvida metódica como caminho para a certeza.

Ele desconfiava de todas as crenças que possam ser colocadas em dúvida, inclusive as sensoriais e matemáticas.

Porém, assim como propõe o conceito de ceticismo, Descartes não negava o conhecimento. Ele pretendia encontrar um fundamento sólido e seguro para ele.

Na construção do indivíduo enquanto ser pensante, na conclusão do argumento do cogito (Penso, logo existo), Descartes traz uma nova perspectiva sobre a natureza do conhecimento, a razão.

Por outro lado, David Hume adota um ceticismo empírico, com uma crítica mais forte quanto à razão como única fonte confiável de conhecimento.

Ele coloca a razão como limitada e a experiência assume o lugar de elemento validador do saber.

Um dos questionamentos centrais de Hume é quanto aos princípios racionais, como a causalidade, e as certezas metafísicas, a certeza absoluta sobre verdades fundamentais da realidade.

Para ele, a ideia de causa não é derivada da razão, mas de um hábito mental adquirido pela repetição de eventos.

Apesar de Descartes tentar superar o ceticismo através da razão e Hume apontar seus limites, expondo as vulnerabilidades das crenças humanas, ambos contribuíram para a filosofia moderna ao explorar a relação entre razão e experiência como caminhos que o indivíduo percorre para a compreensão da realidade.

Ceticismo radical, moderado e metodológico

Como dito no início do texto, ceticismo é uma palavra popular que muitos conhecem como a atitude de quem duvida de tudo.

Entretanto, o ceticismo, como atitude filosófica, pode se apresentar de diferentes maneiras, desde as mais radicais até as mais pragmáticas.

Os 3 principais tipos de ceticismo são: o ceticismo radical, o moderado e o metodológico.

Ceticismo radical

O ceticismo radical nega a possibilidade de conhecimento. O cético radical leva a dúvida à última instância, suspeitando tanto da razão quanto da experiência, portanto, assumindo a suspensão completa do juízo.

Ceticismo moderado

O ceticismo moderado já assume uma atitude mais moderada quanto à possibilidade de saber. Ele reconhece os limites do conhecimento, porém aceita algumas verdades, não de forma absoluta, mas sem negar totalmente o saber.

Apesar de David Hume, muitas vezes, ser rotulado como cético radical, por duvidar da própria razão, ele valoriza tanto o conhecimento empírico como o prático.

Ceticismo metodológico

Por fim, o ceticismo metodológico adota a dúvida como meio pelo qual se pode atingir a certeza.

Descartes é o exemplo claro desse tipo de ceticismo, uma vez que ele desenvolveu um método de investigação baseado na razão que, através da dúvida de tudo, busca encontrar uma verdade inquestionável.

Resumindo: o cético radical nega o saber; o moderado assume a possibilidade do saber, não de forma absoluta; o metodológico utiliza a dúvida como ferramenta para a investigação e reflexão filosófica.

Perguntas frequentes

O que é uma pessoa ceticista?

Uma pessoa ceticista ou cética é aquela que duvida da veracidade das informações, do conhecimento posto ou das crenças.

Ela não aceita ideias apresentadas a ela. Na verdade, ela busca evidências e argumentos claros para fundamentar a opinião. Para isso, ela adota essa postura tanto na vida quanto na filosofia.

Qual é o conceito de ceticismo?

O ceticismo é uma corrente filosófica que propõe uma postura questionadora quanto à possibilidade do conhecimento absoluto.

Para esse pensamento, a dúvida é uma ferramenta de investigação da verdade, tendo em vista os limites da razão, das experiências e das crenças.

O que é ter postura cética?

Ter uma postura cética é adotar uma atitude de questionamento frente às informações ou crenças que lhe são expostas.

Ser cético é não aceitar as certezas apresentadas sem refletir e analisar as evidências ou argumentos que as compõem.

Quando se assume essa postura, você constrói um pensamento crítico que te ajuda a ter compreensão racional da realidade, evitando conclusões erradas ou sem embasamento que podem distorcer a sua visão do mundo.

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Referências


CASE, T. A.; KLEIN, P. D. Skepticism. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2022.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

HUTCHINS, Robert M. (Ed.). História das grandes ideias do mundo ocidental. Coleção Os Pensadores, v. 1. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

Método catártico: Freud, hipnose e a origem da psicanálise
Ricardo Salztrager
Método catártico: Freud, hipnose e a origem da psicanálise
Descubra o que foi o método catártico, como Freud usou a hipnose ao lado de Breuer e por que essa técnica marcou o início da psicanálise.

Antes da psicanálise existir como método clínico, Freud já buscava formas de aliviar o sofrimento psíquico de suas pacientes. O primeiro caminho encontrado foi o método catártico, desenvolvido ao lado de Breuer.

Neste artigo, você vai entender o que foi essa técnica baseada no uso da hipnose, como ela ajudou a identificar traumas inconscientes e por que, mesmo abandonada, deixou marcas importantes na história da psicanálise.

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O que é o método catártico?

O método catártico foi a primeira técnica terapêutica utilizada por Freud. Elaborado em parceria com seu colega Joseph Breuer, tal método consistia em hipnotizar os pacientes para que se descobrisse os traumas que originaram seus sintomas. Era também necessário que, ainda sob hipnose, os pacientes efetuassem certa descarga emocional para finalmente se livrarem de seus traumas.

O método catártico e a história da psicanálise

Freud iniciou seus trabalhos na década de 1880. Na época, ele era um jovem estudante intrigado com os fenômenos histéricos e já havia participado das aulas ministradas por Charcot – grande autoridade no assunto – no Hospital de Salpêtrière em Paris.

Pintura histórica retratando uma aula clínica em Salpêtrière, com médicos observando uma paciente em crise histérica
Une leçon clinique à la Salpêtrière – André Brouillet, 1887

Retornando à Viena, conheceu outro eminente médico, o Dr. Joseph Breuer que, inclusive, já dispunha das principais bases do método catártico. Os dois se tornaram amigos, passaram a trabalhar juntos e, inclusive, publicaram em parceria os famosos “Estudos sobre a histeria” (Breuer & Freud, 1895).



Trauma psíquico e sintomas histéricos

Proponho que antes de discutir o que exatamente era o método catártico, falemos um pouco sobre as famosas histéricas de Freud. Pela experiência que tenho em sala de aula, isto em muito facilitará a compreensão do que será dito em seguida.

Pois bem, em linhas gerais, a histeria era definida por esta época, como uma enfermidade predominantemente do sexo feminino. Ninguém sabia exatamente o porquê, mas é fato que eram poucos os homens com tal diagnóstico.

A principal característica da histeria era algo que gerava um profundo estranhamento não apenas entre os médicos, mas à sociedade como um todo: os chamados “sintomas de conversão”. Estes diziam respeito a sofrimentos corporais que, embora extremamente intensos, não eram explicados por nenhum exame anatômico ou fisiológico.

Por exemplo, uma histérica podia apresentar um sintoma de cegueira. No entanto, os médicos faziam mil exames nela e concluíam que tudo em seu organismo funcionava exatamente bem: tanto os seus olhos, quanto o cérebro e as inervações. Ou seja, absolutamente nada explicava tal cegueira.

A histérica também podia manifestar uma paralisia em um braço ou perna. Da mesma maneira, ela era submetida a uma bateria imensa de exames e nada era acusado: nada de mais era detectado em seus ossos, músculos, ou mesmo, nos neurônios.

E se até os dias de hoje este quadro gera tanto estranhamento, imaginem naquela época! Imaginem só uma mulher jovem e bonita chegando no consultório de um médico de fins do século XIX completamente cega e este não conseguindo encontrar nada...

Ora, muitos destes médicos resolviam a situação acusando as histéricas de simularem estas tantas dores e paralisias. E, em meio a esse caos, Breuer e Freud talvez tenham sido os primeiros dispostos a escutá-las.



Assim, conforme escutavam suas pacientes, Breuer e Freud foram concluindo que a causa destes estranhos sintomas histéricos era sempre um trauma psíquico. Tudo se passava como se elas tivessem vivenciado um trauma no passado, porém na ocasião, não conseguiram reagir emocionalmente a ele de maneira adequada.

Vejamos através de um exemplo clínico como todo este processo ocorria.

Um exemplo clínico: o caso Emma

Pela minha experiência, de todos os casos por Freud analisados neste início de carreira, acredito que o que melhor ilustra as suas primeiras concepções sobre a histeria é o caso de Emma (Freud, 1895).

Trata-se da história de uma jovem histérica que apresentava como sintoma uma fobia de entrar em lojas sozinha. Emma associa este medo a uma cena ocorrida pouco tempo antes na qual entrara numa loja sozinha e vira dois vendedores rindo.

Automaticamente, ela pensou que os dois riam dela... mais especificamente das roupas ainda muito infantis que trajava na ocasião. Porém, tal lembrança em nada explicava sua estranha fobia.

Assim, no decorrer do tratamento, Freud foi descobrindo que seu sintoma histérico foi causado por um trauma: quando ainda criança, Emma estava sozinha em uma confeitaria e o confeiteiro a bulinou por cima de suas roupas. Durante o ato, o homem olhava para a criança e dava uma risadinha sarcástica...

E, deste modo, tudo estava explicado: a cena de infância efetivamente justificava o sintoma histérico da jovem. Na ocasião, ela obviamente ficara sem qualquer reação. A lembrança deste trauma ficara guardada em sua memória inconsciente e acabou gerando sua fobia.

Vale sublinhar que caso Emma tivesse gritado, chorado ou procurado ajuda na ocasião – ou então reagido de outra forma razoavelmente adequada – a cena não teria adquirido um efeito tão traumatizante.



O método catártico de Breuer e Freud

Montagem com fotos de Josef Breuer, Bertha Pappenheim (Anna O.) e Sigmund Freud, nomes centrais nos estudos sobre a histeria
Breuer, Anna O. e Freud

Pois bem, agora que entendemos o que é a histeria, bem como as concepções iniciais de Breuer e Freud a seu respeito, podemos finalmente discutir o método catártico.

Em linhas gerais, o método catártico é um modo de tratamento que consistia no uso da hipnose para que se descobrisse o trauma que veio a causar os sintomas histéricos.

Hipnotizava-se a paciente e, logo após, era-lhe solicitado que associasse algumas ideias relacionadas a seus sintomas, deixando que ela desse livre curso a seus pensamentos. Após algumas repetições deste procedimento, chegava-se ao trauma psíquico que teria desencadeado todo o seu sofrimento.

No entanto, para que as histéricas pudessem livrar-se de seus sintomas, era também necessário que, ainda sob hipnose, elas conseguissem exteriorizar todo o afeto retido e que não pudera ser descarregado na ocasião do trauma. Tratava-se, portanto, de uma espécie de catarse emocional e daí o nome “método catártico”.



Anna O.: o caso paradigmático

Fotografia de Bertha Pappenheim, conhecida como Anna O., com traje da época e chapéu, figura importante na história da psicanálise
Anna O. era o pseudônimo de Bertha Pappenheim

Sempre que o assunto é o método catártico, o leitor espera encontrar algumas linhas a respeito do caso da Anna O. Então vamos lá!

Este é o caso mais conhecido de aplicação do método. Tratava-se de uma jovem de vinte e um anos atendida por Breuer em 1881. O relato de sua história encontra-se na íntegra no já mencionado “Estudos sobre a histeria” (Breuer & Freud, 1895).

Anna O. possuía uma série de sintomas histéricos, todos surgidos nos dois anos anteriores, enquanto cuidava do pai gravemente enfermo. Dentre tais sintomas, havia uma paralisia espástica, perturbações da visão, tosse nervosa intensa, repugnância a certos alimentos, dificuldade de beber água, além de um curioso esquecimento da língua materna, no caso, o alemão.

E efetivamente Breuer descobriu que todos estes sintomas histéricos foram gerados por alguns traumatismos. Tomemos dois deles como ilustração: o sintoma da hidrofobia e o de perturbação da visão.

Em relação ao sintoma de hidrofobia, marca-se que, durante seis semanas, Anna O. se pôs a repudiar qualquer copo d´água que lhe era oferecido. Nestas ocasiões, tão logo o levava aos lábios, repelia-o automaticamente sem saber a causa deste estranho comportamento.

Certa vez, durante a hipnose, a histérica relatou que há algum tempo tivera uma dama de companhia e, uma noite, vira-lhe dar de beber a seu cãozinho em um copo. Ao presenciar a cena, Anna O. sentiu um enorme nojo, mas nada exteriorizara por simples polidez.

Quando, em hipnose, conseguiu exteriorizar seu nojo, ela livrou-se de toda a cólera retida. Ao acordar do transe, finalmente pediu de beber, coisa que fez sem o menor embaraço.

Quanto às suas perturbações de visão, Breuer descobriu que estas se associavam à época na qual, com os olhos marejados, ela estava junto ao leito do pai doente. Certo dia, de repente, este acordou perguntando-lhe as horas. E Anna O. teve que reprimir as lágrimas para que o pai não percebesse o quanto ela sofria.

O sintoma em questão também cedeu quando, sob hipnose, a paciente conseguiu exteriorizar sua tristeza.



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Os “Estudos sobre a histeria”

Capa do livro Estudos sobre a histeria (1893-1895), de Sigmund Freud e Josef Breuer
Capa dos “Estudos sobre a histeria” da Editora Autêntica

É hora de falar um pouco desta obra. Trata-se do primeiro livro de Freud, publicado em conjunto com Breuer no ano de 1895.

A grande maioria dos meus alunos costumam julgar sua leitura como bastante fácil e, por isto, muitos a consideram como a melhor maneira de introduzir-se nos textos de psicanálise. Recomendo bastante a sua leitura!

O livro é dividido em quatro partes:

A primeira é a famosíssima “Comunicação preliminar” na qual constam as principais teorizações de Freud e Breuer sobre os sintomas histéricos.

A segunda contém cinco casos clínicos bastante conhecidos: além do relato de Anna O., ainda há os casos de Emmy von N., Miss Lucy, Katharina e Elisabeth von R.

Em seguida, há a terceira parte também de “Considerações teóricas”.

E a quarta “A psicoterapia da histeria” escrita apenas por Freud. Nesta última, o método catártico é explicado em seus mínimos detalhes.

O método catártico e a associação livre

Por que Freud abandonou a hipnose?

Com efeito, Freud julgava a hipnose um procedimento bastante incerto. Ora, ele sempre se denominou um “homem da ciência” e como a hipnose gozava de pouca credibilidade neste meio, Freud abdicou de seu uso.

Além do mais, muitas histéricas eram imunes à hipnose e, portanto, por mais que se tentasse aplicar o método catártico, elas jamais entravam em transe. Por fim, houve a constatação de que a hipnose acabava por silenciar as resistências das pacientes e, bem ou mal, estas funcionavam como importantes pistas para saber se o tratamento estava chegando ao seu devido lugar.

Assim, com o rompimento com Breuer, Freud construiu seu próprio método de tratamento: a psicanálise e, com ela, a regra fundamental da associação livre. De fato, Freud descobriu que o tratamento poderia chegar à causa dos sintomas com o paciente acordado, bastando que se solicitasse que ele dissesse tudo o que lhe vinha ao pensamento sem maiores censuras ou preconceitos.

No entanto, acho interessante frisar que, por outras vias e de outros modos, certa “catarse” ainda permaneceu associada à clínica psicanalítica. Isto porque não se pode negar que associar livremente diante de um psicanalista causa um efeito aliviante no paciente.

Com frequência, saímos das nossas sessões de análise, de certa maneira, renovados, leves e mesmo confortados.

Falar possui, portanto, um efeito catártico. E talvez tenha sido esse o principal ensinamento de Freud com estes atendimentos iniciais. Neste sentido, cada vez mais, a clínica psicanalítica irá valorizar a palavra, aquilo que o paciente consegue nos dizer e, com isto, ir elaborando seu sofrimento.

Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.

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Referências:

Breuer, Joseph. & Freud, Sigmund. (1895). Estudos sobre histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-316.

Freud, Sigmund. (1895). Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 333-454.

Roudinesco, Elisabeth. & Plon, Michel. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.

Psicanálise
Método catártico: Freud, hipnose e a origem da psicanálise
Ricardo Salztrager
Método catártico: Freud, hipnose e a origem da psicanálise
Descubra o que foi o método catártico, como Freud usou a hipnose ao lado de Breuer e por que essa técnica marcou o início da psicanálise.

Antes da psicanálise existir como método clínico, Freud já buscava formas de aliviar o sofrimento psíquico de suas pacientes. O primeiro caminho encontrado foi o método catártico, desenvolvido ao lado de Breuer.

Neste artigo, você vai entender o que foi essa técnica baseada no uso da hipnose, como ela ajudou a identificar traumas inconscientes e por que, mesmo abandonada, deixou marcas importantes na história da psicanálise.

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O que é o método catártico?

O método catártico foi a primeira técnica terapêutica utilizada por Freud. Elaborado em parceria com seu colega Joseph Breuer, tal método consistia em hipnotizar os pacientes para que se descobrisse os traumas que originaram seus sintomas. Era também necessário que, ainda sob hipnose, os pacientes efetuassem certa descarga emocional para finalmente se livrarem de seus traumas.

O método catártico e a história da psicanálise

Freud iniciou seus trabalhos na década de 1880. Na época, ele era um jovem estudante intrigado com os fenômenos histéricos e já havia participado das aulas ministradas por Charcot – grande autoridade no assunto – no Hospital de Salpêtrière em Paris.

Pintura histórica retratando uma aula clínica em Salpêtrière, com médicos observando uma paciente em crise histérica
Une leçon clinique à la Salpêtrière – André Brouillet, 1887

Retornando à Viena, conheceu outro eminente médico, o Dr. Joseph Breuer que, inclusive, já dispunha das principais bases do método catártico. Os dois se tornaram amigos, passaram a trabalhar juntos e, inclusive, publicaram em parceria os famosos “Estudos sobre a histeria” (Breuer & Freud, 1895).



Trauma psíquico e sintomas histéricos

Proponho que antes de discutir o que exatamente era o método catártico, falemos um pouco sobre as famosas histéricas de Freud. Pela experiência que tenho em sala de aula, isto em muito facilitará a compreensão do que será dito em seguida.

Pois bem, em linhas gerais, a histeria era definida por esta época, como uma enfermidade predominantemente do sexo feminino. Ninguém sabia exatamente o porquê, mas é fato que eram poucos os homens com tal diagnóstico.

A principal característica da histeria era algo que gerava um profundo estranhamento não apenas entre os médicos, mas à sociedade como um todo: os chamados “sintomas de conversão”. Estes diziam respeito a sofrimentos corporais que, embora extremamente intensos, não eram explicados por nenhum exame anatômico ou fisiológico.

Por exemplo, uma histérica podia apresentar um sintoma de cegueira. No entanto, os médicos faziam mil exames nela e concluíam que tudo em seu organismo funcionava exatamente bem: tanto os seus olhos, quanto o cérebro e as inervações. Ou seja, absolutamente nada explicava tal cegueira.

A histérica também podia manifestar uma paralisia em um braço ou perna. Da mesma maneira, ela era submetida a uma bateria imensa de exames e nada era acusado: nada de mais era detectado em seus ossos, músculos, ou mesmo, nos neurônios.

E se até os dias de hoje este quadro gera tanto estranhamento, imaginem naquela época! Imaginem só uma mulher jovem e bonita chegando no consultório de um médico de fins do século XIX completamente cega e este não conseguindo encontrar nada...

Ora, muitos destes médicos resolviam a situação acusando as histéricas de simularem estas tantas dores e paralisias. E, em meio a esse caos, Breuer e Freud talvez tenham sido os primeiros dispostos a escutá-las.



Assim, conforme escutavam suas pacientes, Breuer e Freud foram concluindo que a causa destes estranhos sintomas histéricos era sempre um trauma psíquico. Tudo se passava como se elas tivessem vivenciado um trauma no passado, porém na ocasião, não conseguiram reagir emocionalmente a ele de maneira adequada.

Vejamos através de um exemplo clínico como todo este processo ocorria.

Um exemplo clínico: o caso Emma

Pela minha experiência, de todos os casos por Freud analisados neste início de carreira, acredito que o que melhor ilustra as suas primeiras concepções sobre a histeria é o caso de Emma (Freud, 1895).

Trata-se da história de uma jovem histérica que apresentava como sintoma uma fobia de entrar em lojas sozinha. Emma associa este medo a uma cena ocorrida pouco tempo antes na qual entrara numa loja sozinha e vira dois vendedores rindo.

Automaticamente, ela pensou que os dois riam dela... mais especificamente das roupas ainda muito infantis que trajava na ocasião. Porém, tal lembrança em nada explicava sua estranha fobia.

Assim, no decorrer do tratamento, Freud foi descobrindo que seu sintoma histérico foi causado por um trauma: quando ainda criança, Emma estava sozinha em uma confeitaria e o confeiteiro a bulinou por cima de suas roupas. Durante o ato, o homem olhava para a criança e dava uma risadinha sarcástica...

E, deste modo, tudo estava explicado: a cena de infância efetivamente justificava o sintoma histérico da jovem. Na ocasião, ela obviamente ficara sem qualquer reação. A lembrança deste trauma ficara guardada em sua memória inconsciente e acabou gerando sua fobia.

Vale sublinhar que caso Emma tivesse gritado, chorado ou procurado ajuda na ocasião – ou então reagido de outra forma razoavelmente adequada – a cena não teria adquirido um efeito tão traumatizante.



O método catártico de Breuer e Freud

Montagem com fotos de Josef Breuer, Bertha Pappenheim (Anna O.) e Sigmund Freud, nomes centrais nos estudos sobre a histeria
Breuer, Anna O. e Freud

Pois bem, agora que entendemos o que é a histeria, bem como as concepções iniciais de Breuer e Freud a seu respeito, podemos finalmente discutir o método catártico.

Em linhas gerais, o método catártico é um modo de tratamento que consistia no uso da hipnose para que se descobrisse o trauma que veio a causar os sintomas histéricos.

Hipnotizava-se a paciente e, logo após, era-lhe solicitado que associasse algumas ideias relacionadas a seus sintomas, deixando que ela desse livre curso a seus pensamentos. Após algumas repetições deste procedimento, chegava-se ao trauma psíquico que teria desencadeado todo o seu sofrimento.

No entanto, para que as histéricas pudessem livrar-se de seus sintomas, era também necessário que, ainda sob hipnose, elas conseguissem exteriorizar todo o afeto retido e que não pudera ser descarregado na ocasião do trauma. Tratava-se, portanto, de uma espécie de catarse emocional e daí o nome “método catártico”.



Anna O.: o caso paradigmático

Fotografia de Bertha Pappenheim, conhecida como Anna O., com traje da época e chapéu, figura importante na história da psicanálise
Anna O. era o pseudônimo de Bertha Pappenheim

Sempre que o assunto é o método catártico, o leitor espera encontrar algumas linhas a respeito do caso da Anna O. Então vamos lá!

Este é o caso mais conhecido de aplicação do método. Tratava-se de uma jovem de vinte e um anos atendida por Breuer em 1881. O relato de sua história encontra-se na íntegra no já mencionado “Estudos sobre a histeria” (Breuer & Freud, 1895).

Anna O. possuía uma série de sintomas histéricos, todos surgidos nos dois anos anteriores, enquanto cuidava do pai gravemente enfermo. Dentre tais sintomas, havia uma paralisia espástica, perturbações da visão, tosse nervosa intensa, repugnância a certos alimentos, dificuldade de beber água, além de um curioso esquecimento da língua materna, no caso, o alemão.

E efetivamente Breuer descobriu que todos estes sintomas histéricos foram gerados por alguns traumatismos. Tomemos dois deles como ilustração: o sintoma da hidrofobia e o de perturbação da visão.

Em relação ao sintoma de hidrofobia, marca-se que, durante seis semanas, Anna O. se pôs a repudiar qualquer copo d´água que lhe era oferecido. Nestas ocasiões, tão logo o levava aos lábios, repelia-o automaticamente sem saber a causa deste estranho comportamento.

Certa vez, durante a hipnose, a histérica relatou que há algum tempo tivera uma dama de companhia e, uma noite, vira-lhe dar de beber a seu cãozinho em um copo. Ao presenciar a cena, Anna O. sentiu um enorme nojo, mas nada exteriorizara por simples polidez.

Quando, em hipnose, conseguiu exteriorizar seu nojo, ela livrou-se de toda a cólera retida. Ao acordar do transe, finalmente pediu de beber, coisa que fez sem o menor embaraço.

Quanto às suas perturbações de visão, Breuer descobriu que estas se associavam à época na qual, com os olhos marejados, ela estava junto ao leito do pai doente. Certo dia, de repente, este acordou perguntando-lhe as horas. E Anna O. teve que reprimir as lágrimas para que o pai não percebesse o quanto ela sofria.

O sintoma em questão também cedeu quando, sob hipnose, a paciente conseguiu exteriorizar sua tristeza.



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Os “Estudos sobre a histeria”

Capa do livro Estudos sobre a histeria (1893-1895), de Sigmund Freud e Josef Breuer
Capa dos “Estudos sobre a histeria” da Editora Autêntica

É hora de falar um pouco desta obra. Trata-se do primeiro livro de Freud, publicado em conjunto com Breuer no ano de 1895.

A grande maioria dos meus alunos costumam julgar sua leitura como bastante fácil e, por isto, muitos a consideram como a melhor maneira de introduzir-se nos textos de psicanálise. Recomendo bastante a sua leitura!

O livro é dividido em quatro partes:

A primeira é a famosíssima “Comunicação preliminar” na qual constam as principais teorizações de Freud e Breuer sobre os sintomas histéricos.

A segunda contém cinco casos clínicos bastante conhecidos: além do relato de Anna O., ainda há os casos de Emmy von N., Miss Lucy, Katharina e Elisabeth von R.

Em seguida, há a terceira parte também de “Considerações teóricas”.

E a quarta “A psicoterapia da histeria” escrita apenas por Freud. Nesta última, o método catártico é explicado em seus mínimos detalhes.

O método catártico e a associação livre

Por que Freud abandonou a hipnose?

Com efeito, Freud julgava a hipnose um procedimento bastante incerto. Ora, ele sempre se denominou um “homem da ciência” e como a hipnose gozava de pouca credibilidade neste meio, Freud abdicou de seu uso.

Além do mais, muitas histéricas eram imunes à hipnose e, portanto, por mais que se tentasse aplicar o método catártico, elas jamais entravam em transe. Por fim, houve a constatação de que a hipnose acabava por silenciar as resistências das pacientes e, bem ou mal, estas funcionavam como importantes pistas para saber se o tratamento estava chegando ao seu devido lugar.

Assim, com o rompimento com Breuer, Freud construiu seu próprio método de tratamento: a psicanálise e, com ela, a regra fundamental da associação livre. De fato, Freud descobriu que o tratamento poderia chegar à causa dos sintomas com o paciente acordado, bastando que se solicitasse que ele dissesse tudo o que lhe vinha ao pensamento sem maiores censuras ou preconceitos.

No entanto, acho interessante frisar que, por outras vias e de outros modos, certa “catarse” ainda permaneceu associada à clínica psicanalítica. Isto porque não se pode negar que associar livremente diante de um psicanalista causa um efeito aliviante no paciente.

Com frequência, saímos das nossas sessões de análise, de certa maneira, renovados, leves e mesmo confortados.

Falar possui, portanto, um efeito catártico. E talvez tenha sido esse o principal ensinamento de Freud com estes atendimentos iniciais. Neste sentido, cada vez mais, a clínica psicanalítica irá valorizar a palavra, aquilo que o paciente consegue nos dizer e, com isto, ir elaborando seu sofrimento.

Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.

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Referências:

Breuer, Joseph. & Freud, Sigmund. (1895). Estudos sobre histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-316.

Freud, Sigmund. (1895). Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 333-454.

Roudinesco, Elisabeth. & Plon, Michel. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.

Mecanismos de Defesa do Ego: O que são, Tipos e Exemplos
Camila Fortes
Mecanismos de Defesa do Ego: O que são, Tipos e Exemplos
Conheça os 11 principais mecanismos de defesa descritos por Freud e Anna Freud e saiba como eles influenciam seus comportamentos.

Você já percebeu como, diante de situações difíceis, tendemos a reagir de forma inesperada? Para a psicanálise, comportamentos como negação, culpabilização ou projeção podem ser expressões da atuação dos mecanismos de defesa do ego.

Os mecanismos de defesa do ego são processos inconscientes utilizados pelo ego para lidar com conflitos internos, angústias e desejos incompatíveis com a realidade ou com os princípios morais. Esses mecanismos têm a função de proteger o indivíduo contra sentimentos potencialmente dolorosos, ao evitar o acesso direto à conteúdos psíquicos percebidos como ameaçadores.

A denominação foi inicialmente formulada por Sigmund Freud, o pai da psicanálise, e posteriormente sistematizado e ampliado por sua filha, Anna Freud, especialmente na obra “O Ego e os Mecanismos de Defesa” (1936).

Esses mecanismos são parte essencial da estrutura psíquica, composta por id, ego e superego, e ajudam a manter o equilíbrio psíquico frente às demandas do inconsciente e da realidade externa.

Neste texto, iremos explorar os principais mecanismos de defesa do ego, explicando como eles operam no inconsciente e apresentando os seus exemplos práticos.

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Repressão ou recalque

A repressão ou recalque é considerada um dos mecanismos de defesa mais fundamentais. Trata-se do processo de empurrar para o inconsciente desejos, pensamentos, lembranças ou impulsos considerados inaceitáveis ou ameaçadores para o ego.

Mas como eles funcionam no inconsciente? Bem, os conteúdos reprimidos não desaparecem, mas permanecem ativos no inconsciente, podendo retornar de maneira distorcida, como em sonhos, atos falhos ou fantasias. A repressão exige um gasto constante de energia psíquica para manter os conteúdos afastados da consciência.

Exemplo: uma pessoa que sofreu um abuso na infância pode não se lembrar do fato conscientemente, mas pode desenvolver sintomas de ansiedade, fobias ou dificuldades de relacionamento que indiquem a persistência de um trauma reprimido ou recalcado.


Negação

A negação é o mecanismo pelo qual o sujeito se recusa a reconhecer aspectos dolorosos da realidade ou de si mesmo. Em outras palavras, para evitar entrar em choque ou sofrer diante uma situação dolorosa, o indivíduo entra em negação diante o acontecimento. Esse comportamento é comum em momentos de perda, trauma ou choque emocional.

No inconsciente, o ego tenta evitar o sofrimento imediato que o reconhecimento dessa realidade traria. Nesse sentido, trata-se de uma defesa primitiva, na qual muitas vezes só é identificada quando se sofre as consequências de permanecer em negação por muito tempo.

Em vez de perceber a impressão dolorosa e, subsequentemente, cancelá-la mediante a retirada do respectivo investimento, está ao alcance do ego recusar o encontro, pura e simplesmente, com a situação perigosa externa. Pode fugir-lhe e, assim, no mais verdadeiro sentido da palavra, “evitar” as ocasiões de dor” (Freud, 1936/2006, p. 71).

Exemplo: uma pessoa que perde um ente querido pode continuar agindo como se ele ainda estivesse vivo, mantendo hábitos rotineiros, como conversar com a pessoa ausente. O mesmo pode ocorrer diante um relacionamento abusivo. Para não lidar com o sofrimento causado por um cônjuge violento, a pessoa pode negar as agressões, traições e omissões.



Projeção

Você já ouviu a frase: “A culpa é minha e eu coloco em quem eu quiser”? Pois bem, esse é o princípio da projeção. A projeção ocorre quando o sujeito atribui a outra pessoa sentimentos, desejos ou pensamentos que não reconhece como seus, por considerá-los inaceitáveis.

No inconsciente, esse mecanismo age da seguinte forma: o ego evita o conflito interno causado pelos impulsos proibidos, projetando-os no outro. Assim, o sujeito se isenta da responsabilidade pelo conteúdo rejeitado.

Exemplo: Uma pessoa com desejos de infidelidade que não consegue aceitá-los em si, pode desconfiar constantemente da fidelidade do parceiro. Ou, considerar colegas de trabalho como inimigos, mesmo quando a própria pessoa é competitiva.

Formação reativa

A formação reativa, por sua vez, é um mecanismo pelo qual o sujeito adota comportamentos, sentimentos ou atitudes opostas aos desejos inconscientes que deseja reprimir.

No inconsciente, a formação reativa funciona como uma máscara. O ego se protege expressando o oposto do que realmente sente, numa tentativa de esconder, inclusive de si mesmo, o conteúdo real. A função defensiva da formação reativa é, portanto, dupla: ao mesmo tempo que protege o ego da angústia provocada pelo desejo recalcado, também atua para preservar uma imagem de si compatível com as normas e ideais internalizados.

Exemplo: Uma pessoa que sente atração por pessoas do mesmo sexo pode se tornar homofóbica para proteger o ego do conflito entre o desejo e as normas morais. Ou, uma mãe pode se tornar excessivamente protetora para esconder a ausência de amor por um filho.


Isolamento

O isolamento é a separação de um pensamento ou acontecimento do seu contexto, impedindo que a pessoa se sinta abalada pelo fato. Em outras palavras, o isolamento afeta o componente afetivo de uma ideia ou lembrança, separando o conteúdo emocional e mantendo apenas o relato.

No inconsciente, esse mecanismo permite lidar com experiências dolorosas sem sentir o sofrimento associado.

O isolamento pode ser explicado e argumentado da seguinte maneira: na histeria um evento traumático pode cair na amnésia, na neurose obsessiva a experiência não é esquecida, mas destituída de afeto, e suas conexões associativas são suprimidas ou interrompidas, de modo que permanece como isolada” (Freud, 1926, p. 121).

Exemplo: Uma mulher que sofreu uma violência sexual pode relatar o ocorrido de forma objetiva e desprovida de emoção, como se estivesse contando um fato rotineiro. Ou, uma pessoa que é diagnosticada com alguma doença grave, mas simplesmente o ignora e não se importa, pode estar usando o isolamento para se proteger.

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Anulação (ou desmentido)

Já a anulação envolve realizar ações ou pensamentos que têm a função simbólica de “desfazer” ou “anular” algo inaceitável. A pessoa age como se pudesse apagar o que foi feito, dito ou sentido.

No inconsciente, se materializa enquanto uma tentativa de controlar a culpa ou a ansiedade associada a certos impulsos. Frequentemente aparece em comportamentos compulsivos ou supersticiosos.

“A anulação, também consiste essencialmente no desejo de que, por uma anulação mágica do tempo, o que aconteceu e perturba torne-se não acontecido” (Freud, 1926, p. 120).

Exemplo: Após assistir um filme de terror, a pessoa pode querer consumir imediatamente algum conteúdo mais leve ou divertido. Ou, após ter um pensamento considerado inapropriado ou catastrófico, a pessoa pode fazer o “sinal da cruz”, como uma forma de “anular” o pensamento.

Racionalização

Outro mecanismo que merece destaque é a racionalização. Ela busca justificar com argumentos lógicos e socialmente aceitáveis um comportamento, sentimento ou decisão que, na verdade, tem origem em motivos inconscientes ou inaceitáveis.

Em outros termos, trata-se de uma forma de maquiar a verdadeira motivação psíquica por trás de uma ação, oferecendo ao sujeito e aos outros uma explicação mais palatável ou razoável, que evita o confronto com conteúdos internos desconfortáveis.

Esse mecanismo do inconsciente ajuda a proteger o ego da pessoa de sentimentos de culpa ou vergonha, criando uma explicação que pareça mais razoável diante do fato.

Exemplo: Se uma pessoa se sente triste, pode racionalizar dizendo que “não importa” ou que “não é tão grave”. Ou, um estudante que não passou em um concurso afirma que não queria o cargo de verdade, pois o salário era baixo.

Deslocamento

O deslocamento consiste em transferir a carga emocional de um objeto ou pessoa considerada perigosa ou proibida, para outro objeto ou pessoa mais segura ou acessível. Ou seja, transfere-se as emoções de um alvo original para um alvo substituto, que seja menos ameaçador.

No inconsciente, o deslocamento permite que o sujeito expresse suas emoções, sobretudo, agressivas, sem confrontar diretamente sua fonte ideal. Essa manobra psíquica reduz o risco de punição, rejeição ou culpa, pois a energia emocional é redirecionada.

Exemplo: Um funcionário pode descontar em seus filhos a frustração com o chefe no trabalho. Ou, um adolescente que sofre bullying na escola pode se tornar agressivo com seus colegas.


Sublimação

Considerado um mecanismo de defesa razoavelmente saudável, a sublimação consiste em transformar impulsos primitivos ou inaceitáveis em atividades criativas ou artísticas. Ela opera como um canalizador de cargas emocionais, direcionando a energia para atividades que exijam estímulo psíquico.

No inconsciente, ela opera ao redirecionar o desejo reprimido ou negado, para fins nobres. É uma via de expressão simbólica altamente valorizada na vida psíquica adulta, pois permite que os conflitos internos encontrem uma saída produtiva e socialmente aceita.

Ao invés de reprimir o impulso, como ocorre em outros mecanismos, a sublimação transforma sua força em motor criativo e/ou intelectual, por isso, é frequentemente associada à maturidade emocional e ao desenvolvimento de talentos e vocações.

Exemplo: Um sujeito que sofre por algo pode transferir a frustração para a arte, criando obras que expressam esses sentimentos de forma socialmente aceitável. Ou, uma pessoa que sente muita raiva ou estresse no cotidiano pode começar a praticar um esporte de contato, como o jiu jitsu, para canalizar emoções de forma saudável.


Identificação

A identificação, por sua vez, é o processo de incorporação de características, valores ou comportamentos de outra pessoa, muitas vezes significativa para o sujeito. Trata-se de uma forma de aprendizado psíquico profundo, que molda a forma como o indivíduo se percebe e se posiciona no mundo.

No inconsciente, pode ocorrer por admiração, desejo de pertencimento, amor ou medo. Tem papel central na formação da personalidade e na interiorização de normas sociais. Ao se identificar com figuras, personalidades e identidades, internalizam-se também expectativas e modos de se comportar socialmente.

Exemplo: Um adolescente que admira um cantor começa a se vestir e falar como ele, internalizando seu estilo como forma de construir sua própria identidade. Ou, uma criança pode internalizar características e comportamentos de afeto ou violência dos pais para se sentir mais valorizada.

Regressão

Por fim, a regressão é o retorno a modos de funcionamento psíquico e comportamentos de fases anteriores do desenvolvimento, especialmente em situações de estresse ou conflito. Nela, o objetivo é aliviar a tensão ou o medo ao recorrer a formas mais antigas – e geralmente mais seguras - de lidar com a realidade.

Para Freud (1916/1917), a regressão é relativa ao desenvolvimento sexual, uma vez que ela tem uma função libidinal – a obtenção do prazer e da satisfação:

“O que até agora tratamos como regressão [...] significou exclusivamente um retorno da libido a anteriores pontos de interrupção de seu desenvolvimento – isto é algo inteiramente diferente, em sua natureza, da repressão, e inteiramente independente desta (Freud, 1916-17/1996, p. 346)”.

No inconsciente, a regressão representa uma tentativa de fuga temporária para estágios onde as exigências externas eram menores e o cuidado era mais garantido, como na infância. Embora possa ser útil em momentos críticos, oferecendo alívio momentâneo, quando se torna recorrente pode indicar resistência a amadurecer frente a desafios.

Exemplo: Uma pessoa em situações de estresse, pode começar a chorar de forma infantil. Ou, um fumante que, diante de um conflito, passa a fumar mais para se sentir seguro.


Conclusão: defesas não são falhas, são estratégias psíquicas

Neste texto, tratamos sobre os mecanismos de defesa, que são recursos do ego para garantir a manutenção do equilíbrio emocional frente a ameaças internas ou externas.

Longe de serem “erros” ou “falhas”, essas defesas representam tentativas de autorregulação emocional frente às exigências conflitantes do inconsciente, da realidade e das normas sociais.

Embora possam gerar sintomas quando utilizados de forma excessiva ou inadequada, sua função primordial é de autoproteção. Elas atuam como estratégias psíquicas que ajudam o sujeito a sobreviver emocionalmente diante de sentimentos como angústia, culpa, medo, vergonha ou desejo.

Assim, ao invés de condenar sua existência, é preciso reconhecê-las como parte do funcionamento mental humano saudável, ainda que, por vezes, sejam expressões de sofrimento.

Para Anna Freud (1936/2006), “tudo o que provém do ego é também uma resistência, em todos os sentidos da palavra: uma força dirigida contra a emergência do inconsciente”. Nesse sentido, conhecer os mecanismos de defesa é um passo importante para entendermos não só o sofrimento psíquico, mas também os caminhos possíveis para sua transformação.

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Referências

FREUD, S. (1996). Conferência XXII: Algumas ideias sobre desenvolvimento e regressão – etiologia. In S. Freud, Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 16). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1916-17).

FREUD, Sigmund. Inibições, Sintomas e Ansiedade. Em S. Freud, Obras Completas de Freud (pp. Vol. XX, p. 79-171). Rio de Janeiro: Imago, 1926.

FREUD, Anna. [1936] “O ego e os mecanismos de defesa”. Tradução, consultoria e supervisão: Francisco F. Settineri. Porto Alegre: Artmed editora, 2006.

Inconsciente na psicanálise: o que é e como se manifesta
Ricardo Salztrager
Inconsciente na psicanálise: o que é e como se manifesta
Descubra o que é o inconsciente para Freud, como se manifesta em sonhos, atos falhos e sintomas, importância para a psicanálise e para a nossa vida.

Você já parou para pensar que há forças dentro de você das quais nem sequer tem consciência, mas que influenciam suas escolhas, seus medos e seus desejos mais íntimos? Para a psicanálise, esse território oculto da mente tem nome: inconsciente.

Neste artigo, vamos explorar o que é o inconsciente segundo Freud — sua maior descoberta —, entender como ele se manifesta por meio de sonhos, atos falhos, sintomas e esquecimentos, além de conhecer a relação entre o inconsciente e o recalque, suas diferenças em relação ao pré-consciente e ao consciente, e as contribuições de Jung com a ideia do inconsciente coletivo.

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O que é o inconsciente?

O termo “inconsciente” significa literalmente “aquilo que é desconhecido” (“consciência” em latim significa “conhecido” e o prefixo “in”, neste caso, dá a ideia de negatividade). Ele é tido como a maior descoberta de Freud e principal conceito da psicanálise.

Quando Freud postulou que todos nós possuímos um inconsciente ele considerou, portanto, que todos nós nos desconhecemos. Ou seja, possuímos desejos, fantasias, características ou mesmo traumas que sequer conhecemos. No entanto, estes tantos desejos, fantasias, características ou traumas influenciam nossa vida de maneira crucial.


Freud e a descoberta do inconsciente

Freud (1900/1996) postulou o conceito de inconsciente muito cedo, já em sua primeira obra, o livro “A interpretação de sonhos”.

Tal postulação se deu em virtude dos mais de vinte anos de experiência e de tratamento com suas histéricas. Em linhas gerais, as histéricas eram mulheres que sofriam de alguns sintomas de conversão, ou seja, dores e paralisias corporais sem que nada de anatômico ou fisiológico as explicasse.

Por exemplo, era muito comum que uma histérica ficasse surda. Neste caso, os médicos faziam nela os mais variados exames e não encontravam quaisquer lesões ou defeitos que justificavam aquela surdez. Pelo contrário, todo o seu organismo funcionava de modo absolutamente normal: os ouvidos, as inervações, os órgãos interiores, o cérebro... E por isto nenhum médico conseguia explicar como essa histérica veio a ficar surda.

Tal explicação só veio com Freud. Através da análise dos mais variados casos, ele finalmente descobriu que esses sintomas de conversão eram manifestações de desejos inconscientes e, portanto, desconhecidos às histéricas.


Alguns exemplos de casos clínicos de pacientes histéricas de Freud

Como ilustração, há o famoso caso de Elisabeth von N. (Breuer & Freud, 1895/1996), paciente de Freud que sentia inexplicáveis dores na perna, às vezes chegando mesmo a paralisá-las. Em suas associações livres com Freud, a paciente descobriu que possuía um forte desejo pelo cunhado, mas que, de forma alguma, conseguia “dar um passo a frente” (segundo suas palavras) para conquistá-lo. Desta maneira, a impossibilidade de “dar esse passo à frente” era, de alguma forma, simbolizada na paralisia de suas pernas.

Há também o caso de Dora (Freud, 1905a/1996), histérica que, dentre vários outros sintomas, possuía fortes dores na região do abdômen. Em sua análise com Freud, ela reconheceu-se apaixonada pelo melhor amigo de seu pai, o Sr. K.

Certo dia, este senhor deu-lhe uma investida e a jovem prontamente o recusou. Porém, exatos nove meses após esta cena, ela veio a sentir as benditas dores no abdômen, como se elas representassem a simulação de um parto. Nesta medida, Dora veio a descobrir o quanto lamentava-se por ter recusado as investidas do Sr. K.


O inconsciente e o recalque

Assim, através da análise de sucessivos casos, Freud confirmou a existência de desejos inconscientes em todos os seus pacientes. Mas por que estes desejos se tornam inconscientes?

Freud (1909/1996) demonstra que alguns dos nossos desejos acabam se tornando inconscientes por serem incompatíveis com as regras morais. Segundo ele, nós vivemos em uma sociedade governada por uma “moral sexual civilizada”, ou seja, uma moral que atinge e critica basicamente a nossa vida sexual.

Tal moral reconheceria como corretos apenas os desejos sexuais genitais e heterossexuais, de preferência, direcionados ao contexto matrimonial. Portanto, quando algum dos nossos desejos escapa a esta regra, ele ficaria condenado a tornar-se inconsciente através do processo de recalque.

Nesta medida, o recalque é definido como uma defesa frente à nossa sexualidade. Ele consiste, basicamente, em fazer com que um desejo consciente venha a se tornar inconsciente, ou seja, desconhecido para nós.

No entanto, é necessário frisar que recalcar um desejo sexual não significa matá-lo. Pelo contrário, o desejo passa a se tornar apenas desconhecido. Porém, ele continua vivo dentro de nós, à espera de alguma uma ocasião oportuna para manifestar-se.

Mas, então, como os nossos desejos inconscientes conseguem manifestar-se?

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Como o inconsciente se manifesta?

Segundo Freud, nossos desejos inconscientes manifestam-se de cinco maneiras diferentes: nos sonhos, nos atos falhos, nos esquecimentos, nos chistes ou tiradas espirituosas e nos sintomas. Vejamos cada uma delas.

  • Sonhos: segundo Freud (1900/1996), “os sonhos são realizações de desejos inconscientes”. Conforme destacamos, os desejos inconscientes são muito imorais e até mesmo perigosos. Por isso nos censuramos tanto e fazemos de tudo para que eles permaneçam inconscientes e jamais surjam na consciência.

    No entanto, quando estamos dormindo, deixamos um pouco de nos censurar. Daí tais desejos conseguem disfarçar-se e aparecer nos sonhos. Através deste disfarce, eles conseguem não ser reconhecidos e, assim, burlam a nossa censura. Cabe alertar que é justamente devido a este disfarce que os nossos sonhos parecem tão confusos e disparatados.

  • Atos falhos: os atos falhos são também por Freud (1901/1996) considerados manifestações do inconsciente. Eles são definidos como erros ou enganos nas nossas falas. Ocorrem quando almejamos dizer alguma coisa, mas inesperadamente nos enganamos e acabamos falando outra. Só que através deste engano, acabamos dizendo a verdade.

    Um exemplo citado por Freud é o de um senhor que, em uma reunião social, conversava com uma dama de seios fartos. O papo entre os dois era sobre os preparativos de Berlim para o dia de Páscoa. E, assim, no meio do assunto, ele diz: “A senhora viu a exposição de Wertheim? Está totalmente decotada”.

  • Esquecimentos: Segundo Freud (1901/1996), nossos esquecimentos também são manifestações do inconsciente. Ou seja, quando esquecemos “algo” é porque desejamos efetivamente esquecer este “algo”, ou então, alguma coisa a ele relacionada.

    Um exemplo que aconteceu com o próprio Freud: certo dia, uma amiga pediu-lhe que fosse até o Centro de Viena para comprar-lhe um pequeno cofre. Ele sabia onde ficava a loja em que deveria ir, mas não a encontrou.

    Percorreu ruas e ruas inteiras do centro e nada... Até que quando chega em casa, lembra-se que esqueceu de percorrer apenas uma rua da cidade, justamente onde ficava esta loja. Segundo Freud, tal esquecimento se deu porque nesta rua morava uma família da qual ele queria distanciar-se e jamais manter contato.

  • Chistes ou tiradas espirituosas:: De acordo com Freud (1905b/1996), os chistes ou as diversas tiradas que fazemos em nossas conversas também são manifestações do inconsciente. Elas ocorrem quando almejamos dizer algo proibido e imoral e que, portanto, não podemos falar... Mas fazendo um trocadilho ou uma ironia, acabamos por indiretamente dizer e até provocamos risos em quem nos ouve.

    Um exemplo também fornecido por Freud é o de um senhor que conversava com um amigo sobre alguém que ele odiava. No meio do papo, ele solta: “Bem, a vaidade é um de seus quatro calcanhares de Aquiles”.

    Outro exemplo também mencionado por Freud foi o de Phocion, estadista ateniense. Em certa ocasião, ele termina um discurso para o povo e, então, se vê aplaudido. Como ironia, vira para os amigos e pergunta: “Qual foi a besteira que eu falei agora”? Ora, Phocion encarava o povo como propriamente estúpido e, portanto, se o estavam aplaudindo, certamente era porque ele havia dito alguma asneira durante seu pronunciamento. Com efeito, esta foi uma pergunta irônica e sarcástica que manifestava todo o seu desdém pela população.

  • Sintomas: De acordo com o que explicamos acima a respeito das pacientes histéricas de Freud, os sintomas também são formas de manifestação de um desejo inconsciente.

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Inconsciente e psicanálise

Portanto, a partir de tudo o que foi exposto, podemos dizer que, para a psicanálise, o inconsciente não corresponde apenas “àquilo que foi esquecido”. Pelo contrário, apesar de não termos consciência dos desejos recalcados, eles jamais podem ser considerados inertes ou estanques. Ou seja, não devemos entendê-los como algo que foi retirado da consciência de uma vez por todas, permanecendo inconsciente para todo o sempre.

Para a psicanálise, o inconsciente é ativo. Em outros termos, há todo um dinamismo que lhe é próprio e que faz com que as tendências recalcadas lutem, a todo instante, para novamente se manifestarem na consciência.

A respeito disso, vimos tudo o que se passa no contexto dos sonhos, dos atos falhos, dos esquecimentos, das tiradas e dos sintomas: recalcar um desejo e, assim, torná-lo inconsciente não significa matá-lo ou condená-lo ao esquecimento. Pelo contrário, existe uma luta constante entre o desejo sexual imoral e as tendências que tentam silenciá-lo.




Inconsciente, pré-consciente e consciente

Também é importante marcar que, em seu modelo de aparelho psíquico apresentado em “A Interpretação dos Sonhos”, Freud (1900/1996) o dividiu em três diferentes sistemas: o inconsciente, o pré-consciente e o consciente.

  1. Inconsciente: Conforme está sendo assinalado, o inconsciente corresponde a uma parcela de si que o sujeito desconhece. Todos os desejos sexuais que escapam à moral são recalcados e assim permanecem à espera de alguma forma de manifestação.

    Resta mencionar que tudo o que é inconsciente é indestrutível, ou seja, jamais se extingue ou é encerrado. Pelo contrário, nossos desejos recalcados permanecem vivos e ativos para todo o sempre.

  2. Pré-consciente: Já o pré-consciente corresponde às tendências momentaneamente inconscientes, mas que podem voltar à consciência sem maiores problemas. Isto porque elas não são propriamente imorais ou perigosas. São apenas coisas que voluntariamente optamos por esquecer momentaneamente ou não dar muita atenção.

    Por exemplo, quando temos planos de fazer uma viagem, mas estamos impossibilitados por quaisquer questões, afastamos este plano do nosso pensamento consciente. Tão logo ressurja a oportunidade, voltamos nosso pensamento para a viagem.

    Ou então, quando temos uma tarefa de trabalho, mas queremos aproveitar o final de semana, deixamos de pensar neste dever. Porém, tão logo chega a segunda-feira, voltamos nossa atenção para o trabalho e, assim, a tarefa volta a se tornar consciente.

  3. Consciente: Já a consciência responde basicamente pela percepção do mundo e pelo conhecimento das informações que dele chegam. Cabe à consciência também a função de percepção dos nossos mais diversos sentimentos, dentre eles, os de prazer e de desprazer.




Freud, Jung e o inconsciente: diferentes percepções

Por fim, é necessário frisar que, ao contrário de Freud, Jung vai falar da existência de dois inconscientes: o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo.

De acordo com Silveira (1995), o conceito de inconsciente pessoal é razoavelmente semelhante ao conceito freudiano. Ele diz respeito a determinadas tendências que permanecem inconscientes por serem incompatíveis com a atitude consciente, ou então, por serem demasiado fracas e não disporem de energia suficiente para manifestar-se na consciência.

Já o inconsciente coletivo corresponde às camadas mais profundas da nossa mente. Ele diz respeito a alguns fundamentos estruturais do psiquismo comuns a todos os homens, independente de suas culturas ou raças. Trata-se de uma espécie de herança comum que explica, dentre outras tantas coisas, o estranho fato de indivíduos tão diferentes e tão distantes entre si possuírem desejos, fantasias e comportamentos em muito semelhantes.



Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.

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Referências:

Breuer, J. & Freud, S. (1893-1895). Estudos sobre histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-316.

Freud, S. (1900). A interpretação de sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vols. 4 e 5. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 13-650.

_____. (1901). A psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 6. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-290.

_____. (1905a). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 13-116.

_____. (1905b). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 8. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 9-231.

Silveira, N. (2007). Jung: vida e obra. São Paulo: Paz e Terra, 1995.

Neurociência, Saúde Mental e Comportamento
Esquizofrenia: o que é, sintomas, causas, tipos e tratamento
Camila Fortes
Esquizofrenia: o que é, sintomas, causas, tipos e tratamento
Esquizofrenia é um transtorno mental que afeta a percepção da realidade. Veja sintomas, causas, tratamentos e como oferecer apoio sem estigmas.

A esquizofrenia é um dos transtornos mentais mais estigmatizados e incompreendidos da saúde mental. Não são raros os casos em que as pessoas chamam de “esquizofrênico” qualquer indivíduo que assume um comportamento considerado impróprio socialmente.

No entanto, esse é um estigma que precisa ser rompido, pois a esquizofrenia trata-se de uma condição psíquica grave, que faz com que a pessoa apresente perdas de contato com a realidade, afetando diretamente suas relações.

Marcada por sintomas como delírios, alucinações e alterações no pensamento, ela afeta cerca de 1% da população mundial, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, estima-se que entre 0,3% a 2,4% possuem o transtorno.

Neste artigo, vamos abordar de forma clara o que é a esquizofrenia, seus sintomas, causas, diagnóstico, tipos, formas de tratamento e, principalmente, como oferecer acolhimento.

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O que é esquizofrenia e qual a sua origem?

A esquizofrenia é um transtorno psicótico que afeta a forma como a pessoa vê a si e ao mundo. Caracterizado por distorções do pensamento e da percepção, a pessoa esquizofrênica tem a sensação constante de que seus sentimentos, pensamentos e atos são partilhados por outros, como se estivesse sendo analisada e vigiada frequentemente.

O termo “esquizofrenia” foi cunhado em 1911 pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler, a partir da junção dos termos schizo (dividir) e phren (mente), para descrever uma “divisão” entre pensamento, emoção e comportamento.

Não se trata de uma “dupla personalidade”, como muitos acreditam equivocadamente, mas sim de um transtorno mental crônico que afeta a forma como a pessoa percebe a realidade.

A esquizofrenia costuma surgir no final da adolescência ou início da vida adulta, entre os 15 e 35 anos, embora existam casos de esquizofrenia infantil ou início tardio (após os 40 anos). O transtorno pode se manifestar de forma leve ou grave, e nem todos os casos envolvem comportamentos agressivos ou perigosos.



Principais sintomas da esquizofrenia

Os sintomas da esquizofrenia costumam ser divididos em três grupos principais: positivos, negativos e cognitivos.

Vamos compreender melhor:

Sintomas positivos

São assim chamados porque “acrescentam” algo à experiência psíquica do indivíduo. Incluem:

  • Delírios: Crenças falsas e fixas, que não se abalam mesmo diante de evidências contrárias.
    Exemplo: Acreditar que está sendo perseguido ou que possui poderes especiais.
  • Alucinações: Percepções sensoriais sem estímulo real.
    Exemplo: Ouvir vozes (o sintoma mais comum).
  • Pensamento desorganizado: Dificuldade para organizar ideias e falas.
    Exemplo: Falas incoerentes, saltos de pensamento e raciocínio confuso.
  • Comportamento motor acelerado: Pode variar da agitação à catatonia, gerando ansiedade.
    Exemplo: Ficar imóvel e distante no pensamento por um longo tempo ou desenvolver movimentos repetitivos.

Sintomas negativos

São déficits emocionais e sociais que comprometem a qualidade de vida da pessoa esquizofrênica. Os sintomas negativos incluem:

  • Apatia ou falta de expressão emocional, sem muita capacidade de resposta;
  • Isolamento e reclusão social;
  • Diminuição da fala e das interações;
  • Falta de motivação, prazer ou interesse em atividades antes agradáveis.

Sintomas cognitivos

Têm relação com a dificuldade de pensamento, com um comprometimento da memória e dos processos de tomada de decisão.

  • Memória de curto prazo prejudicada;
  • Mau funcionamento de processos cognitivos complexos, como a resolução de problemas, tomada de decisões e planejamento;
  • Déficits de atenção.

A pessoa com esquizofrenia pode desenvolver delírios de que forças externas influenciam nos seus pensamentos e ações, além de exibir um raciocínio vago e obscuro, acreditando que situações cotidianas possuem um significado complexo, relacionado exclusivamente com ela.

O humor geralmente é superficial ou incongruente, acompanhado de momentos de inércia, negativismo ou estupor.

É importante destacar que a esquizofrenia não tende a começar com delírios e alucinações, mas sim com um isolamento social e outras mudanças de comportamento que fazem com que a pessoa seja vista como “diferente” por aqueles do seu convívio.



Causas e fatores de risco para a esquizofrenia

Ainda não existe uma causa única para a esquizofrenia. O transtorno é multifatorial e precisa ser investigado com bastante atenção, para identificar os fatores de risco.

No entanto, uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde aponta que o modelo de maior aceitação para compreender suas causas e fatores de risco é o da “vulnerabilidade versus estresse”. Em outras palavras, uma predisposição genética interage com estressores ambientais e psicológicos, aumentando a possibilidade do desenvolvimento do transtorno.

Assim, vemos a interferência de:

Fatores genéticos:

Casos de esquizofrenia na família aumentam a probabilidade do desenvolvimento do transtorno. No entanto, é importante ressaltar: ter histórico familiar aumenta o risco, mas não garante o desenvolvimento do quadro.

Fatores neurobiológicos:

Alterações na química cerebral, especialmente nos neurotransmissores dopamina e glutamato (responsáveis pelo prazer, motivação e excitação, respectivamente), estão associados ao transtorno.

Disfunções nesse sistema podem explicar os sintomas negativos e o pensamento desorganizadocaracterísticos da esquizofrenia.

Fatores ambientais:

Situações de estresse intenso, como perdas significativas, violência ou mudanças abruptas na vida, podem desencadear ou agravar sintomas em pessoas predispostas. Traumas na infância, como abuso físico, sexual ou negligência emocional, também estão associados a um maior risco.

Outro fator importante é o uso abusivo de substâncias psicoativas, especialmente em fases críticas do desenvolvimento, como a adolescência. Drogas como cocaína, LSD e metanfetaminas podem precipitar surtos psicóticos ou antecipar o início dos sintomas de esquizofrenia em indivíduos vulneráveis.

Além disso, complicações na gestação e no parto, como infecções virais intrauterinas, sofrimento fetal, desnutrição materna ou exposição a toxinas, podem afetar o desenvolvimento neurológico e contribuir para alterações cerebrais relacionadas ao transtorno.

Diagnóstico de esquizofrenia e seus tipos

O diagnóstico de esquizofrenia é feito por médicos psiquiatras com base na avaliação clínica, levando em conta a história de vida, os sintomas e a duração deles.

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e a Classificação Internacional de Doenças (CID-11) orientam os critérios diagnósticos.

Segundo o CID, o transtorno esquizofrênico inclui diferentes apresentações clínicas. Os tipos mais conhecidos são:

Esquizofrenia paranoide

É o tipo mais comum e costuma se manifestar com delírios de perseguição e alucinações auditivas, mas com preservação do pensamento e da afetividade.

Na esquizofrenia paranoide, os delírios são geralmente organizados e sistemáticos, fazendo com que a pessoa acredite, por exemplo, estar sendo espionada, vigiada ou alvo de uma conspiração. As alucinações auditivas são frequentes, com vozes críticas ou ameaçadoras.

Apesar disso, a capacidade de se comunicar e a expressão emocional podem estar relativamente preservadas, o que pode dificultar o reconhecimento do transtorno por quem convive com a pessoa.

Esquizofrenia hebefrênica (ou desorganizada)

Caracteriza-se por desorganização do pensamento, fala incoerente e comportamento inadequado. Frequentemente inicia-se de modo precoce.

O comportamento tende a ser imprevisível ou infantilizado, com risos inapropriados ou ações sem propósito claro. O discurso pode ser difícil de seguir, com trocas rápidas de assunto, frases desconexas ou uso de palavras inventadas.

Esquizofrenia catatônica

Envolve distúrbios motores extremos, desde imobilidade total (catatonia) até movimentos repetitivos.

A pessoa pode permanecer longos períodos em posturas rígidas, sem falar ou reagir ao ambiente ao redor, ou, ao contrário, apresentar agitação motora intensa e movimentos repetitivos, como bater as mãos ou andar em círculos.

Esquizofrenia simples

É mais difícil de ser identificada, pois é marcada principalmente pelos sintomas negativos. Pode ser confundida com depressão ou transtornos de personalidade.

Os sintomas se desenvolvem de forma lenta e progressiva, sem episódios psicóticos evidentes. A pessoa pode começar a se isolar socialmente, perder o interesse por atividades antes prazerosas e mostrar desmotivação.


Tratamento para esquizofrenia

Embora seja um transtorno crônico, a esquizofrenia pode ser tratada para alcançar estabilidade, autonomia e bem-estar.

Antipsicóticos

A base do tratamento envolve o uso de antipsicóticos, que regulam a atividade dos neurotransmissores. Os efeitos variam entre os pacientes, e o acompanhamento médico regular é essencial para ajustar doses e manejar os efeitos colaterais.

Psicoterapia

Abordagens como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), a psicanálise e o fortalecimento da escuta clínica ajudam na elaboração dos sintomas, na reconstrução do laço social e na melhoria da autoestima.

Reabilitação psicossocial

A inserção na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) com foco nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), além de oficinas terapêuticas e grupos de convivência, compõem estratégias de reabilitação psicossocial, sendo fundamentais para a autonomia e o pertencimento.

Para saber mais sobre a RAPS e os centros de atendimento psicoterapêutico, se informe nos sites oficiais do Ministério da Saúde ou procure o CAPS mais próximo de você na rede pública da sua cidade.



A importância da rede

O tratamento para esquizofrenia exige uma rede de cuidados integrada entre usuários do sistema de saúde mental, familiares, profissionais da saúde e serviços públicos. A construção dessa rede passa por políticas públicas de saúde mental assistenciais, somada ao combate à exclusão social.

Dois homens se abraçam em auditório durante evento ou palestra, demonstrando empatia e apoio emocional
Uma rede de apoio bem estruturada é fundamental para quem vive e convive com a esquizofrenia - Fonte: Adrianna Geo/ Unsplash


Como acolher uma pessoa com esquizofrenia?

Viver com esquizofrenia ou conviver com alguém com esse diagnóstico exige empatia, paciência e informação.

Confira algumas práticas essenciais:

  • Evite julgamentos: não invalide ou ridicularize os relatos da pessoa. Lembre-se que, para ela, o que ela está contando é real.
  • Ofereça escuta: ouvir vozes, por exemplo, não é sinônimo de “loucura”, mas um sinal que merece atenção.
  • Se informe: compreender o transtorno ajuda a lidar com ele sem medo.
  • Promova vínculos: o isolamento agrava os sintomas. Laços afetivos são essenciais.
  • Esteja atento a recaídas: mudanças no comportamento, no sono ou no humor podem sinalizar necessidade de reforço no tratamento.




Mitos sobre a esquizofrenia

Muitos são os estereótipos sobre a pessoa com esquizofrenia. A imagem de que são sujeitos perigosos, potencialmente violentos e agressivos, está na percepção social há séculos.

No entanto, para tratar o transtorno, amenizar os sintomas e reduzir os estigmas, é necessário informação para romper com esses preconceitos.

A seguir, alguns dos mitos mais comuns, e o que a ciência e a experiência clínica dizem de fato:

“Pessoas com esquizofrenia são perigosas”

Esse é um dos estigmas mais danosos. A maioria das pessoas com esquizofrenia não é violenta. Na realidade, elas estão mais vulneráveis a sofrerem violência do que a cometê-la.

O comportamento agressivo, quando existe, geralmente está associado à ausência de tratamento, ao uso de substâncias ou a contextos de profunda exclusão social.

“Esquizofrenia é sinônimo de múltiplas personalidades”

Esse também é um equívoco comum, mas, não. A esquizofrenia não é um transtorno dissociativo de identidade. Quem convive com esquizofrenia pode ter delírios e alucinações, mas não vive como se houvesse em si “duas ou mais pessoas”.

A confusão entre esses quadros dificulta a compreensão adequada da condição.

“Esquizofrenia é causada por ‘fraqueza emocional’”

A esquizofrenia tem base neurobiológica e multifatorial, envolvendo alterações químicas no cérebro, predisposição genética e fatores psicossociais e ambientais. Não é um sinal de fragilidade, falta de força de vontade e nem é uma escolha individual.

“Pessoas com esquizofrenia morrem cedo”

Embora existam riscos aumentados de doenças associadas (como as cardiovasculares) e vulnerabilidade social, pessoas com esquizofrenia não necessariamente terão uma expectativa de vida reduzida.

“Quem tem esquizofrenia sempre precisa ser internado”

Falso. A internação é uma medida excepcional, usada em casos graves e pontuais, geralmente quando há risco à vida ou necessidade de estabilização rápida.

É fundamental lembrar que a proposta do cuidado em saúde mental, sobretudo no Brasil através da RAPS, é valorizar o cuidado em liberdade, com suporte no território, tratamento ambulatorial e vínculo com os CAPS.

Indicação da Casa

Alguns livros clássicos tratam sobre o processo de construção de estigmas sobre a pessoa com transtornos mentais. Entre eles, podemos mencionar A História da Loucura na Idade Clássica (1961) de Michel Foucault e Loucura na Civilização: Uma história cultural da insanidade (2023) de Andrew T. Scull.

Além disso, obras como Entre a Razão e a Ilusão: Desmistificando a Esquizofrenia (2023) de Jorge Cândido de Assis, Cecília Villares e Rodrigo Bressan tratam especificamente sobre a esquizofrenia e a convivência com o transtorno.

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Referências:

https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/protocolos/pcdt-esquizofrenia-livro-2013-1.pdf

https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2022/outubro/sus-oferece-atendimento-as-pessoas-que-vivem-com-algum-tipo-de-transtorno-mental

Entenda o que é o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC)
Camila Fortes
Entenda o que é o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC)
Entenda o que é o TOC, sintomas mais comuns, causas, tipos e formas de tratamento. Saiba como lidar com o transtorno e apoiar quem convive com ele.

Você já ouviu alguém dizer “tenho TOC com organização”? Essa frase, apesar de comum, muitas vezes banaliza um transtorno sério que afeta milhões de pessoas no mundo.

O Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) é um transtorno de ansiedade caracterizado por obsessões e/ou compulsões que causam sofrimento, desconforto ou prejuízo funcional significativo.

Neste conteúdo, vamos explicar de modo aprofundado o que é o TOC, quais seus sintomas, causas, tipos, como é feito o diagnóstico, as formas de tratamento e como diferenciar o transtorno de comportamentos obsessivos comuns.

Nosso objetivo é desmistificar o TOC, combater o estigma e oferecer orientações acessíveis e científicas para quem convive com esse quadro ou deseja compreender melhor o tema.

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O que é o TOC? Entenda o transtorno

O Transtorno Obsessivo-Compulsivo é uma condição de saúde mental marcada pela presença de pensamentos obsessivos e/ou comportamentos compulsivos que se repetem de forma intensa, persistente e angustiante.

Descrito no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e na Classificação Internacional de Doenças (CID-11, código 6B20), o TOC é muito mais do que gostar de tudo no lugar ou querer que as coisas estejam limpas, por exemplo. Ele se trata de um sofrimento psíquico intenso, que compromete a vida pessoal, social e profissional de quem o vivencia.

Obsessões são pensamentos, imagens ou impulsos intrusivos, indesejados e repetitivos que geram angústia. Exemplo: medo intenso de estar contaminado, mesmo sem evidência disso.

Compulsões são comportamentos repetitivos (como lavar as mãos, checar as portas) ou atos mentais (contar, rezar, repetir palavras) realizados para neutralizar ou aliviar a ansiedade provocada pelas obsessões.

Em outras palavras, enquanto a obsessão é o pensamento invasivo e angustiante, a compulsão é a ação que tenta aliviar essa angústia.

Quem sofre de TOC geralmente percebe que seus pensamentos e comportamentos são excessivos ou irracionais, mas mesmo assim se sente incapaz de controlá-los sem ajuda especializada.

Principais sintomas do Transtorno Obsessivo-Compulsivo

Os sintomas podem variar bastante entre os indivíduos, tanto na forma quanto na intensidade. Em geral, as obsessões provocam angústia, e as compulsões surgem como uma tentativa de neutralizar esse desconforto, criando um ciclo difícil de romper.

Abaixo, listamos alguns dos sinais de obsessões e compulsões mais comuns:

Exemplos de obsessões:

  • Medo excessivo de contaminação: preocupação constante com germes, sujeira, sangue ou doenças.
  • Dúvidas persistentes que não amenizam: insegurança quanto a ações do cotidiano (“Será que tranquei a porta? E se eu causar um acidente?”)
  • Pensamentos indesejados de conteúdo agressivo ou sexualizado: ideias invasivas sobre machucar alguém ou fazer algo moralmente inaceitável.
  • Necessidade de simetria ou exatidão: incômodo intenso diante de objetos desalinhados ou desorganizados.
  • Medo de causar dano a si ou aos outros: preocupação irracional de que, se não conseguir determinado ritual, algo ruim acontecerá.


Exemplos de compulsões:

  • Lavar as mãos ou tomar banhos excessivos, mesmo sem necessidade física;
  • Verificar repetidamente se portas estão trancadas, luzes apagadas, aparelhos desligados etc;
  • Contar objetos ou repetir palavras mentalmente, como forma de neutralizar obsessões;
  • Organizar itens de forma rígida ou ritualística, seguindo padrões exatos de simetria, cor, tamanho etc;
  • Reafirmação constante: necessidade de ouvir dos outros que algo está seguro, certo ou aprovado.


Esses comportamentos podem parecer irracionais até para quem os realiza e, ainda assim, a pessoa sentir que não consegue evitá-los.

Importante: manias e rituais isolados não são TOC. O transtorno só é diagnosticado quando essas obsessões e compulsões ocupam tempo significativo (geralmente mais de uma hora por dia) e causam sofrimento real ou prejuízo à rotina.



Homem usando máscara borrifando spray desinfetante nas mãos, destacando práticas de higiene e prevenção
Limpeza é essencial, mas é preciso observar se as manias estão causando sofrimento ou comprometimento na vida da pessoa - Fonte: Tonkla Pairoh/Unsplash

Causas e fatores de risco para o Transtorno Obsessivo-Compulsivo

Ainda não existe uma causa única para o Transtorno Obsessivo-Compulsivo, mas uma pesquisa realizada na Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales (UCES) e no Centro Universitário de Mineiros (UNIFIMES) apontam para uma combinação de fatores:

Genéticos: pessoas com histórico familiar de TOC ou outros transtornos de ansiedade têm maior predisposição;

Neurobiológicos: alterações em áreas do cérebro responsáveis por tomada de decisão, controle de impulsos e avaliação de risco (como o córtex orbitofrontal e os gânglios da base), estão relacionadas ao TOC.

Psicológicos: experiências traumáticas na infância, vivências de controle extremo, culpa internalizada ou repressão emocional, podem influenciar o desenvolvimento do transtorno.

Ambientais: eventos estressantes, infecções, alterações hormonais ou disfunções imunológicas podem atuar como gatilhos.

Muitos comportamentos visam controlar o incontrolável, como a possibilidade de contaminação, erro ou tragédia. Por isso, o TOC está diretamente relacionado à ansiedade e ao controle, uma vez que são dois fatores centrais no sofrimento dessas pessoas.



Diferença entre TOC e manias

Uma confusão frequente é sobre a diferença entre TOC e as chamadas “manias”. Apesar da popularização de expressões como “Tenho TOC com isso”, é importante entender que manias e TOC são coisas muito diferentes.

No que exatamente elas se diferem?

As manias, no senso comum, são hábitos ou preferências pessoais, como gostar de manter o armário organizado ou sempre alinhar os talheres e copos. A pessoa mantém o comportamento por gosto ou satisfação, e não por medo ou angústia.

Esses comportamentos geralmente não causam sofrimento ou prejuízo significativo.

Já o TOC envolve uma luta interna desgastante, marcada por pensamentos indesejados e rituais que a pessoa muitas vezes reconhece como excessivos, mas sente-se incapaz de controlar.

No TOC, os pensamentos obsessivos invadem a mente, seguidos de rituais compulsivos. Esses comportamentos são feitos justamente para aliviar a angústia, e não por prazer, e tendem a ser repetidos exaustivamente.

Confira um exemplo da diferença entre Mania x TOC na tabela abaixo:

Mania TOC
Gosto de ver e acho mais bonito esteticamente os livros alinhados por cor. Preciso alinhar os livros por cor e simetria pois, se não fizer isso, sinto uma angústia, como se algo ruim fosse acontecer.



Diagnóstico de TOC e tipos de manifestação

O diagnóstico de TOC deve ser feito por um profissional de saúde mental, como psiquiatra ou psicólogo, com base em critérios estabelecidos pelo DSM-5. A avaliação é feita por meio de entrevistas clínicas, análise de frequência e impacto dos sintomas e exclusão de outras condições médicas ou psiquiátricas.

Tipos de TOC:

  • TOC de verificação: marcado por obsessões relacionadas à dúvida e à responsabilidade, levando a checagens repetitivas.
    Exemplo: Ler e reler um e-mail dezenas de vezes antes de enviar, com medo de que uma palavra mal escrita possa causar demissão ou ofensa. Ou, verificar repetidamente se fechou a porta de casa, mesmo sabendo que trancou. Às vezes, volta da rua só para checar novamente.
  • TOC de limpeza/contaminação: obsessões relacionadas ao medo de contaminação por germes, substâncias tóxicas, sujeira ou até energia negativa, que levam a rituais de limpeza excessivos.
    Exemplo: Evitar cumprimentar pessoas com aperto de mão ou tocar em qualquer objeto público por medo de doenças. Ou, sentir necessidade de limpar o banheiro todos os dias, mesmo sem uso recente.
  • TOC de simetria/ordem: obsessões com a necessidade de exatidão, equilíbrio ou simetria. As compulsões geralmente envolvem reorganizar objetos ou realizar tarefas de forma igualitária.
    Exemplo: Não conseguir sair de casa se os quadros na parede não estiverem perfeitamente alinhados. Ou, a necessidade de pisar com os dois pés o mesmo número de vezes ao subir escadas.
  • TOC de pensamentos intrusivos: caracterizado por pensamentos indesejados, agressivos, sexuais ou moralmente inaceitáveis, que causam intensa culpa.
    Exemplo: Ter pensamentos involuntários sobre machucar alguém querido. Ou, imaginar cenas inapropriadas e tentar mentalmente “cancelar” os pensamentos.
  • TOC de acumulação: dificuldade intensa em se desfazer de objetos, mesmo sem utilidade aparente.
    Exemplo: Guardar objetos quebrados, contas antigas ou roupas velhas por acreditar que algo ruim pode acontecer se forem descartadas.



Atenção: o TOC na infância pode se manifestar de formas semelhantes aos adultos, mas muitas vezes com menos clareza verbal. É importante observar a rituais excessivos, o sofrimento ao interromper rotinas e a ansiedade intensa.



Sugestão da Casa:

O filme “Toc Toc” (2017) dirigido pelo espanhol Vicente Villanueva, é uma comédia ficcional que reúne diferentes pessoas com transtornos obsessivos-compulsivos em uma sala de espera para consulta com um terapeuta.

No filme, cada personagem apresenta um tipo de TOC diferente, como verificação, simetria, repetição, contaminação e até síndrome de Tourette. Embora seja uma obra de humor, o filme pode ajudar a introduzir o tema de forma leve e gerar empatia com quem vive com o transtorno.

“Toc Toc” é uma representação caricata, ficcional. Para compreender o Transtorno Obsessivo-Compulsivo com profundidade, é essencial buscar fontes sérias e escuta especializada.



Tratamento para Transtorno Obsessivo-Compulsivo

O TOC tem tratamento e, embora seja uma condição crônica em muitos os casos, é possível alcançar grande melhora na qualidade de vida.

Os principais tratamentos são:

Psicoterapia

  • Terapia Cognitivo Comportamental (TCC): A TCC é a abordagem mais indicada para tratar o transtorno. Ela irá auxiliar a desenvolver ferramentas e estratégias práticas para romper com os padrões de repetição. Técnicas como Exposição e Prevenção de Resposta (EPR), na qual o paciente é gradualmente exposto às obsessões sem executar os rituais compulsivos, costumam ser eficazes para ajudar o paciente a tolerar a ansiedade sem reforçar o ciclo.
  • Psicanálise: Buscar compreender os conteúdos inconscientes por trás dos sintomas, como controle, culpa, repressão e fantasias, pode auxiliar no tratamento. Embora menos focada na extinção imediata dos sintomas, a psicanálise pode ser valiosa no entendimento emocional profundo do transtorno.
  • Outras abordagens: Terapias integrativas, como Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), também apresentam bons resultados no tratamento. Elas incentivam o paciente a aceitar os pensamentos sem se prender a eles, favorecendo ações alinhadas com seus valores.


Medicamentos

Os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), como fluoxetina, sertralina e fluvoxamina, são os mais usados no tratamento farmacológico do Transtorno Obsessivo-Compulsivo.

Eles auxiliam no equilíbrio dos neurotransmissores, reduzindo a intensidade dos pensamentos obsessivos e o impulso por rituais compulsivos. O efeito costuma levar algumas semanas para ser percebido, e a dosagem deve ser sempre ajustada por um médico psiquiatra.

Em casos resistentes, podem ser associados a outros tipos de medicação, como antipsicóticos atípicos, sob supervisão médica.

Acompanhamento interdisciplinar

Nutricionistas, terapeutas ocupacionais, psiquiatras, educadores e familiares também podem fazer parte do cuidado.

O apoio contínuo é essencial para promover autonomia e reduzir recaídas.

Como apoiar alguém com TOC?

Conviver com alguém que sofre com o TOC pode ser desafiador. Na Casa do Saber, há uma variedade de cursos que exploram o principal sintoma do Transtorno Obsessivo-Compulsivo: a ansiedade.

Nesse sentido, compreender como superar a ansiedade e como controlar seus sinais, pode ser uma ferramenta de apoio importante.


Confira algumas dicas de suporte:

  • Evite julgar os comportamentos como exagero ou frescura;
  • Não reforce compulsões (“confirma só dessa vez”, “lava pra se acalmar”, por exemplo”. São reforços que, infelizmente, podem manter o ciclo do TOC;
  • Ofereça escuta e empatia, e incentive o acompanhamento profissional;
  • Informe-se, para compreender melhor os mecanismos do transtorno;
  • Em crianças, a escola e a família devem trabalhar em conjunto para oferecer segurança e rotina.


As pessoas também querem saber:

Como é uma crise de TOC?

Uma crise de TOC acontece quando os pensamentos obsessivos ficam muito intensos e causam forte ansiedade. A pessoa sente que precisa fazer uma compulsão (como checar ou lavar algo) para aliviar o mal-estar.

Pode haver taquicardia, angústia, bloqueio mental e perda de foco. Mesmo rituais internos, como contar ou rezar, podem consumir muito tempo e energia.

Como é uma pessoa com TOC?

Uma pessoa com TOC é alguém que vive com pensamentos repetitivos e comportamentos compulsivos, muitas vezes em segredo. Pode parecer perfeccionista ou controladora, mas está lidando com um sofrimento real.

Em geral, são pessoas sensíveis e ansiosas, que se preocupam excessivamente com erros ou consequências. O TOC pode afetar o cotidiano, mas com tratamento e apoio, é possível viver com menos sofrimento.

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Referências

https://interacoesucdb.emnuvens.com.br/multitemas/article/view/3559

Saúde mental no trabalho: como se proteger e promover bem-estar
Camila Fortes
Saúde mental no trabalho: como se proteger e promover bem-estar
Entenda o que é saúde mental no trabalho, principais sinais de alerta para ter atenção e boas práticas para cuidar do bem-estar emocional.

Quem nunca levou uma preocupação do trabalho para casa? Ou, quem nunca se sentiu cobrado de modo desproporcional no ambiente profissional?

No mundo contemporâneo, a relação com o trabalho tem gerado cada vez mais adoecimento psíquico, chamando atenção de empresas e especialistas de saúde mental.

Neste texto, trataremos dos principais fatores que afetam o bem-estar psicológico no ambiente profissional, os sinais de alerta e boas práticas para empresas e trabalhadores. Além disso, abordaremos sobre a importância de uma cultura organizacional que promova o cuidado com a mente.

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O que é ter saúde mental no ambiente profissional?

A saúde mental no ambiente corporativo diz respeito à capacidade de lidar com os desafios cotidianos, manter relações interpessoais saudáveis, equilibrar vida pessoal e profissional, e encontrar sentido e satisfação no que se faz.

Não significa estar sempre feliz e realizado profissionalmente, mas sim ter suporte para atravessar momentos difíceis no trabalho sem adoecer.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os transtornos mentais estão entre as principais causas de afastamento do trabalho no mundo, impactando diretamente a produtividade e a sustentabilidade das organizações.

De acordo com o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan/Ministério da Saúde), somente em 2024, no Brasil, quase 5 mil pessoas foram afastadas do trabalho por questões de saúde mental. Em 2025, já foram mapeados mais de 850 registros.

Mas porque isso acontece?

A realidade cotidiana ainda é muitas vezes marcada por jornadas exaustivas, cobranças silenciosas e falta de espaço para o diálogo. Em ambientes assim, não há criatividade, eficiência ou engajamento, há apenas o medo, a pressão e a invisibilidade profissional.

Nesse sentido, saber identificar processos de adoecimento psíquico no ambiente profissional é fundamental para desenvolver uma melhor relação com o trabalho.

O que afeta a saúde mental no trabalho?

A saúde emocional no ambiente corporativo é afetada por um conjunto de fatores estruturais, relacionais e organizacionais.

Embora cada pessoa tenha uma trajetória única e reaja de forma distinta aos desafios profissionais, alguns elementos vêm se tornado cada vez mais frequentes nos relatos de adoecimento no trabalho.

  • Excesso de cobranças e metas inalcançáveis: Quando o desempenho é priorizado em detrimento do bem-estar, instala-se um ciclo de autocobrança e medo de errar. O resultado? Profissionais sempre alerta, porém emocionalmente esgotados.
  • Cultura organizacional tóxica, com comunicação agressiva e competitividade excessiva: Erros no trabalho acontecem, eles fazem parte da jornada profissional. No entanto, nessas estruturas, o erro passa a ser punido em vez de ser acolhido e aperfeiçoado.
  • Falta de reconhecimento e de feedbacks construtivos: A desvalorização do esforço individual provoca desmotivação, queda da autoestima e perda do sentido no trabalho. A longo prazo, essa sensação favorece quadros de exaustão mental e emocional.
  • Ambientes com sobrecarga e jornadas extensas: A naturalização da sobrecarga de tarefas é muitas vezes compreendida como parte da “entrega” ou da “alta performance”, gerando efeitos nocivos nos profissionais.
  • Isolamento e solidão no trabalho remoto: O home office tem permitido uma maior qualidade de rendimento e otimização de tempo, no entanto, pode gerar uma dificuldade de desconexão entre trabalho e vida pessoal.
  • Insegurança em relação à estabilidade no emprego: O cenário de incerteza profissional pode fazer com que as pessoas trabalhem mais do que o acordado, para tentar garantir a sua manutenção na empresa. Medidas como essa aceleram um estado de alerta crônico, podendo evoluir para transtornos mentais graves.
  • Falta de espaço para escuta e acolhimento emocional: A ausência de uma rede de suporte psíquico no ambiente profissional distancia a pessoa da possibilidade de autocuidado e auto identificação de sintomas.



Sinais de que algo não vai bem no trabalho: quando o corpo e a mente avisam

Quando o bem-estar psíquico está comprometido, o impacto aparece não só nos resultados, mas, principalmente, na qualidade de vida.

A mente tem formas (sutis e não sutis) de pedir socorro. Muitas vezes, é o corpo quem fala primeiro. Por isso, estar atento aos sinais de alerta pode evitar que o sofrimento se aprofunde ou se transforme em um quadro clínico grave.

Alguns dos sintomas mais comuns incluem:

  • Cansaço físico e mental persistente, mesmo após períodos de descanso;
  • Distúrbios do sono, como insônia ou sono excessivo sem sensação de repouso;
  • Irritabilidade, impaciência e alterações de humor repentinas;
  • Dificuldade de concentração, lapsos de memória e queda de rendimento;
  • Desmotivação profissional, sensação de vazio ou perda do prazer nas tarefas cotidianas;
  • Sintomas físicos recorrentes, como dores de cabeça, gastrite, tensões musculares ou queda da imunidade;
  • Isolamento social e afastamento das relações afetivas e/ou profissionais.


Esses sinais são mecanismos de defesa do corpo e da mente, que indicam que algo precisa ser olhado com atenção. Quando persistem por semanas, meses ou se intensificam, é essencial buscar apoio especializado.

Atenção: A manifestação desses sintomas pode estar associada a outros transtornos psicológicos como ansiedade e depressão, por isso, é fundamental compreender de onde parte o sofrimento, e qual o peso do trabalho na produção desse sofrimento.



Pessoa adormecida sobre a mesa com abajur aceso, representando exaustão mental após o trabalho
A sobrecarga mental no trabalho é um fator de adoecimento não apenas mental, mas também, psicossomático — Fonte: Mykyta Kravcenko/Unsplash



Burnout e ansiedade: os transtornos mais comuns no trabalho

Dentre os transtornos mais frequentes relacionados ao ambiente profissional, dois se destacam: Síndrome de Burnout e os Transtornos de Ansiedade.

Ambos têm crescido de forma expressiva nos últimos anos, impulsionados por modelos de trabalho excessivamente exigentes e abusivos, além de culturas organizacionais pouco empáticas e uma valorização contínua da hiperprodutividade.

Reconhecida pela OMS desde 2022 como uma doença ocupacional, a Síndrome de Burnout é resultado do estresse crônico relacionado ao trabalho.

Seus sintomas incluem:

  • Exaustão emocional profunda, que não melhora após horas, dias ou semanas de descanso;
  • Distanciamento afetivo ou desinteresse pelo trabalho e pelas relações profissionais;
  • Sensação de baixa realização, como se nenhum esforço fosse suficiente ou reconhecido.


O curso Burnout, Um Problema Atual - Casa do Saber explora alguns casos clínicos para ilustrar os sintomas, desdobramentos e estratégias de tratamento. Saiba mais.

Por sua vez, os Transtornos de Ansiedade no trabalho podem surgir tanto de pressões cotidianas quanto de ambientes saudáveis, tóxicos ou imprevisíveis.

Ele se manifesta de diferentes formas, como:

  • Preocupações constantes e pensamentos acelerados sobre desempenho, cobranças ou possíveis erros;
  • Sensação de que “nada do que se faz é suficiente”;
  • Dificuldade para relaxar, mesmo fora do horário de expediente;
  • Crises de pânico, com sintomas físicos como taquicardia, sudorese, falta de ar ou tremores;
  • Medo paralisante de reuniões, apresentações ou interações com lideranças.


Embora a ansiedade seja uma emoção humana natural, quando se torna crônica e desproporcional ao contexto, passa a comprometer o bem-estar e a performance profissional.

A boa notícia é que tanto a ansiedade quanto o Burnout podem ser prevenidos e tratados. Para isso, é fundamental que empresas adotem práticas estruturadas de cuidado e que os profissionais tenham acesso a apoio psicológico e ferramentas de autoconhecimento.

Como as empresas podem promover a saúde mental?

Cuidar da saúde mental no trabalho se tornou uma necessidade estratégica para empresas e profissionais.

Promover saúde mental no trabalho exige um compromisso institucional que pede mais do que um happy hour empresarial às sextas-feiras. Requer compromisso real com o bem-estar, políticas institucionais claras e uma liderança empática, preparada para lidar com a complexidade humana e com os desafios que essas relações exigem.

Algumas práticas efetivas incluem:

  • Políticas de escuta ativa: Criação de canais seguros para que os colaboradores possam expressar dificuldades e propor melhorias. Rodas de conversas e grupos de apoio também são bem vindos, a fim de proporcionar um ambiente seguro.
  • Pausas reais e respeito aos limites: O incentivo às pequenas pausas durante o expediente e o respeito aos horários de descanso e férias, são fundamentais.
  • Programas de apoio psicológico: Parcerias com clínicas ou plataformas de psicoterapia para profissionais é um passo importante para promover a saúde mental no trabalho. Além disso, treinamentos sobre saúde emocional, empatia e regulação emocional também podem colaborar de modo significativo.
  • Liderança empática e preparada: Gestores treinados em inteligência emocional e comunicação não violenta são formas importantes de construir uma rede profissional mais saudável.
  • Ambientes mais inclusivos: O combate ao assédio e à discriminação é fundamental. Além disso, é relevante pensar em espaços seguros para pessoas com transtornos mentais.
  • Certificação de empresas monitoras de saúde mental: A nova legislação brasileira através da Lei 14.831/2024 prevê um certificado para empresas que adotam boas práticas em saúde mental, reconhecendo e estimulando iniciativas que criem ambientes de trabalho mais saudáveis, além do combate à discriminação e ao assédio em todas as suas formas.


Mas, como diferenciar um ambiente saudável e um ambiente tóxico no trabalho?

Ambiente saudável Ambiente tóxico
Comunicação clara, respeitosa e aberta
Ex: Reuniões onde as opiniões são reconhecidas e ouvidas sem julgamentos.
Comunicação passivo-agressiva ou silenciamento
Ex: Colegas que falam mal pelas costas ou líderes que gritam com a equipe.
Feedbacks construtivos e reconhecimento frequente
Ex: Elogios por metas alcançadas e orientações para melhorias.
Críticas destrutivas e ausência de reconhecimento
Ex: Só receber cobranças ou ser ignorado após esforço extra.
Incentivo ao equilíbrio entre vida pessoal e trabalho
Ex: Flexibilidade para atender compromissos pessoais sem medo.
Exigência de disponibilidade constante e horas extras frequentes
Ex: Receber mensagens fora do expediente e ser cobrado por respostas imediatas.
Oportunidades de crescimento e desenvolvimento
Ex: Treinamentos, mentorias e possibilidades de promoção.
Estagnação e desmotivação crônica
Ex: Ausência de plano de carreira, com pessoas sem perspectivas de crescimento profissional.




O que o trabalhador pode fazer por si mesmo?

Cuidar da saúde mental no trabalho é uma responsabilidade compartilhada entre empresas e profissionais. No entanto, há ações individuais que podem funcionar como âncoras de bem-estar em meio à correria do cotidiano corporativo.

Assumir pequenas atitudes no dia a dia pode fazer diferença real. Não se trata de “dar conta de tudo sozinho”, mas de criar espaços de respiro, refletir sobre os próprios limites e buscar apoio quando necessário.

Veja algumas práticas:

  • Estabelecer limites: Separar tempo de trabalho e tempo pessoal é um passo importante de autocuidado e proteção emocional. Ter horários definidos e respeitá-los ajuda a preservar energia mental e prevenir sobrecargas.
  • Criar pausas e rituais de transição: Caminhadas, alongamentos, respiração consciente entre tarefas, podem ser excelentes aliados. Técnicas como o mindfulness são grandes aliadas na reconexão com o presente.
  • Buscar apoio profissional: A psicoterapia e a participação em grupos de suporte são elementos fundamentais para o cuidado psíquico diante cenários de sobrecarga no trabalho. Com apoio especializado, a pessoa pode encontrar os mecanismos psíquicos para evitar sofrimento e desgaste.
  • Investir em autoconhecimento: Cursos, leitura, práticas de autocuidado e desenvolvimento emocional ampliam a consciência sobre si mesmo e ajudam na construção de relações mais saudáveis no trabalho e na vida.


Cuidar da mente, portanto, não deve ser um luxo, mas sim uma escolha consciente de sustentar e buscar o bem-estar e a qualidade de vida ao longo da trajetória profissional.

Situação comum, mas pouco falada: E quando a pessoa tóxica é o meu chefe?

Infelizmente, lideranças tóxicas existem, e seus impactos na saúde mental podem ser profundos. Supervisores que desqualificam, sobrecarregam, controlam excessivamente ou desrespeitam limites colaboram diretamente para o adoecimento mental.

Se você está vivendo uma situação assim, é importante documentar os comportamentos abusivos ou recorrentes que possam comprovar comportamentos inadequados. Estabeleça limites com assertividade, quando possível, e busque apoio em outros setores da empresa, como RH ou ouvidoria.

É importante também fortalecer a sua rede de suporte fora do trabalho. Além disso, se a situação for insustentável e não houver espaços para mudanças, refletir sobre novas possibilidades profissionais também é um ato de cuidado.

Dicas rápidas para começar agora

A relação entre saúde mental e produtividade é direta: pessoas com bem-estar emocional têm maior capacidade de foco, criatividade, tomada de decisão e relações saudáveis no ambiente corporativo.

Cuidar da mente no dia a dia pode ser mais simples do que parece. Pequenas ações geram grandes impactos ao longo do tempo.

Veja algumas práticas simples para iniciar agora mesmo:

  • Reserve 10 minutos por dia para uma pausa sem telas. Tome um café, faça um alongamento ou simplesmente se desconecte dos estímulos digitais.
  • Desative notificações profissionais fora do expediente.
  • Converse com colegas sobre formas de apoio mútuo.
  • Se você é líder ou gerente, pergunte com genuína escuta “como você está hoje?”
  • Se você é colaborador, permita-se pedir ajuda. Nenhum profissional deve enfrentar o esgotamento sozinho.


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Referências:

http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/transmentalbr.def

http://www.portalsinan.saude.gov.br/o-sinan

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/01/lei-cria-certificacao-para-empresa-que-promove-saude-mental



Filosofia
Ceticismo na Filosofia: o que é, origem e filósofos
Paula Delgado
Ceticismo na Filosofia: o que é, origem e filósofos
Ceticismo é a corrente filosófica que questiona a certeza do saber. Veja ideias de Pirro, Descartes e Hume e os principais tipos de ceticismo.

Provavelmente a palavra “ceticismo” não é estranha para você. Sabe o ditado “ver para crer”? Ele exemplifica o pensamento comum do que é o cético: aquele que não acredita em nada. Mas não é bem assim. Talvez você não conheça o verdadeiro significado, nem onde, nem quando o ceticismo começou.

Um spoiler que podemos te dar é que foi ainda na Grécia Antiga e a teoria cética foi se ressignificando com o passar dos anos e com as novas ideias dos filósofos da história. Vem entender o que é ceticismo, sua transformação ao longo do tempo e como você pode aplicar – e talvez já até aplique – no seu dia a dia.

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O que é ceticismo na filosofia?

A palavra “ceticismo” vem do grego “sképsis”, que significa “exame, investigação”. E é exatamente isso que essa corrente filosófica propõe.

O ceticismo na filosofia é uma corrente que tem como base a dúvida sistemática e a suspensão do juízo.

Em outras palavras, essa vertente sustenta que é preciso questionar crenças, descrenças, opiniões e verdades já estabelecidas para alcançar a tranquilidade da alma.

Para resumir: as 3 ideias fundamentais do ceticismo

  • Questionamento de tudo: a dúvida como ferramenta crítica diante do saber e das crenças.
  • Suspensão do juízo (epoché): suspender o julgamento de algo, sem negar nem afirmar nada categoricamente (dúvida saudável).
  • Busca pela ataraxia (imperturbabilidade): é o alcance da tranquilidade ao aceitar as incertezas. A felicidade está no não julgamento das coisas.


Apesar de questionar a possibilidade de alcançar o conhecimento de forma absoluta, o ceticismo não nega o conhecimento em si, mas propõe uma atitude de suspensão de juízo diante das certezas ou incertezas.



O origem do “ceticismo”

O ceticismo surge na filosofia antiga com Pirro de Élis (c. 360–270 a.C.), que é considerado o pai desta corrente filosófica.

Entretanto, é possível encontrar precursores do ceticismo em alguns dos principais filósofos da história, como Demócrito de Abdera e Aristóteles. Ainda que esta doutrina não estivesse fundamentada, já trazia pensamentos que continham elementos filosóficos céticos.

Marcondes (2007) exemplifica esses sinais pré-existentes do ceticismo com o princípio da não-contradição, de Aristóteles, o qual diz que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente, exigindo prova de ambas as possibilidades.

Contudo, Pirro de Élis é conhecido como o pai do ceticismo. Para ele, a suspensão do juízo (epoché) conduzia à ataraxia, isto é, à tranquilidade da alma, uma vez que evita o sofrimento causado pela frustração com verdades inquestionáveis.

Diferentemente do dogmatismo (verdades definitivas), o ceticismo filosófico assume uma postura crítica diante das certezas incontestáveis.

Por meio da reflexão crítica e do reconhecimento dos limites do conhecimento humano, o ceticismo propõe uma postura investigativa diante da realidade e da experiência.

Ter uma atitude cética é não aceitar afirmações sem um exame rigoroso. É duvidar tanto dos sentidos quanto da razão, não aceitando nenhum como fundamento inquestionável do conhecimento verdadeiro.

Esse questionamento radical contribuiu para o desenvolvimento do pensamento filosófico moderno, influenciando pensadores como Descartes, que utilizou a dúvida como método para alcançar certezas indubitáveis.


Ceticismo Antigo

O ceticismo antigo é uma corrente filosófica que tem como característica a dúvida filosófica e a suspensão do juízo quanto à possibilidade de alcançar verdades absolutas.

O ponto central do ceticismo de Pirro está na suspensão do juízo (epoché), ou seja, não aceitar nem negar uma proposição.

Segundo essa vertente, como não é possível ter certeza sobre as coisas, questiona-se a capacidade humana de alcançar conhecimento definitivo.

O ceticismo compartilha com as principais correntes da filosofia helenística – o estoicismo e o epicurismo – uma preocupação essencialmente ética, ou prática.

Pirro de Élis

O ceticismo antigo foi uma escola filosófica do período helenístico, tendo Pirro de Élis (360–270 a.C.) como seu principal fundador.

Busto de Pirro de Élis, filósofo grego considerado o fundador do ceticismo pirrônico
Busto de Pirro de Élis, precursor do ceticismo na Grécia Antiga

Pirro desenvolveu um ceticismo radical, o qual negava a possibilidade de alcançar qualquer forma de conhecimento seguro ou estável.

Assim como Sócrates, Pirro entendia a filosofia não como uma doutrina, mas como uma prática e um modo de viver. Portanto, foi seu discípulo Timon o responsável por transmitir as ideias de forma oral ou poética as ideias do filósofo.

Entretanto, foi com Sexto Empírico, séculos depois, que tivemos os primeiros registros escritos do ceticismo pirrônico.

Assim, conhecemos as 3 questões fundamentais de Pirro:

  1. Qual a natureza das coisas?
  2. Como devemos agir em relação à realidade que nos cerca?
  3. Quais as consequências dessa nossa atitude?


Para alcançar as respostas para essas perguntas, Pirro seguiu uma linha de pensamento.

Basicamente, o ceticismo fala sobre a postura de constante questionamento diante das muitas ideias ou teorias sobre a verdade (dogmatismo). Essas ideias não estão em acordo (diaphonia), já que são excludentes (para uma estar correta, a outra está errada).

Com isso, como não existe uma maneira totalmente confiável de saber qual ideia está certa ou é superior, todas acabam tendo a mesma relevância (isosthenia).

Ao entender isso, deixa-se de lado a ansiedade da busca pela verdade e pela certeza.

Desta forma, é possível encontrar-se livre das inquietações da busca pelo conhecimento inquestionável, alcançando a tranquilidade da alma (ataraxia), já que houve a libertação da necessidade de provar se algo é verdadeiro.


É dessa forma que devemos entender o objetivo primordial da filosofia de Pirro: atingir a ataraxia (imperturbabilidade), alcançando assim a felicidade (eudaimonia).

Sexto Empírico

O filósofo Sexto Empírico viveu entre os séculos II e III d.C. e foi quem primeiro sistematizou o ceticismo antigo. Recebeu o nome “Empírico” porque pertencia à Escola Empírica de Medicina.

Gravura de Sexto Empírico, filósofo grego do período helenístico associado ao ceticismo pirrônico
Gravura de Sexto Empírico, uma das principais fontes sobre o ceticismo pirrônico

Em suas obras, especialmente nos Esboços Pirrônicos, ele reuniu e organizou os argumentos céticos desenvolvidos durante séculos.

Sexto mantém a interpretação de epoché como a suspensão do juízo e reforça a busca pela tranquilidade da alma (ataraxia).

Como Sexto Empírico responderia à questão: “o que é ceticismo?”

Ele diria que é uma habilidade, não um conjunto de crenças, retomando a ideia de Pirro de que o ceticismo é uma postura, uma atitude diante das certezas já apresentadas.

Embora Pirro seja considerado o pai do ceticismo, outros pensadores já propunham ideias que poderiam ser consideradas céticas no pensamento antigo.

Para Sexto Empírico, Pirro “parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais completa e explícita que seus predecessores” e, por isso, os céticos se autodenominavam pirrônicos.

Então, Sexto, em Hipotiposes pirrônicas, diz que “há três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética”.

  • Dogmática:
    Afirma conhecer a verdade com certeza, acreditando que suas doutrinas correspondem à realidade objetiva.
  • Acadêmica:
    Nega ser possível alcançar o conhecimento verdadeiro, afirmando que a verdade é inacessível ao ser humano.
  • Cética:
    Nem afirma, nem nega a verdade; suspende o juízo para alcançar a tranquilidade (ataraxia).


Para você compreender melhor na linha do tempo a trajetória de desenvolvimento dos diversos caminhos do pensamento pensamento filosófico considerados céticos na antiguidade, preparamos a tabela abaixo:

Fases do ceticismo Período Principais filósofos Principais características
Protoceticismo Século VI a.C. Pré-socráticos (referidos por Aristóteles) Questionamentos iniciais sobre o conhecimento e a realidade.
Ceticismo de Pirro de Élis 360–270 a.C. Pirro de Élis; Tímon de Flios (discípulo) Suspensão do juízo (epoché) e busca pela imperturbabilidade (ataraxia).
Ceticismo Acadêmico 270–110 a.C. Arcesilau, Carnéades, Clitômaco Crítica ao dogmatismo; uso de argumentos probabilísticos.
Declínio do Ceticismo Acadêmico A partir de c.110 a.C. Fílon de Larissa Transição para uma filosofia mais dogmática dentro da Academia.
Ceticismo Pirrônico Século I a.C. ao II d.C. Sexto Empírico, Enesidemo de Cnossos Retomada do pirronismo original (epoché e ataraxia); sistematização dos argumentos céticos.


Como você pode perceber, o ceticismo antigo passou por diversas fases, cada uma com sua especificidade, mas todas apresentaram algo em comum: a dúvida como ponto de partida e a crítica à possibilidade de se alcançar um conhecimento absoluto.



Ceticismo moderno: Descartes e Hume

No ceticismo moderno, temos René Descartes e David Hume como duas abordagens diferentes quanto à questão do conhecimento.

O ceticismo moderno, de maneira geral, é uma vertente filosófica que tem como características a dúvida e o questionamento das verdades já estabelecidas.

Descartes propôs um modelo cético quando introduz a dúvida metódica como caminho para a certeza.

Ele desconfiava de todas as crenças que possam ser colocadas em dúvida, inclusive as sensoriais e matemáticas.

Porém, assim como propõe o conceito de ceticismo, Descartes não negava o conhecimento. Ele pretendia encontrar um fundamento sólido e seguro para ele.

Na construção do indivíduo enquanto ser pensante, na conclusão do argumento do cogito (Penso, logo existo), Descartes traz uma nova perspectiva sobre a natureza do conhecimento, a razão.

Por outro lado, David Hume adota um ceticismo empírico, com uma crítica mais forte quanto à razão como única fonte confiável de conhecimento.

Ele coloca a razão como limitada e a experiência assume o lugar de elemento validador do saber.

Um dos questionamentos centrais de Hume é quanto aos princípios racionais, como a causalidade, e as certezas metafísicas, a certeza absoluta sobre verdades fundamentais da realidade.

Para ele, a ideia de causa não é derivada da razão, mas de um hábito mental adquirido pela repetição de eventos.

Apesar de Descartes tentar superar o ceticismo através da razão e Hume apontar seus limites, expondo as vulnerabilidades das crenças humanas, ambos contribuíram para a filosofia moderna ao explorar a relação entre razão e experiência como caminhos que o indivíduo percorre para a compreensão da realidade.

Ceticismo radical, moderado e metodológico

Como dito no início do texto, ceticismo é uma palavra popular que muitos conhecem como a atitude de quem duvida de tudo.

Entretanto, o ceticismo, como atitude filosófica, pode se apresentar de diferentes maneiras, desde as mais radicais até as mais pragmáticas.

Os 3 principais tipos de ceticismo são: o ceticismo radical, o moderado e o metodológico.

Ceticismo radical

O ceticismo radical nega a possibilidade de conhecimento. O cético radical leva a dúvida à última instância, suspeitando tanto da razão quanto da experiência, portanto, assumindo a suspensão completa do juízo.

Ceticismo moderado

O ceticismo moderado já assume uma atitude mais moderada quanto à possibilidade de saber. Ele reconhece os limites do conhecimento, porém aceita algumas verdades, não de forma absoluta, mas sem negar totalmente o saber.

Apesar de David Hume, muitas vezes, ser rotulado como cético radical, por duvidar da própria razão, ele valoriza tanto o conhecimento empírico como o prático.

Ceticismo metodológico

Por fim, o ceticismo metodológico adota a dúvida como meio pelo qual se pode atingir a certeza.

Descartes é o exemplo claro desse tipo de ceticismo, uma vez que ele desenvolveu um método de investigação baseado na razão que, através da dúvida de tudo, busca encontrar uma verdade inquestionável.

Resumindo: o cético radical nega o saber; o moderado assume a possibilidade do saber, não de forma absoluta; o metodológico utiliza a dúvida como ferramenta para a investigação e reflexão filosófica.

Perguntas frequentes

O que é uma pessoa ceticista?

Uma pessoa ceticista ou cética é aquela que duvida da veracidade das informações, do conhecimento posto ou das crenças.

Ela não aceita ideias apresentadas a ela. Na verdade, ela busca evidências e argumentos claros para fundamentar a opinião. Para isso, ela adota essa postura tanto na vida quanto na filosofia.

Qual é o conceito de ceticismo?

O ceticismo é uma corrente filosófica que propõe uma postura questionadora quanto à possibilidade do conhecimento absoluto.

Para esse pensamento, a dúvida é uma ferramenta de investigação da verdade, tendo em vista os limites da razão, das experiências e das crenças.

O que é ter postura cética?

Ter uma postura cética é adotar uma atitude de questionamento frente às informações ou crenças que lhe são expostas.

Ser cético é não aceitar as certezas apresentadas sem refletir e analisar as evidências ou argumentos que as compõem.

Quando se assume essa postura, você constrói um pensamento crítico que te ajuda a ter compreensão racional da realidade, evitando conclusões erradas ou sem embasamento que podem distorcer a sua visão do mundo.

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Referências


CASE, T. A.; KLEIN, P. D. Skepticism. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2022.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

HUTCHINS, Robert M. (Ed.). História das grandes ideias do mundo ocidental. Coleção Os Pensadores, v. 1. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

Empirismo: o que é, principais ideias e pensadores
Paula Delgado
Empirismo: o que é, principais ideias e pensadores
Entenda o que é o empirismo, baseado na experiência sensível, e conheça as ideias de Locke, Berkeley e Hume e seu impacto na ciência moderna.

Você já parou para pensar o quanto os seus sentidos podem influenciar na sua visão de mundo e no seu dia a dia? Neste texto, você vai saber mais sobre o que é empirismo, suas principais ideias, pensadores e como essa corrente filosófica pode ajudar na reflexão e explicação de várias questões do cotidiano.

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O que é empirismo e por que ele moldou a ciência moderna?

Empirismo é uma corrente filosófica moderna, que ganhou força no final do século XVII e defendeu que todo conhecimento tem origem na experiência sensível.

Essa corrente discorda da teoria das ideias inatas, segundo o empirismo nós as construímos observando e interagindo com o mundo.

Os principais filósofos empiristas, Locke, Berkeley e Hume, defendiam que nossa mente é moldada pelas percepções e que o saber é resultado da organização dessas experiências.

O empirismo foi fundamental para a ciência moderna ao romper com o racionalismo quanto à fonte do conhecimento. Em vez da razão pura, colocou-se o olhar sobre a observação e a experiência, o que influenciou diretamente o surgimento de um método científico baseado na observação e na experimentação.

Além de estabelecer que o conhecimento deve ser sustentado por evidências, o empirismo foi fundamental para as ciências naturais, embora também tenha influenciado as ciências humanas. Também estimulou a dúvida e a revisão sistemática das crenças e ideias.



Empirismo na filosofia: definição e fundamentos

Empirismo vem do grego empeiria, que significa uma forma de saber derivada da experiência sensível e do acúmulo de informações advindo dessa experiência.

Basicamente, empirismo é uma corrente filosófica que diz que todo conhecimento deriva da experiência sensível.

Autores como Locke, Berkeley e Hume afirmam que a mente humana nasce como uma "tábula rasa", sendo preenchida ao longo da vida por percepções vindas dos sentidos.

“Nada está no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos.”

Lema do empirismo (Frase aristotélica)

O ponto inicial da filosofia empírica está na distinção entre dois tipos de conteúdo mental: impressões e ideias.

Segundo a teoria desenvolvida por David Hume, as impressões são as informações captadas e repassadas pelos sentidos, por exemplo, ver uma situação e sentir tristeza ou felicidade. Já as ideias são cópias dessas impressões, alteradas pela memória ou pela imaginação.

E essa ideia pode se associar por semelhança, proximidade no tempo ou espaço, ou relação de causa e efeito.

Sendo assim, esse pensamento ficou conhecido como empirismo psicológico, porque entende o conhecimento como resultado da atividade subjetiva da mente.

A partir disso, Hume desenvolveu uma postura cética, como na ideia de que seria, por exemplo, a ideia de que a causalidade não vem da razão, mas do costume ou hábito de fazer associações de eventos semelhantes e constantes.

Posteriormente, surge o chamado empirismo lógico, no qual as palavras só têm significado se estiverem ligadas a fatos concretos. Com isso, os conceitos metafísicos especulativos são desconsiderados por não se referirem a qualquer experiência sensível.

Portanto, o empirismo coloca a experiência sensível como origem do saber e transforma a experiência em critério de validade, influenciando a filosofia e a ciência moderna.

Crítica ao inatismo e à razão pura: a mente como “tábula rasa”

O empirismo e o racionalismo surgiram na mesma época, no século XVII. Entretanto, o pensamento empírico surgiu como uma crítica ao racionalismo, especialmente quanto às ideias inatas e à crença de que a razão, sozinha, é capaz de gerar conhecimento verdadeiro e seguro.

Diferentemente dos racionalistas, os filósofos empiristas defendiam que o conhecimento humano tem origem na experiência sensível. E é exatamente nessa discordância que Locke critica a ideia dos princípios inatos universais.

Um dos principais pontos da crítica ao inatismo está na questão de que a mente não nasce com princípios ou ideias prontas.

Na verdade, ela se apresenta desde a infância, como uma “tábula rasa”, ou seja, uma folha em branco pronta para ser preenchida pelas experiências.

Portanto, sendo a mente infantil livre de ideias anteriores, molda-se à medida que interage com o mundo.

Então a concepção de “ideias inatas” é refutada, segundo os empiristas, quando aplicada à análise empírica, pois, se essas ideias fossem realmente inatas, estariam presentes na mente de todos os indivíduos, o que não se observa.

Ademais, os filósofos empiristas também colocam em dúvida a razão, isto é, o uso da razão sem a experiência. Eles diziam que a razão depende das informações adquiridas pela percepção, assim, todo o saber é condicionado pelo contato com o mundo sensível.

A crítica ao inatismo foi importante na filosofia moderna, porque deslocou o foco da investigação do pensamento para a observação, a percepção e a experiência na construção do conhecimento.



Principais representantes do empirismo

O empirismo moderno teve três representantes que se destacaram: John Locke, George Berkeley e David Hume. Cada um desenvolveu, a partir da experiência sensível, uma teoria sobre o conhecimento e a realidade.

Retratos de John Locke, George Berkeley e David Hume, principais representantes do empirismo britânico
Da esquerda para a direita: John Locke, George Berkeley e David Hume

Embora os três tivessem a mesma ideia sobre a negação das ideias inatas e o compromisso com a experiência como fundamento do saber, as abordagens filosóficas se diferenciavam.

Enquanto Locke se destacou pela teoria do conhecimento e pela filosofia política; Berkeley se debruçou sobre a defesa do imaterialismo; e Hume, pelo marcante ceticismo frente à razão e à causalidade.

John Locke: teoria do conhecimento e política

John Locke (1632–1704) é considerado o fundador do empirismo moderno. Uma de suas obras mais clássicas, Ensaio Sobre o Entendimento Humano, desenvolve-se a teoria “tábula rasa”.

Nela, ele afirma que a mente humana nasce como uma “tábula rasa”, ou seja, sem conteúdo inato. Portanto, todo conhecimento do indivíduo vem da experiência, que pode ser externa (sensações) ou interna (reflexão).

Para explicar como um pensamento individual pode ser reconhecido como comum a todos, Locke discorre que o entendimento se forma a partir de ideias simples, captadas pela experiência, que são correspondentes às qualidades, e que depois são combinadas para formar ideias complexas.

Ele também diferencia as qualidades primárias e secundárias dos objetos:

  • Qualidades primárias: propriedades do próprio objeto (forma, extensão, volume)
  • Qualidades secundárias: propriedades que dependem da percepção do sujeito (cor, sabor, textura).


Exemplificando: o açúcar tem solidez, forma cristalina e divisibilidade (qualidades primárias). Também é branco e doce (qualidades secundárias).


Em suma, as qualidades primárias são inerentes ao objeto e tornam a substância o que ela é. Enquanto as qualidades secundárias não são propriedades objetivas do objeto, mas são derivadas do poder de produzir ideias, como o açúcar tem o poder de produzir o gosto doce.

Essa distinção permitiu reflexões sobre a confiabilidade do conhecimento sensível e os limites da percepção humana.

Além da teoria do conhecimento, John Locke também atuou na filosofia política.

Na obra Segundo Tratado Sobre o Governo, defende a ideia de que os indivíduos possuem direitos naturais (vida, liberdade e propriedade) e que o governo deve garantir tais direitos com base no consentimento dos governados. Essa concepção foi fundamental para o pensamento liberal e para a teoria do contrato social.



George Berkeley: imaterialismo e percepção

George Berkeley (1685–1753) negava a existência da matéria como substância independente da mente. Para ele, todos os objetos que experimentamos existem apenas enquanto são percebidos por uma mente.

Apesar de Berkeley admitir que a teoria do conhecimento empirista proposta por Locke foi fundamental para que ele alcançasse os seus objetivos quanto ao questionamento da materialidade do universo, ele chegou a resultados muito diferentes.

O ponto de discordância entre os dois filósofos está na passagem do conhecimento adquirido por meio dos dados fornecidos pelos sentidos para o conceito abstrato da substância material.

Para ele, essa substância material não pode ser conhecida em sua plenitude, porque o que sabemos dela advém do processo de percepção.

“Ser é ser percebido”

(esse est percipi)

Portanto, a percepção é o fundamento da realidade. Uma vez que Berkeley acredita que todas as qualidades dependem da mente para existir, negando a distinção entre qualidades primárias e secundárias feita por Locke.

Assim, o mundo material só existe enquanto é percebido, porque as coisas são percebidas continuamente, seja pelo indivíduo ou por Deus, o que garante a permanência dos objetos mesmo quando não os estamos percebendo.

Berkeley via sua filosofia como uma forma de proteger a fé religiosa do ceticismo e do materialismo. Ele acreditava que sua doutrina fortalecia a relação entre o espírito humano e Deus, o qual atua como a mente suprema que ordena e sustenta o mundo.

David Hume: ceticismo e causalidade

David Hume (1711–1776) desenvolveu um forte ceticismo sobre a razão e a possibilidade do conhecimento certo.

Em sua obra Investigação Sobre o Entendimento Humano (1748), ele propõe uma divisão entre dois tipos de conteúdos mentais:

  • Impressões: dados imediatos da experiência;
  • Ideias: cópias enfraquecidas das impressões.

Com isso, Hume estabelece que não podemos conhecer nada que não derive de forma direta ou indireta da experiência.

Uma de suas contribuições mais importantes é a crítica à ideia de causalidade. Nela, Hume diz que na experiência não há nenhum indicativo da conexão necessária entre causa e efeito.

O que se chama de causa é apenas o hábito ou costume de associar eventos que ocorrem repetidamente.

Para exemplificar: a crença no nascer do sol todos os dias não é racionalmente justificável, mas sim baseada em uma expectativa construída pela repetição.

“O homem é um ser dotado de razão e, como tal, recebe da ciência o seu alimento e nutrição própria. Mas tão estreitos são os limites do entendimento humano que pouca satisfação se pode esperar neste particular, quer da certeza, quer da extensão das aquisições.”


Ademais, Hume aplicou esse ceticismo à identidade pessoal: não há uma impressão contínua do “eu”, apenas uma sucessão de percepções.

Ele concluiu que a razão é limitada e que muitas crenças não têm fundamento racional, mas são resultado de sentimentos, hábitos e costumes.

A filosofia de Hume influenciou, posteriormente, Kant e a tradição filosófica, trazendo uma nova perspectiva sobre o conhecimento, a ciência e os limites da razão humana.

Empirismo x Racionalismo

Empirismo e racionalismo são correntes filosóficas com ideias opostas sobre a origem do conhecimento.

Enquanto o empirismo inglês afirma que todo saber vem da experiência sensível, o racionalismo, representado diz que a razão é a principal fonte do conhecimento, e que certas ideias são inatas, anteriores à experiência.

Confira na tabela abaixo um comparativo entre as duas vertentes filosóficas:

Empirismo Racionalismo
Ideia central Conhecimento vem da experiência Conhecimento vem da razão
Fonte do saber Sentidos e percepções Intelecto e dedução lógica
Conceitos principais Impressões, ideias, hábito, tábula rasa Ideias inatas, dedução, clareza e distinção
Características Indutivo, observacional, concreto Dedutivo, abstrato, matemático
Discordância de ideias Origem e validade do conhecimento
Concordância de ideias Compreensão do como conhecemos
Principais autores Locke, Berkeley, Hume Descartes, Spinoza, Leibniz


Impactos do empirismo na ciência e na modernidade

O empirismo foi fundamental na formação do pensamento moderno, influenciando a metodologia científica e as ciências humanas.

Ao defender que todo conhecimento vem da experiência sensível, os empiristas colocaram a observação, a experimentação e a verificação dos fatos no centro das questões filosóficas.

Isso influenciou o desenvolvimento de um método científico baseado nessas características, que proporcionou a formulação de hipóteses testáveis, além de favorecer análises empíricas dos fenômenos sociais e humanos.

O legado do empirismo fortaleceu a valorização do conhecimento científico, da experiência e da observação da realidade. Também questionou a ideia de conhecimento inato e colocou em debate os limites da razão.

Sendo assim, o empirismo trouxe uma visão moderna do saber, mais crítica e empírica.

O legado do empirismo hoje

Quando o empirismo afirma que o conhecimento nasce da experiência, ele nos alerta que para compreender o mundo é preciso vivência, observação e abertura ao novo.

Refletir sobre como pensamos, sentimos e julgamos é uma das principais propostas do pensamento filosófico. É a partir desses tensionamentos e questionamentos que vamos sendo capazes de compreender melhor o mundo, nós mesmos e como podemos lidar de forma racional com as questões que nos afligem.

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Referências:

Vários autores. História das grandes ideias do mundo ocidental. Volume 2.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia.

SCRUTON, Roger. Introdução à filosofia moderna

Filosofia: o que é, conceitos fundamentais e principais filósofos
Paula Delgado
Filosofia: o que é, conceitos fundamentais e principais filósofos
Entenda o que é Filosofia, como surgiu e para que serve. Veja os principais conceitos, grandes pensadores em diferentes épocas e dicas para estudar!

Você já se questionou sobre o mundo ou sobre si mesmo? Então, já deu o primeiro passo rumo à filosofia.

Nascida na Grécia antiga, ela é fruto de uma reflexão lógica sobre a vida e o saber.

Mais do que um conceito, a filosofia se aplica no cotidiano, estimulando o autoconhecimento, pensamento crítico e soluções mais racionais para os desafios do dia a dia.

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O que é filosofia?

Primeiramente, esta é uma pergunta filosófica. A filosofia estuda o mundo, a existência humana e esse questionamento é um retorno em si mesma. Porque filosofar é exatamente fazer perguntas que nos tiram da zona de conforto.

Apesar deste começo filosófico, o conceito de filosofia é uma tentativa de explicar de forma racional aspectos fundamentais da nossa vida.

O termo filosofia vem das palavras philia (amor) e sophia (sabedoria), então, philosophia (amante da sabedoria).

A filosofia parte de uma reflexão crítica constante, baseada no raciocínio lógico e na argumentação sobre seus fundamentos, métodos e objetivos.

Para que serve a filosofia?

A filosofia tem um caráter problematizador. Perguntar para que ela serve já expressa a sua função questionadora.

Se considerarmos a utilidade da filosofia de forma prática e imediata, talvez ela não se evidencie de maneira concreta. Seus resultados não são imediatos ou palpáveis, mas se transformam ao manter o pensamento em movimento.

Além disso, ela está presente na ética e na política, já que nos auxilia na reflexão sobre questões sociais, certo e errado, direitos e deveres.

Ademais, também pode ser um instrumento de autoconhecimento, ajudando-nos a enfrentar os conflitos da vida. Uma corrente filosófica que está diretamente ligada a isso e pode ser aplicada no cotidiano é o estoicismo.


A origem da filosofia

A filosofia surgiu no século VI a.C, na Grécia, com Tales de Mileto, primeiro homem ocidental a questionar as crenças mítico-religiosas da época.

Anteriormente, os fenômenos eram explicados por mitos, que exerciam a função de coordenar as relações humanas e explicar eventos naturais.

Apesar de diversos fatores terem contribuído para o nascimento da filosofia, como a navegação marítima, a compreensão do calendário, uso da moeda, o principal deles foi a criação das pólis (cidades-estado), que possibilitaram o debate público e o exercício do pensamento racional.

A partir dessa nova organização da sociedade grega, surgiram questionamentos racionais quanto às exigências de uma vida social mais complexa.

Entretanto, este momento não significou uma ruptura, mas uma passagem gradual para investigação racional da realidade.


Conheça os períodos da filosofia

A filosofia, como campo de conhecimento, está em constante transformação e pode ser dividida em quatro períodos.

Filosofia antiga

A filosofia antiga se divide em pré-socrática e socrática.

A filosofia pré-socrática buscava explicações racionais sobre a origem do universo - cosmos - advindas dos fenômenos naturais. Como Tales de Mileto, que via a água como o princípio fundamental da natureza (arché).

Por outro lado, a filosofia socrática, iniciada por Sócrates, focava na busca pela verdade e no desenvolvimento do pensamento crítico.

Portanto, Sócrates mudou o foco da investigação filosófica do cosmo para as questões relativas ao homem.

Filosofia medieval

Influenciada pelo cristianismo, a filosofia medieval buscava conciliar fé e razão. Era uma construção de pensamento enraizada na antiguidade, voltada para responder aos problemas de sua época, tempo em que as questões religiosas ainda eram fundamentais.

A filosofia medieval é tradicionalmente dividida em dois períodos: a patrística e a escolástica.

A patrística se desenvolveu entre os séculos II e VIII, reunindo o pensamento dos Padres da Igreja, como Santo Agostinho.

Já a escolástica, do século V ao XV, teve seu desenvolvimento nas escolas, destacando-se Tomás de Aquino, com a intenção de sistematizar o pensamento cristão.

Filosofia moderna

A filosofia moderna tem início no Renascimento e termina com o Iluminismo, tendo como principais marcas o rompimento com a tradição medieval e a valorização da razão, considerando-a fonte de conhecimento.

Também proporcionou o surgimento do Iluminismo a partir de grandes debates sobre liberdade, ética, política e ciência.

Filosofia contemporânea

A filosofia contemporânea começou no século XIX e está presente até os dias de hoje.

Além de sua vastidão temporal, também apresenta uma diversidade de pensamentos. Entretanto, sua máxima é a busca pela reflexão sobre a realidade e as suas mudanças.

Em vez de buscar verdades absolutas, foca na complexidade da existência humana, na linguagem, na subjetividade e no contexto histórico. Assim, correntes como o existencialismo, o marxismo e o niilismo surgiram.


Principais correntes filosóficas

Como a filosofia está em constante desenvolvimento, novas abordagens surgiram, formando diferentes escolas de pensamento influenciadas pelos filósofos que, ao longo do tempo, abordaram questões fundamentais da existência humana.

Vamos conhecer quais as principais correntes filosóficas:

Estoicismo

Fundado por Zenão de Cítio durante o período helenístico, o estoicismo é uma doutrina filosófica que busca a virtude, valoriza o autocontrole e a aceitação do destino, tendo a razão como caminho para o fim principal, a felicidade.

Racionalismo

O racionalismo é uma vertente filosófica da era moderna que coloca a razão como principal fonte de conhecimento, valorizando as ideias inatas e o raciocínio fundamentado na razão.

Empirismo

Diferentemente do racionalismo, o empirismo é uma teoria filosófica que defende que o conhecimento vem a partir da experiência sensorial e não de ideias inatas. Ou seja, a origem de todas as ideias vem da relação do homem com o ambiente externo.

Positivismo

O positivismo é uma corrente filosófica que coloca o conhecimento científico como a única forma verdadeira de conhecimento. Com isso, prioriza a lógica e os fatos, recusando explicações metafísicas.

Existencialismo

O existencialismo surgiu no final do século XIX, na Europa. Essa corrente filosófica tem como foco a experiência humana e a existência individual. Portanto, valoriza a liberdade e a responsabilidade pessoal diante do sentido da existência.

Marxismo

O marxismo é uma teoria filosófica, social e econômica que entende a sociedade a partir da luta de classes, propondo a superação do capitalismo.

Utilitarismo

Utilitarismo é uma doutrina ética que tem como ideal final promover o bem maior para o maior número de pessoas possível, minimizando o sofrimento e maximizando o bem-estar da sociedade.

Niilismo

Uma das principais características do niilismo é o afastamento de valores absolutos, questionando, principalmente, a existência de um propósito na vida, que são, geralmente, atribuídos à moral absoluta e ao próprio ser.

Fenomenologia

Fenomenologia estuda a experiência humana a partir daquilo que aparece na consciência, buscando entender como os fenômenos se manifestam na mente. A descrição é parte fundamental, porque busca do próprio entender a experiência a partir do próprio fenômeno.


Áreas da filosofia

A filosofia não é uma coisa única, ela é composta por várias áreas, como a metafísica, ética, política e tantos outros.

Entenda um pouco mais sobre algumas áreas da filosofia:

Metafísica

A metafísica é uma área da filosofia que estuda todos os temas relacionados ao ser humano. Investiga a natureza fundamental da realidade, questionando conceitos como a existência, o tempo, o espaço e a casualidade.

Epistemologia

A epistemologia é um campo que estuda o conhecimento, investigando sua origem, natureza e limites.

Ética

A ética busca compreender os princípios que orientam o comportamento humano, a partir da moralidade, ou seja, o que é certo e errado, bom ou mau. Além de buscar compreender como as pessoas agem em diferentes situações morais.

Estética

A estética investiga o belo e a arte a partir de uma perspectiva sensorial, ou seja, como as pessoas percebem e interpretam essas expressões artísticas.

Filosofia política

A filosofia política analisa formas de governo, organização social e a relação entre o indivíduo e o Estado. Para isso, estuda temas como a natureza do poder, o governo, a justiça, a liberdade e os direitos.

Lógica

A partir da busca pela compreensão do pensamento e da linguagem, essa vertente filosófica estuda a natureza lógica, os princípios e fundamentos do raciocínio válido.

Filosofia da religião

Essa corrente examina o fenômeno religioso de uma perspectiva racional, buscando compreender questões como a existência de Deus, a fé, a moral religiosa e a relação entre razão e crença.

Conheça os principais filósofos e suas contribuições

Sócrates

Sócrates foi um filósofo grego, considerado o pai da filosofia ocidental. Acreditava que a sabedoria começa no indivíduo e ficou conhecido por suas ideias sobre ética, imoralidade e pelo método dialético de questionamento, influenciando profundamente o pensamento filosófico.

“Conhece-te a ti mesmo.”

Platão

Platão, discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, contribuiu para a filosofia ocidental, especialmente com a teoria do mundo das ideias, que seria o mundo da perfeição e da alma.

“Existe em cada um de nós, mesmo aqueles que parecem ser os mais moderados, um tipo de desejo que é terrível, selvagem e sem lei.”

Aristóteles

Aristóteles, discípulo de Platão e mestre de Alexandre o Grande, influenciou profundamente a filosofia ocidental. Suas grandes contribuições estão nas áreas política, lógica e metafísica, defendendo, na teoria da virtude, que o equilíbrio é o caminho para a felicidade.

“Somos o que repetidamente fazemos. A excelência, portanto, não é um feito, mas um hábito”.

Kant

Immanuel Kant foi um dos principais filósofos do Iluminismo e fundador da filosofia crítica, que buscou unir racionalismo e empirismo. Em sua frase célebre, mostra que razão e experiência são complementares na construção do conhecimento humano.

“Pensamentos sem conteúdos são vazios; intuições sem conceitos são cegas. “

Nietzsche

Friedrich Nietzsche é frequentemente associado ao niilismo e ao existencialismo. Criticava valores morais tradicionais, especialmente os religiosos. Colocou a “vontade de poder” como a força vital que impulsiona o ser humano a alcançar seu pleno potencial.

“Deus está morto”

René Descartes

Descartes acreditava que a razão era a única fonte segura de conhecimento. Seu principal conceito, o “Método”, propunha um caminho para alcançar o conhecimento verdadeiro através de uma abordagem sistemática e rigorosa.

“Penso logo existo “

Karl Marx

Karl Marx foi um filósofo alemão que teve como uma de suas principais contribuições o materialismo histórico, que afirmava que a história da humanidade é definida pela luta de classes.

“A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes“

Epicuro

Epicuro, filósofo grego, fundou o epicurismo, que considera o prazer um bem supremo. Para ele, a felicidade podia ser alcançada através da busca de prazeres simples e moderados.

“A felicidade não é atingida por grandes riquezas, mas pela ausência de dor no corpo e perturbação na alma “.

Rousseau

Jean-Jacques Rousseau, filósofo do Iluminismo, ficou conhecido por suas reflexões sobre liberdade, sociedade e educação. Sua teoria contratualista defende que a soberania pertence ao povo e que o homem é naturalmente bom, mas corrompido pela sociedade.

“O homem nasce livre, e em todo lugar está acorrentado"

Jean-Paul Sartre

Jean-Paul Sartre foi um filósofo existencialista. Suas principais ideias são sobre liberdade e responsabilidade individual. Um grande defensor da liberdade, colocava-se contrário a toda amarra social.

“Estamos condenados a ser livres.”

Michel Foucault

Michel Foucault foi um filósofo francês conhecido pelo conceito de poder, através da investigação de instituições sociais, desde escolas a hospitais, que tentam moldar o comportamento das pessoas através da disciplina e do poder.

“Onde há poder, há resistência.



Como estudar filosofia?

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Dicas de leitura para começar:

  • Diálogo de Fédon - Platão
  • Retórica - Aristóteles
  • Ética a nicômaco - Aristóteles
  • O mundo de Sofia - Jostein Gaarder


Além disso, busque aplicar os conceitos filosóficos no cotidiano para internalizá-los, permitindo uma compreensão mais profunda da realidade e de si. Exercite a escuta ativa e, como propunha Sócrates, dialogue e debata sobre os temas, isso exercita o pensamento crítico.


Pensar é preciso

Por fim, a filosofia nos ensina que pensar é essencial para a vida. Assim que nos desafiamos a questionar, refletir e buscar a verdade, é nela que encontramos as ferramentas para pensarmos de forma mais clara e racional.

Quando nos permitimos ter acesso e cultivar o conhecimento, ampliamos nossos horizontes, tendo uma visão mais complexa e completa do mundo. A prática filosófica nos liberta porque nos ensina a pensar, e isso nos guia para uma existência mais plena.

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Referências

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 12. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

SILVA, M. R. da. Filosofia medieval: uma breve introdução. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, 2019.

UOL EDUCAÇÃO. Filosofia. [S.l.]: UOL Educação].

ATENA EDITORA. Existencialismo: fundamentos e conceitos da existência para a atualidade. [S.l.]: Atena Editora, 2024.


SANTOS, M. C. dos; SILVA, R. A. da. A importância da filosofia na formação do enfermeiro. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 72, n. 6, p. 1539-1543, 2019.

Artes, Literatura e História
Iluminismo: o que foi, resumo, conceitos e pensadores
Tainá Voltas
Iluminismo: o que foi, resumo, conceitos e pensadores
Entenda as diferenças das três tradições do iluminismo e como o movimento transformou paradigmas para além da Europa e da Revolução Francesa.

Marcado por ser um grande transformador de paradigmas, o Iluminismo estabeleceu uma interseção com as propostas antropocêntricas para se firmar como um movimento filosófico, intelectual e cultural que acreditava na valoração da razão e do conhecimento como meios autênticos para a conquista da liberdade, justiça e felicidade.

Desenvolvido no cenário da Europa Ocidental, ao longo dos séculos XVII e XVIII (também conhecido como Século das Luzes), o Iluminismo criticou duramente as concepções de verdade da Idade Média, as quais davam à fé e à religião papeis centrais na compreensão do mundo.

Na época, o teocentrismo (doutrina que colocava Deus no centro e que perdurava desde o século IV) abria espaço para que o antropocentrismo (homem no centro) se fortalecesse e para que os filósofos estruturassem discursos e teorias capazes de colocar a legitimidade dos poderes absolutistas em xeque.

Tratou-se, portanto, de uma verdadeira crise dos valores propagados até então, combinada com uma proposta de revisitação aos pensamentos da Grécia Antiga sobre a necessidade da racionalidade para as tomadas de decisão.

Embora seja muitas vezes tratado como um movimento único, o Iluminismo teve várias vertentes em seus diferentes locais de propagação, agindo, inclusive, sobre as Américas e influenciando o pensamento moderno, suas democracias e o cientificismo.

Conheça todas as especificidades desse marco histórico no Guia Iluminista da Casa do Saber. Você irá encontrar por aqui:



O que é o Iluminismo

Como já abordamos anteriormente, o iluminismo é caracterizado como um movimento intelectual dos séculos XVII e XVIII, reconhecido por defender a importância da razão e do conhecimento para a observação e experimentação da vida.

A crença de um mundo regido exclusivamente pelos desígnios de Deus e, sobretudo, pela Igreja Católica era substituída pelas demandas por descentralização de poder e por justificativas racionais para as dinâmicas cotidianas.

Em outras palavras, o iluminismo contrastou a “fé” e a “razão”, questionando os privilégios do clero e das monarquias, bem como desenvolveu teorias e discursos que colocaram o ser humano como vetor responsável por suas ações, fossem elas culturais, filosóficas, sociais ou históricas.

Na prática, a partir do iluminismo e de seus ideais racionalistas, as sociedades modernas passaram a valorizar a ciência como forma de compreender as questões e de solucionar problemas do dia a dia.

Com isso, o gradativo afastamento das explicações místicas e dogmáticas foi um produto lógico desse novo modelo de pensamento, que mitigou também o controle e a opressão característicos dos períodos inquisitivos da Idade das Trevas.

O movimento iluminista deu origem a transformações profundas em diversas áreas, como nos campos político, econômico e cultural, servindo como base e referencial para diversos eventos históricos significativos.

A Revolução Industrial e a Revolução Francesa (com seu lema “liberdade, igualdade e fraternidade"), os movimentos de independência dos Estados Unidos e do Brasil são apenas alguns exemplos desses grandes marcos.

Além disso, o iluminismo propiciou a criação de constituições baseadas em direitos naturais, impulsionou a defesa de governos representativos e o surgimento das democracias modernas, cujos fundamentos perduram até hoje

Um dos principais expoentes do iluminismo alemão, Immanuel Kant formulou um conceito lógico para o movimento, no texto “Resposta à pergunta: Que é o iluminismo?”:

O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude (em português, “ouse saber" ou "atreva-se a conhecer)”. (KANT, 1995 apud WEIMANN, 2015)

Pintura de salão do século XVIII com intelectuais do Iluminismo reunidos para a leitura de uma tragédia de Voltaire
A obra de Anicet Charles Gabriel Lemonnier retrata o momento da leitura da tragédia de Voltaire, "O Órfão da China", sendo uma das pinturas sobre o iluminismo mais conhecidas da história da arte. (Fonte: Domínio Público)


Podemos dizer então que o iluminismo foi um movimento complexo, que se desenvolveu nas diversas frentes sociais (política, cultural, econômica, religiosa) através de uma filosofia que dava protagonismo aos seres humanos e não mais às divindades, ao cristianismo e à Igreja Católica.

Articulou a busca pelo conhecimento através da razão como sua principal pauta, priorizando a ciência, o empirismo e as explicações lógicas para fenômenos sociais e da natureza.

Seus principais expoentes, Voltaire, David Hume, Kant, entre outros contribuíram para uma revolução intelectual e para transformação de paradigmas importantes, questionando, sobretudo, as formas de governos absolutistas e os privilégios legados às monarquias e ao clero.

Os reflexos do movimento filosófico iluminista foram tão significativos ao longo do século XVIII, que o período foi reconhecido como Século das Luzes.

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Contexto do Iluminismo: como surge o movimento?

O iluminismo não foi uma ruptura abrupta, mas o ápice de transformações que se desenvolviam há séculos na Europa Ocidental.

Para se ter uma ideia, o pensamento racionalista já estava presente na Grécia Antiga, defendido por nomes importantes como Sócrates, Platão e Aristóteles, os quais enfatizavam a lógica, a ética e a busca pelo conhecimento como instrumentos para a compreensão do mundo.

Os romanos, por sua vez, ao herdarem essas ideias, as adaptaram e exerceram uma influência direta nos sistemas de leis utilizados pelo direito moderno.

Entretanto, com a ascensão do cristianismo no século IV, o teocentrismo ganhou destaque e passou a ser a principal norma das sociedades, colocando a fé e a Igreja Católica no centro da vida social, política e espiritual, especialmente ao longo da era medieval.

Somente a partir dos avanços científicos provocados pelas descobertas que desafiavam o status quo da época (entre os séculos XVI e XVII), como o movimento da Terra - observado por Copérnico e Galileu Galilei, ou pelas leis de Newton e a invenção de equipamentos como o telescópio e o microscópio, é que o teocentrismo passou a ser novamente questionado.

Associadas às Grandes Navegações e ao legado renascentista, essas mudanças retomaram o incentivo da busca pela razão como ferramenta central de investigação.

A colcha de retalho dessas descobertas científicas, com o resgate histórico e as mudanças culturais gradativas, criou as condições ideais para o surgimento do iluminismo e para a sua filosofia de combate aos valores do Antigo Regime.

Facilite a sua compreensão acerca do iluminismo a partir do seguinte resumo comparado:

Resumo do Iluminismo

Idade Média (teocentrismo) Iluminismo (antropocentrismo)
O teocentrismo tinha a religião (Deus) e, posteriormente, a Igreja Católica como bússolas, sendo aspectos que controlavam não só o campo espiritual e ético, como o político.

Através do medo e do misticismo, o modelo de pensamento da época compelia as sociedades a se comportarem de acordo com os interesses das monarquias absolutistas (forma de governo que concentrava o poder nas mãos do rei e da nobreza) e do alto clero.

Desenvolveu-se ao longo dos séculos V ao XV.
Marcou o questionamento das verdades teocêntricas, solidificando o antropocentrismo e o projeto humanista

A razão era o instrumento legítimo para o conhecimento e para a boa aventurança, “iluminando” as explicações outrora associadas às divindades e à natureza.

Caracterizou-se pela crítica ao absolutismo e à sua concentração de poder que resultava nas sociedades estamentais.

Além disso, buscava pela igualdade, autonomia intelectual e direitos naturais, bem como pelo fortalecimento do pensamento crítico e da liberdade de escolha.

Refletiu nos diversos eventos revolucionários da Idade Moderna e foi a principal base das democracias modernas.

Desenvolveu-se durante o século XVII e XVIII - conhecido como Século das Luzes.


Diferenças entre o Iluminismo Francês, Inglês e Americano a partir de seus principais pensadores

O iluminismo foi um movimento bastante complexo, apresentando características específicas alinhadas a cada contexto cultural no qual se estabeleceu.

Dessa forma, refletiu as prioridades e os desafios de cada sociedade, promovendo em todas elas alterações importantes.

Entre as tradições que mais se destacaram nesse sentido, o iluminismo francês, britânico e americano possuem como singularidades os pontos abordados abaixo:

1. Características do iluminismo Francês

Foi profundamente marcado pelo racionalismo e pelo combate às estruturas tradicionais de poder, como a monarquia absolutista e a Igreja Católica.

A razão era a ferramenta para a reconstrução de uma sociedade mergulhada, à época, na insatisfação econômica e social.

Foi a partir dos ideais iluministas que a Revolução Francesa (1789) tomou forma e registrou na História a sua busca por liberdade, igualdade e fraternidade.

A Queda da Bastilha, inclusive, evento caracterizado pelo protesto popular na prisão e fortaleza militar que simbolizava o absolutismo do Antigo Regime francês, assinalou não só o início da própria Revolução Francesa, como a transição da Idade Moderna para a Contemporânea.

Pintura em tela do grande evento iluminista queda da bastilha
Obra "Tomada da Bastilha e prisão do governador M. de Launay", 14 de julho de 1789. (Fonte: Domínio Público)



Seus principais filósofos iluministas foram:

  • René Descartes (1596 – 1650): responsável pelo método de pesquisa cartesiano, cujo objetivo era duvidar de tudo aquilo que era tido como verdade. Um fato deveria ser verificado, sintetizado e iluminado antes de comprovado. Desafiou as certezas dogmáticas, buscando uma nova base lógica para a verdade. "Penso, logo existo"
  • Voltaire (1694 - 1778): criticou os privilégios das aristocracias e dos religiosos, disseminando a liberdade de expressão e o combate à intolerância. Foi perseguido e, por isso, exilou-se na Inglaterra, onde teve contato com John Locke.
  • Montesquieu (1689- 1755): em O Espírito das Leis, o filósofo propôs a separação dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) pela primeira vez, argumentando acerca de sua eficácia e prevenção de abusos de autoridade.
  • Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778): teceu a tese do homem natural, sustentando que a sociedade era a perversão desse sujeito, corrompendo-o de sua vocação para o bem e para o convívio harmônico com a natureza. Também foi um crítico da propriedade privada, que, segundo a sua perspectiva, era a responsável pela desigualdade dos homens.


2. Características do Iluminismo Britânico

A busca incessante pela razão não era a principal questão do iluminismo britânico. Parte da "era da benevolência", o iluminismo dessa região voltou-se à ética das virtudes e à moralidade, expandindo o seu foco para além da priorização da racionalidade.

A filosofia política britânica se destacou essencialmente pelos temas do liberalismo e pela defesa dos direitos individuais

Teve como principal pensador iluminista:

  • John Locke (1632 - 1704): considerado o pai do liberalismo, Locke defendeu a ideia de que o conhecimento humano era derivado de uma experiência sensorial. Criticou o governo absolutista e propôs a famosa teoria do contrato social, segundo a qual a sociedade civil seria formada a partir de um pacto entre as pessoas e o Estado. Em condições justas, o filósofo acreditava que as sociedades abriam mão de seus direitos individuais para, de modo consentido, gozar da proteção oferecida pelas instituições estatais.


3. Características do Iluminismo Americano

Enquanto isso, o iluminismo americano encontrou um forte apelo na liberdade política e nos direitos naturais, destacando-se pela busca da independência e pela criação de um novo modelo de governo.

Foi conhecido pela tese da “política da liberdade”, tendo a Independência (declarada no dia 4 de julho de 1776) como seu evento mais importante.

Entre os pensadores iluministas relevantes da época estavam:

  • Thomas Jefferson (1743 - 1826), John Adams (1735 - 1826) e Benjamin Franklin (1706 - 1790): estiveram envolvidos nas questões de liberdade política e nas ideias sobre um governo baseado na razão e nos direitos inalienáveis do homem. Essas ideias se materializaram na Declaração de Independência e ajudaram a moldar os princípios da Constituição dos Estados Unidos.


Além desses nomes, Immanuel Kant e Adam Smith também foram importantes sistematizadores do pensamento iluminista.

O alemão Kant (1724 - 1804), por exemplo, foi fundamental para o desenvolvimento da ética e da epistemologia, além de ser o criador do imperativo categórico, uma medida de princípio universal e racional capaz de sustentar as ações morais.

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Para ele, a percepção da realidade dependia tanto das experiências vividas quanto das individualidades de cada sujeito, o que desafiava diversas abordagens anteriores.

Por sua vez, Adam Smith (1723 - 1790), filósofo escocês, é amplamente reconhecido como pai da economia moderna. Foi na obra A Riqueza das Nações (1776), que o filósofo iluminista introduziu o conceito de economia de mercado livre, posicionando a busca individual pelo lucro, por meio da mão invisível do Estado, como uma ferramenta para o bem-estar coletivo.

O iluminismo também produziu seus efeitos no Brasil, influenciado a Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana e o artigo 5º da Constituição Federal.

Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:


Veja também: D. Pedro I, Um Príncipe Dividido - a trajetória do monarca que se identificou e apoiou o desejo dos brasileiros pela Independência, liderando a separação entre os dois Reinos.



Um outro olhar para o iluminismo: a crítica a partir de um referencial colonial.

Embora tenha sido revolucionário em diversos aspectos, o iluminismo esteve imerso em contradições relevantes, especialmente quando observamos as suas bases a partir de um referencial decolonial.

A crítica mais pujante ao movimento reside na contraposição dos seus ideais de liberdade e igualdade ao tratamento dado às populações africanas e indígenas, como aponta o doutor em Filosofia pela UFRJ, Renato Nogueira.

Entre as crenças iluministas, havia uma perspectiva de inferiorização desses povos, responsável por legitimar o seu controle pelas colônias e pelos movimentos escravagistas.

Nesse contexto, Frantz Fanon (1925 -1961) assume um papel fundamental ao propor uma revisão do humanismo tradicional, apontando suas falhas em reconhecer e valorizar as identidades dos povos colonizados e escravizados.

Trata-se de uma abordagem fundamental para compreender os impactos do humanismo e do iluminismo para além do continente europeu.

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Referências

COSTA, Abraão Lincoln Ferreira. Relações entre o iluminismo alemão e a concepção goethiana de formação. Água Viva, v. 3, n. 1, p. 12184, jan.-jul. 2018. DOI: 10.26512/aguaviva.v3i1.12184.

WEINMAN, Carlos. O conceito de iluminismo em Kant e sua implicação com a moralidade e a política. Unoesc & Ciência - ACHS, Joaçaba, v. 6, n. 2, p. 201-212, jul./dez. 2015.

Surrealismo: características, obras e principais artistas
Xavana Celesnah
Surrealismo: características, obras e principais artistas
Entenda o que é o surrealismo, como surgiu, principais características, artistas como Dalí e Magritte e como o movimento revolucionou a arte.

O surrealismo foi uma das mais ousadas vanguardas europeias do século XX. Inspirado na psicanálise de Freud e influenciado pelos traumas da Primeira Guerra Mundial, o movimento propôs uma revolução na arte: liberar o inconsciente e transformar os sonhos, desejos e pensamentos automáticos em criações artísticas.

Mais do que um estilo visual, o surrealismo foi uma filosofia, um modo de ver e questionar o mundo. Com artistas como Salvador Dalí, André Breton, René Magritte e Max Ernst, a arte surrealista transformou a pintura, e também deixou um legado na literatura, no cinema, na fotografia e no design.

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Surrealismo: Origem, Características e Principais Artistas

Para o surrealismo, mais do que representar a realidade de forma lógica, o essencial era dar forma às imagens vindas do inconsciente, dos sonhos e da imaginação. Essa vanguarda modernista buscava romper com a razão e explorar os territórios do irracional e do fantástico.

Um dos maiores ícones do movimento é a obra A Persistência da Memória (1931), do pintor espanhol Salvador Dalí, que sintetiza características marcantes do surrealismo, como a justaposição de elementos ilógicos, a distorção da noção de tempo e a atmosfera onírica.

O surrealismo não se restringiu às artes visuais: expandiu-se para a literatura, o cinema, a fotografia e até o design, influenciando profundamente a cultura do século XX. Neste artigo, você vai descobrir como surgiu a arte surrealista, conhecer seus principais artistas e conferir indicações de cursos para se aprofundar nesse universo instigante da Arte Moderna.


O que é Surrealismo?

O surrealismo foi um movimento artístico que surgiu no início do século XX, com raízes na Europa, especialmente na França, e foi profundamente influenciado pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud e pela atmosfera social pós Primeira Guerra Mundial.

Em um momento em que o mundo buscava novos sentidos e formas de compreender a realidade, os surrealistas propunham uma arte que ultrapassasse os limites da razão e da lógica, mergulhando no universo do inconsciente, dos sonhos e das emoções reprimidas.

O termo surrealismo deriva do francês “surréalisme”, que significa “acima do real” , uma definição que expressa bem o desejo de revelar uma realidade mais profunda, oculta sob a superfície do cotidiano. Para os artistas surrealistas, a imaginação era uma ferramenta libertadora, capaz de romper com as normas sociais, morais e estéticas, revelando verdades interiores que a racionalidade não conseguia alcançar.

Em contraste com movimentos anteriores, como o realismo e o impressionismo, que buscavam representar o mundo visível, os surrealistas adotavam técnicas como o automatismo psíquico, a justaposição de imagens improváveis e o ilógico deliberado, criando composições que desafiavam a percepção comum. Obras como Os Elefantes (1948), de Salvador Dalí, e os poemas de André Breton, o principal teórico do movimento, são exemplos marcantes dessa estética onírica e provocadora.

Mais do que um estilo, o surrealismo representou uma verdadeira revolução no modo de pensar e fazer arte — uma ruptura com a lógica convencional, uma celebração do instinto, do acaso e da liberdade criativa.



Como Surgiu o Surrealismo?

O surrealismo emergiu na França em 1924, em um cenário marcado pelo colapso de antigas certezas. O trauma deixado pela Primeira Guerra Mundial expôs os limites da razão humana, da ciência e dos valores burgueses que até então sustentavam a cultura ocidental.

Em meio à desilusão com o racionalismo, artistas e intelectuais buscavam novas formas de entender a realidade, não mais pelas lentes da lógica, mas por meio dos impulsos instintivos, dos sonhos e do inconsciente.

Esse novo olhar encontrou terreno fértil nas experiências do dadaísmo, movimento radical e anárquico que surgiu como reação direta à guerra e às estruturas culturais que a permitiram. O dadaísmo rejeitava toda forma de arte institucionalizada e questionava os fundamentos da linguagem, da estética e até da razão.

O surrealismo, embora menos destrutivo em sua essência, herdou desse espírito revolucionário a vontade de romper com a lógica dominante, canalizando essa energia para uma criação mais simbólica, subjetiva e imaginativa.

O ponto de partida oficial do surrealismo foi o Manifesto Surrealista, publicado por André Breton em 1924. Breton, fortemente influenciado pelas ideias de Freud e pelos métodos psicanalíticos, propôs o automatismo psíquico como forma de criação artística, um processo em que a mente é liberada do controle consciente, permitindo que pensamentos, imagens e emoções fluam livremente, como num sonho.

A partir desse manifesto, formou-se um grupo de poetas, pintores, cineastas e pensadores que viam no surrealismo não apenas uma estética, mas uma filosofia de vida: um caminho para libertar a imaginação humana das amarras da razão, da moral tradicional e da lógica linear.

O surrealismo não nasceu como um movimento isolado, mas como parte de um processo mais amplo de transformação do pensamento artístico no século XX. Ao lado de outras vanguardas europeias, ele ajudou a redefinir o papel da arte, propondo uma aproximação entre criação artística e pulsões interiores, uma arte que se volta não ao mundo externo, mas às profundezas da psique.

Para conhecer melhor as vanguardas do modernismo, assista ao curso A Arte Moderna Pelas Obras de Van Gogh, Picasso, Duchamp e Pollock, disponibilizado pela Casa do Saber+. O curso é facilitado pelo doutor em História da Arte pela Unicamp, Felipe Martinez.

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O Manifesto Surrealista e André Breton

Capa do Manifesto Surrealista de André Breton, obra fundadora do movimento surrealista
Livro Manifesto Surrealista, de André Breton, marco teórico do surrealismo

Poeta, teórico e figura central do movimento, André Breton é amplamente reconhecido como o "pai do surrealismo". Foi ele quem, em 1924, deu forma e direção à nova vanguarda artística com a publicação do Primeiro Manifesto Surrealista, obra que nomeou o movimento e delineou seus princípios fundamentais.

No manifesto, Breton define o surrealismo como “automatismo psíquico puro, pelo qual se pretende exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento.”

Essa definição reflete a essência do projeto surrealista: libertar o pensamento de qualquer censura, seja ela moral, lógica ou estética, para que as imagens e ideias emergissem diretamente do inconsciente, sem filtros da razão ou da convenção social.

Inspirado pelas descobertas da psicanálise, Breton via na arte uma ferramenta para acessar zonas ocultas da mente humana e dar voz ao desejo, ao instinto e ao irracional.

Mais do que uma proposta artística, o surrealismo era, para Breton, uma atitude diante da vida, uma forma de romper com os mecanismos opressores da sociedade e de reconectar o ser humano com sua natureza mais profunda e instintiva.

Características do Surrealismo

A arte surrealista é marcada por uma estética provocadora, carregada de simbolismo, imagens inusitadas e atmosferas que remetem ao universo dos sonhos.

Mais do que produzir obras belas ou coerentes, os surrealistas buscavam desestabilizar a percepção tradicional, confrontando o espectador com aquilo que é reprimido, oculto ou irracional. A intenção era libertar a mente dos limites da lógica, revelando uma realidade mais profunda, a do inconsciente.

Influenciado diretamente pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud, o surrealismo acreditava que os sonhos, os desejos e os impulsos reprimidos tinham um papel central na criação artística.

Principais características do surrealismo:

  • Exploração do inconsciente e dos sonhos: as obras surgem como janelas para a psique humana, revelando conteúdos ocultos, muitas vezes perturbadores.

  • Automatismo psíquico: uso de técnicas como a escrita ou o desenho automáticos, permitindo que ideias fluam livremente, sem intervenção da razão.

  • Imagens oníricas, simbólicas e ilógicas: as composições desafiam a lógica, criando cenários fantásticos que parecem saídos de um sonho — ou de um delírio.

  • Justaposição de elementos incongruentes: objetos e figuras que, em tese, não pertencem ao mesmo universo, são combinados de forma inesperada, criando estranhamento e tensão visual.

  • Temáticas existenciais e universais: recorrência de temas como sexualidade, morte, desejo, infância, medo, memória e identidade.

  • Crítica à racionalidade e à moralidade burguesa: rejeição dos valores sociais tradicionais e da lógica cartesiana que havia guiado o pensamento ocidental.

  • Influência da psicanálise: a arte como meio de acessar traumas, desejos reprimidos e mecanismos profundos da mente humana.



Principais Artistas do Surrealismo

O surrealismo teve nomes marcantes nas artes plásticas, literatura e cinema. Abaixo, criamos uma tabela com os principais artistas do surrealismo e suas obras representativas:

ARTISTAS SURREALISTAS CARACTERÍSTICAS OBRA ICÔNICA
Salvador Dalí Imagens hiper-realistas, obsessão pelo tempo, sexualidade e sonhos lúcidos A Persistência da Memória (1931)
René Magritte Paradoxos visuais, crítica à percepção e ao real A Traição das Imagens (1929)
Max Ernst Técnicas experimentais (frottage, decalcomania), imaginação onírica O Casamento do Céu e do Inferno (1946)
Leonora Carrington Universo simbólico e mitológico, abordagem feminina do inconsciente A Debutante (1939)
Yves Tanguy Paisagens oníricas e formas biomórficas flutuantes Indução Hipnótica (1939)


Obras do Surrealismo

Aqui estão algumas das principais obras surrealistas, que ilustram a exploração do inconsciente, dos sonhos e do irracional, elementos essenciais que definem o movimento:

A Persistência da Memória (1931) | Salvador Dalí

A Persistência da Memória de Salvador Dalí, com relógios derretidos representando o tempo fluido
A Persistência da Memória, 1931. Óleo sobre tela, 24 X 33 cm. Museu de Arte Moderna, Nova Iorque. Relógios derretidos representam a relatividade do tempo e o estado onírico.

A Traição das Imagens (1929) | René Magritte

Imagem de cachimbo com a frase Ceci n’est pas une pipe, obra A Traição das Imagens de René Magritte
A Traição das Imagens, 1929. Óleo sobre tela, 63,5 X 93,98 cm. Museu de Arte do Condado de Los Angeles. O famoso cachimbo com a frase "Isto não é um cachimbo" questiona a realidade da imagem.

Europa Depois da Chuva II (1942) | Max Ernst

Obra Europa Após a Chuva II de Max Ernst, representando paisagem surreal em ruínas orgânicas
Europa Depois da Chuva II, 1929. Óleo sobre tela, 54 X 146 cm. Museu de Arte Wadsworth Atheneum em Hartford, Connecticut. Cenário apocalíptico, mostrando o caos pós-guerra.

O Surrealismo no Brasil

Embora o surrealismo no Brasil não tenha se consolidado como uma escola formal, seus conceitos e estéticas influenciaram profundamente diversos artistas e escritores ao longo do século XX.

Por aqui, o movimento dialogou com o modernismo, o simbolismo e as tradições culturais locais, dando origem a uma produção marcada pela subjetividade, pela experimentação e por um imaginário tropical e singular.

Entre os nomes de maior destaque ligados à sensibilidade surrealista no Brasil, estão:

  • Cícero Dias: pintor pernambucano que se aproximou do surrealismo europeu em sua fase parisiense. Suas obras exploram símbolos poéticos e paisagens oníricas, muitas vezes evocando a infância e memórias pessoais em uma linguagem lírica.

  • Ismael Nery: pintor e poeta que mesclou questões filosóficas, espirituais e existenciais em suas obras, usando o surrealismo para explorar a relação entre corpo, espírito e identidade.

  • Murilo Mendes: poeta que, em sua fase inicial, adotou um lirismo onírico e fragmentado, influenciado pelo surrealismo, e que explorou as fronteiras entre a razão e o inconsciente em sua produção literária.

  • Maria Martins: escultora de projeção internacional, cujas obras, com formas orgânicas e fantásticas, abordam temas como o erotismo, o misticismo e a mitologia, aproximando-se das influências surrealistas.

  • Tarsila do Amaral: influenciada pelo modernismo, criou uma obra que explora o universo simbólico e sensorial da cultura brasileira, misturando elementos do surrealismo com o folk e o imaginário popular.


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Perguntas Frequentes sobre Surrealismo

O que é surrealismo?

É um movimento artístico e literário que valoriza o inconsciente, os sonhos e o automatismo como formas de criar arte.

Quais são as principais características do surrealismo?

Distorção da realidade, imagens oníricas, ilógica, temas como desejo, medo, morte, erotismo e crítica à racionalidade.

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Referências:

https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termos/80020-surrealismo

História da Arte: definição, períodos, tipos de arte e grandes obras
Xavana Celesnah
História da Arte: definição, períodos, tipos de arte e grandes obras
Explore a História da Arte, dos desenhos rupestres à contemporânea. Conheça os períodos artísticos, grandes obras ,artistas e para que serve a arte.

A História da Arte é um campo do conhecimento que investiga a evolução das manifestações artísticas ao longo do tempo, desde as pinturas rupestres da Arte Pré-Histórica até as expressões contemporâneas que estão presentes no nosso cotidiano. Neste texto, vamos focar principalmente na História da Arte ligada à pintura, passando pelos principais períodos da História da Arte Mundial, pelos grandes artistas e suas obras, e vamos destacar também a História da Arte no Brasil.



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O que é Arte?

Antes de mergulharmos nas divisões históricas e nas correntes artísticas, é essencial entender o conceito de arte. Arte pode ser entendida como a expressão da criatividade e sensibilidade humana, através das mais diferentes linguagens, como pintura, música, literatura, cinema, escultura, desenho, dança, entre outras. As obras de arte, em sua maioria, são realizadas com algum propósito comunicativo, seja através do visual, do sonoro ou do narrativo. Portanto, a arte transmite emoções, ideias, valores e questionamentos sobre a sociedade e a existência humana.

Cada tipo de arte tem características próprias e formas de expressar uma mensagem. Por exemplo, a pintura pode ser figurativa ou abstrata, a escultura pode ser uma representação tridimensional de figuras ou formas, e a música pode explorar diferentes ritmos e harmonias. A dança, por sua vez, se expressa por meio do movimento corporal, enquanto a literatura utiliza as palavras para criar histórias, reflexões e críticas sociais.

A arte reflete o modo de vida, as crenças e as inovações de cada época. Mas para que serve a arte? Ela vai além da apreciação estética e é fundamental na formação de nossa identidade cultural e na reflexão sobre questões sociais e políticas.

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Períodos da História da Arte

A História da Arte é geralmente dividida em períodos e movimentos que ajudam didaticamente na compreensão das manifestações de cada época. Claro que essas divisões periódicas não são rígidas e algumas formas de se fazer arte coexistiram, mas a divisão em fases facilita a identificação dos estilos e também das ideias que estavam aflorando em cada momento histórico.

Cada período tem suas características próprias, refletindo mudanças de pensamento, inovações técnicas e influências sociais. A seguir, fizemos um resumo com os principais períodos da História da Arte.

Arte Pré-Histórica

A arte pré-histórica remonta aos primórdios da humanidade e é marcada por ser uma arte desenvolvida antes da invenção da escrita. As pinturas rupestres são os principais exemplos desta fase e as famosas pinturas das cavernas de Altamira, na Espanha, e de Lascaux, na França, seguem como os grandes marcos da arte rupestre no mundo.

As pinturas nas cavernas retratam animais e algumas cenas da vida cotidiana da época, como a caça. Essas obras têm um caráter simbólico e ritualístico, também chamado de “magia simpática ou propiciatória”. São pinturas muitas vezes associadas a crenças espirituais e ao entendimento do mundo natural.

Bisonte na Caverna de Altamira, Espanha.  As pinturas rupestres da Caverna de Altamira foram realizadas entre 36.000 e 13.000 anos atrás.

Bisonte na Caverna de Altamira, Espanha. As pinturas rupestres da Caverna de Altamira foram realizadas entre 36.000 e 13.000 anos atrás.


Arte Antiga

Com o surgimento das primeiras civilizações, como as dos povos que habitaram a Mesopotâmia, o Egito, a Grécia e Roma, a arte passou a ter um caráter mais formal e funcional. A arte produzida durante a Antiguidade foi muito diversa, principalmente quando comparamos a arte do Egito Antigo com a da Grécia Antiga, por exemplo, pois os artistas egípcios produziam imagens a partir de esquemas pré-definidos, enquanto os gregos buscavam o realismo na representação dos corpos humanos.

Isso acontecia porque a arte para a sociedade egípcia possuía um significado político e espiritual que precisava ser preservado. Portanto, as pinturas tinham que seguir certos padrões, como a lei da frontalidade que era usada na representação de corpos humanos, como é possível ver na imagem abaixo:

Pintura egípcia mostrando processo de mumificação, hábito comum na sociedade do Egito Antigo.

Pintura egípcia mostrando processo de mumificação, hábito comum na sociedade do Egito Antigo.


As civilizações antigas criaram obras de arte famosas, como as esculturas de Fídias na Grécia e as pirâmides do Egito, que não só adornavam os templos e palácios, mas também tinham significados religiosos e políticos profundos. A arte antiga foi marcada pela busca da perfeição e harmonia nas formas e pela representação idealizada do corpo humano.

Arte Medieval

A Arte Medieval foi realizada no longo período que vai do século V ao século XV, e se caracteriza pela religiosidade. Durante este período, a arte cristã predominou, com grande foco em temas bíblicos e na construção de igrejas, mosteiros e catedrais, além de manuscritos iluminados, que ficaram conhecidos como iluminuras.

A arte medieval utilizou pintura em murais, vitrais e a escultura religiosa. A arte gótica e bizantina, com suas imponentes catedrais e ícones religiosos, também são destaques deste período. Este período é essencialmente marcado pela busca de transmitir mensagens espirituais e teológicas.

Cenas da Vida de Cristo - Lamentação. Giotto, obra realizada entre 1304 e 1306. 200 cm X 185 cm. Capela Scrovegni, em Pádua, Itália.

Cenas da Vida de Cristo - Lamentação. Giotto, obra realizada entre 1304 e 1306. 200 cm X 185 cm. Capela Scrovegni, em Pádua, Itália.


Arte Renascentista

A Arte Renascentista, compreendida entre os séculos XIV e XVI, marca um retorno aos ideais da Antiguidade Clássica e uma revolução na maneira de pensar a arte e a humanidade. Artistas como Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael buscaram a representação naturalista do corpo humano, explorando a perspectiva, a proporção e a luz.

A Renascença é, sem dúvida, um dos períodos mais ricos da história da arte, com grandes obras de arte famosas, como "A Última Ceia" de Da Vinci e "O David" de Michelangelo.

A Última Ceia. Leonardo da Vinci, obra realizada entre 1495 e 1498. Dimensões: 460 cm X 880 cm. Refeitório da igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão, Itália.

A Última Ceia. Leonardo da Vinci, obra realizada entre 1495 e 1498. Dimensões: 460 cm X 880 cm. Refeitório da igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão, Itália.


Arte Pré-Colombiana

A arte pré-colombiana refere-se à produção artística das civilizações indígenas das Américas antes das Grandes Navegações, que culminaram com a chegada de Cristóvão Colombo, no final do século XV, ao continente americano. Esse período é imensamente diversificado, refletindo a rica variedade de culturas que habitaram as Américas, como os maias, astecas, incas e diversos povos indígenas da América do Norte, Sul e América Central.

A arte pré-colombiana é caracterizada por uma profunda relação com a natureza, a religião e o poder. Entre os principais tipos de arte desse período estão as esculturas, pinturas, cerâmicas e tecelagens, todas com grande simbolismo. Os maias e astecas criaram magníficas esculturas de pedra, como os templos e figuras divinas que decoravam suas cidades. Os incas, por sua vez, desenvolveram técnicas de tecelagem complexas e a arte da metalurgia, criando peças de ouro e prata com significados religiosos e cerimoniais.

Templo de Kukulkán, pirâmide maia que começou a ser construída no século VI. Iucatã, México.

Templo de Kukulkán, pirâmide maia que começou a ser construída no século VI. Iucatã, México.


A arte pré-colombiana também apresenta uma rica simbologia, com forte presença de elementos geométricos e figuras mitológicas, como os deuses e heróis das lendas dessas civilizações.

Arte Moderna

A Arte Moderna (séculos XIX e XX) começou a apresentar suas primeiras obras a partir da Revolução Industrial e de toda a transformação social e política decorrente dela. Movimentos como o Impressionismo, Cubismo, Surrealismo e Expressionismo, que ficaram conhecidos como as vanguardas europeias, trouxeram novas formas de ver e entender a arte, distantes da representação figurativa clássica. Artistas como Pablo Picasso, Vincent van Gogh, Claude Monet e Salvador Dalí são alguns dos grandes nomes desse período.

A arte passou a explorar a abstração e a subjetividade, questionando as convenções tradicionais das academias e a própria realidade. O fazer artístico se diversificou, incluindo novos experimentos com o uso da cor, da forma e da luz, além de novas linguagens da arte, como a fotografia e a arte digital.

Guernica, quadro de Pablo Picasso. 1937, pintura a óleo. 349,3 cm X 776,5 cm. Museu Reina Sofia, Madrid.

Guernica, quadro de Pablo Picasso. 1937, pintura a óleo. 349,3 cm X 776,5 cm. Museu Reina Sofia, Madrid.


A Arte Moderna ou Modernismo foi um período riquíssimo da produção artística mundial e também no Brasil. Você pode compreender melhor esse estilo de arte através do curso A Arte Moderna Pelas Obras de Van Gogh, Picasso, Duchamp e Pollock, ministrado pelo doutor em História da Arte, Felipe Martinez. No curso, ele faz uma análise da vida e da obra de grandes artistas modernistas, mostrando os impactos causados pelas novas ideias e como a arte dialoga com as grandes questões sociais.

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Arte Contemporânea

A Arte Contemporânea (século XX até o presente) é um campo diversificado e amplo, de difícil definição. Diversos movimentos artísticos coexistem, como o minimalismo, o arte pop, a arte conceitual e as manifestações da arte digital. A arte contemporânea rompe com as fronteiras dos tipos de arte tradicionais, explorando novas linguagens da arte como o vídeo, a performance e as instalações interativas. Banksy, Yayoi Kusama e Damien Hirst são alguns dos artistas contemporâneos mais influentes no mundo. A arte contemporânea está muito relacionada às ideias e geralmente aborda temas sociais, culturais e políticos, desafiando as normas da arte tradicional e incentivando uma reflexão crítica sobre o mundo atual.

Grandes Artistas da História e Suas Obras

A história da arte é marcada por inúmeros grandes artistas, cujas obras ajudaram a definir os rumos da arte. Cada um desses artistas famosos trouxe uma contribuição única, seja através da técnica, do estilo ou das ideias que procuraram expressar. Listamos a seguir algumas obras de arte famosas na história e seus respectivos autores:

Século XIV (1300)

  • Giotto di Bondone:

O Beijo de Judas (1305)
Afrescos da Capela Scrovegni (1304–1306)

Século XV–XVI (Renascimento)

A Última Ceia (1495–1498)
Mona Lisa (c. 1503–1506)

  • Michelangelo Buonarroti

O Davi (1501–1504)
Afrescos da Capela Sistina (1508–1512)

Século XIX (Impressionismo e Pós-Impressionismo)

  • Édouard Manet

Almoço na Relva (1863)
Olympia (1863)

  • Claude Monet

Impressão, nascer do sol (1872)
Nenúfares (série, 1897–1926)

  • Edgar Degas

A Aula de Balé (c. 1874)
O Balé Azul (c. 1890)

  • Vincent van Gogh

Girassóis (1888)
A Noite Estrelada (1889)

Século XIX–XX (Simbolismo, Art Nouveau e Modernismo)

  • Gustav Klimt

Retrato de Adele Bloch-Bauer I (1907)
O Beijo (1907–1908)

  • Antoni Gaudí

Parque Güell (projeto iniciado em 1900)
Sagrada Família (iniciada em 1882, ainda em construção)

Século XX (Modernismo, Abstracionismo, Surrealismo e Pop Art)

  • Pablo Picasso

Les Demoiselles d'Avignon (1907)
Guernica (1937)

  • Wassily Kandinsky

Composição VIII (1923)
Amarelo-Vermelho-Azul (1925)

  • Frida Kahlo

Auto-retrato com Espinho e Colibri (1940)
As Duas Fridas (1939)

  • Andy Warhol

Campbell's Soup Cans (1962)
Marilyn Diptych (1962)

História da Arte no Brasil

A história da arte no Brasil é marcada por uma rica e diversa trajetória, que reflete a complexidade cultural do país. Desde os tempos anteriores à colonização, as expressões artísticas indígenas já revelavam uma profunda conexão com a natureza, os mitos e os rituais das diferentes etnias. Arte plumária, cerâmica, pinturas corporais e grafismos em objetos e superfícies naturais eram — e ainda são — manifestações de um conhecimento ancestral transmitido de geração em geração.

Com a chegada dos colonizadores portugueses no século XVI, iniciou-se o período da arte colonial, fortemente influenciado pela estética europeia, especialmente o barroco. Igrejas ricamente ornamentadas, como as de Ouro Preto e Salvador, são testemunhos do talento de artistas como Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa) e Manuel da Costa Ataíde, que reinterpretaram as referências europeias sob uma ótica brasileira, mesclando elementos locais, africanos e indígenas em suas obras sacras.

No século XIX, com a vinda da Missão Artística Francesa (1816), liderada por Jean-Baptiste Debret, o Brasil passou por um processo de academização da arte. A fundação da Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, contribuiu para a formação de artistas dentro de um modelo europeu clássico. Nomes como Pedro Américo e Victor Meirelles se destacaram com grandes telas históricas, representando cenas como o Grito do Ipiranga e episódios da história nacional com uma estética grandiosa e idealizada.

O Grito do Ipiranga, quadro de Pedro Américo, 1888. Óleo sobre tela, 415cm X 760 cm. Museu Paulista da USP, São Paulo.

O Grito do Ipiranga, quadro de Pedro Américo, 1888. Óleo sobre tela, 415cm X 760 cm. Museu Paulista da USP, São Paulo.


A virada do século XX trouxe profundas transformações. O movimento modernista brasileiro, com a Semana de Arte Moderna de 1922, rompeu com os padrões acadêmicos e buscou uma nova linguagem artística, autenticamente nacional.

Artistas como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Oswald de Andrade propuseram uma arte que refletisse a realidade brasileira, suas cores, suas contradições sociais e culturais, ao mesmo tempo em que dialogava com as vanguardas europeias.

Obras como Abaporu (Tarsila), que se tornou símbolo do movimento antropofágico, tinham como proposta a “digestão” crítica das influências estrangeiras para criar algo novo e original, em sintonia com a história do Brasil.

Candido Portinari, por sua vez, levou o realismo social às telas, retratando com sensibilidade temas como o trabalho, a infância pobre e as injustiças sociais, em obras como Retirantes e os painéis de Guerra e Paz, encomendados pela ONU.

Na segunda metade do século XX, a arte brasileira expandiu-se ainda mais, incorporando novas linguagens como a arte concreta, o neoconcretismo, a arte conceitual, o cinema experimental e a performance. Figuras como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Tomie Ohtake, entre outros, romperam com os limites tradicionais da pintura e escultura, criando experiências sensoriais e interativas que colocavam o espectador como parte da obra.

Hoje, a arte contemporânea brasileira é plural, crítica e inovadora. Artistas como Adriana Varejão, Ernesto Neto, Vik Muniz, Rosana Paulino e Jaider Esbell (este último representando a retomada da arte indígena no circuito contemporâneo) continuam a explorar temas como identidade, corpo, ancestralidade, meio ambiente, desigualdade e memória, levando a produção artística nacional a dialogar com os grandes debates do mundo atual — sem perder o enraizamento nas realidades locais.

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Para que serve a Arte?

A arte tem várias funções e serve para inúmeros propósitos. Ela pode ser uma ferramenta de expressão pessoal, um meio de questionamento social e político, uma forma de comunicação universal e até um instrumento terapêutico. A arte também tem uma função educativa, ajudando a transmitir a história, as emoções e as ideias de diferentes culturas e épocas.

Conclusão

A História da Arte é uma jornada fascinante que nos permite entender a evolução das expressões humanas através de diferentes épocas e estilos. Desde a Arte Pré-Histórica até a arte contemporânea, cada período e movimento artístico oferece insights valiosos sobre a cultura, os valores e as ideias de seu tempo. Além disso, grandes artistas e obras de arte influenciam nossa percepção de mundo, e desenvolvem legados que permanecem como um registro da história da humanidade.

Seja para entender as complexidades de nossa sociedade, para se envolver emocionalmente com uma obra ou simplesmente para apreciar a beleza estética, estudar História da Arte é fundamental para qualquer um que deseje expandir sua visão do mundo e compreender a profundidade da experiência humana.

Se você tem interesse em História da Arte e deseja aprender mais sobre o tema, confira o curso Introdução à História da Arte, da Casa do Saber, ministrado pelo doutor em História da Arte pela Unicamp, Felipe Martinez.

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Referências

https://www.cultura.gob.es/mnaltamira/cueva-altamira/arte.html

https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-11160/chichen-itza/

Psicologia
Freud e Jung: diferenças, semelhanças e impactos da relação
Camila Fortes
Freud e Jung: diferenças, semelhanças e impactos da relação
Entenda a relação entre Freud e Jung, suas semelhanças e divergências teóricas, os motivos do rompimento e o impacto na psicanálise e na psicologia.

A relação entre Sigmund Freud e Carl Gustav Jung é um dos capítulos mais fascinantes da história da psicologia e da psicanálise. O vínculo entre esses dois pensadores foi, ao mesmo tempo, profundamente criativo e intensamente conflituoso.

Neste guia introdutório, vamos explorar como essa parceria se formou, quais foram seus pontos de convergências teóricas e as principais diferenças conceituais. Além disso, abordaremos o rompimento que dividiu seus caminhos e o impacto duradouro que tiveram na psicanálise e na psicologia moderna.



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Freud e Jung: Um intercâmbio teórico e pessoal

O encontro entre Freud e Jung marcou o início de uma parceria promissora, tanto em termos teóricos quanto afetivos. Em 1899/1900, Freud publicou a significativa obra A Interpretação dos Sonhos, um livro que investiga a relação do inconsciente com a produção de imagens elaboradas em sonhos.

A discussão chamou a atenção de Jung, um psiquiatra suiço que, à época, já demonstrava interesse pelas manifestações simbólicas do inconsciente em pessoas com transtornos mentais.

O interesse de Jung foi percebido por Freud, que considerou esta uma oportunidade de difundir a psicanálise nos estudos psiquiátricos. Além disso, Freud buscava ampliar as discussões do campo em outros territórios, pois tinha receio de que a psicanálise pudesse ser percebida como uma “ciência judaica”.

Nessa disputa de interesses, a parceria entre eles foi tão promissora, que a primeira conversa, em 1907, teria durado mais de 13 horas ininterruptas, sinalizando uma conexão intelectual intensa. Freud e Jung passaram a trocar cartas e estabeleceram um intenso diálogo intelectual, que logo se transformou em amizade.

Assim, Freud via em Jung uma figura central para dar continuidade a sua teoria psicanalítica, e que ajudaria a expandir e legitimar o campo. Jung, por sua vez, via Freud como um mentor intelectual para os estudos do inconsciente.

Durante mais de 8 anos de colaboração, ambos desenvolveram ideias preciosas sobre a psique humana, os sintomas, sonhos e processos interpretativos sobre eles.



Pontos de Convergência entre Freud e Jung

Freud e Jung compartilhavam diversas concepções fundamentais. Essa base comum a ambos possibilitou uma ampliação significativa do campo da psicologia e da psicanálise, especialmente no que diz respeito à compreensão do inconsciente e à prática clínica.

Dentre as proximidades teóricas e metodológicas entre eles, algumas merecem destaque:

  • A importância do inconsciente:

    Para Freud e Jung, o inconsciente desempenha um papel central na vida psíquica. Ambos consideravam que muitos pensamentos, emoções e comportamentos são influenciados por conteúdos que escapam à consciência.

  • Valor terapêutico dos sonhos:

    Para eles, os sonhos revelariam conteúdos ocultos, se apresentando como um elemento essencial do processo analítico. Freud e Jung acreditavam que o ato de sonhar, recordar e relatar são considerados instrumentos de análise valiosos, sendo capazes de iluminar as zonas mais profundas da mente.

  • A transferência:

    Freud e Jung reconheciam a importância da relação transferencial entre paciente e analista. Ambos concordavam que essa relação é ativa, dinâmica e profundamente reveladora — embora a forma de entender esse vínculo tenha divergido mais tarde.

  • A busca por um método clínico:

    Além disso, eles desenvolveram abordagens baseadas na escuta, na interpretação e na elaboração simbólica da experiência subjetiva humana. Freud e Jung também tinham em comum o interesse em desenvolver um saber clínico e intelectual sobre a sexualidade — apesar de ocorrer em perspectivas diferentes.

Assim, apesar da ruptura posterior, essa fase de convergência foi decisiva para que a psicologia do século XX ganhasse profundidade, pluralidade e complexidade. A partir daquilo que compartilharam — e da tensão que os separou — surgiram novas maneiras de pensar o ser humano, suas dores, seus desejos e seus caminhos de transformação.



Freud e Jung ao lado de outros participantes da Conferência de Psicologia, Pedagogia e Higiene Escolar na Clark University, em Worcester (EUA), 1909. Fonte: Wikimedia


A Ruptura Teórica e Afetiva entre Freud e Jung

Nesse processo, diferenças profundas começaram a emergir, tanto em relação ao método analítico quanto à visão de mundo.

Em 1912, Jung publicou a obra Transformações e Símbolos da Libido. O livro propunha uma visão ampliada da energia psíquica, o que Freud considerou uma grave distorção dos princípios psicanalíticos.

Para Freud, Jung estava abandonando a ciência pela metafísica. Para Jung, Freud estava aprisionado em uma visão limitada e materialista da psique.

Jung passa a desenvolver uma teoria própria - a psicologia analítica - que, embora se parta de fundamentos psicanalíticos, seguiu um caminho teórico autônomo. Ele introduziu conceitos como o inconsciente coletivo, os arquétipos, a função simbólica dos sonhos e o processo de individuação, todos incompatíveis com o modelo freudiano.

Curiosidade: As divergências e tensões entre Freud e Jung foram tratadas em obras audiovisuais como no filme “Um Método Perigoso” (2011), dirigido por David Cronenberg.

Na obra, explora-se o surgimento da psicanálise, as proximidades, os conflitos profissionais entre eles e as experiências bem e mal sucedidas na prática psicanalítica. Além disso, trata da relação de ambos com Sabina Spielrein, uma paciente de Freud que, posteriormente, se relacionou com Jung.



Psicologia Analítica com Jung e Psicanálise com Freud: Principais diferenças conceituais

Nesse movimento, as divergências intelectuais ganharam espaço na relação entre Freud e Jung. À medida que aprofundavam seus estudos, tornaram-se cada vez mais evidentes suas diferentes formas de compreender os fundamentos da psique.

Mas, de fato, quais eram as diferenças?

A compreensão da libido e a teoria da sexualidade

As divergências na teoria da sexualidade entre Freud e Jung estão entre os principais motivos que levaram à ruptura entre os dois pensadores — e dizem muito sobre suas visões de mundo, de ser humano e de psique.

Para Freud, a sexualidade está no centro da constituição psíquica.

A teoria da libido em Freud é baseada na ideia de que o ser humano é movido por pulsões, principalmente as de caráter sexual. Para ele, essa energia é reprimida ao longo do desenvolvimento e retorna de forma disfarçada, gerando sintomas, sonhos e lapsos.

Além disso, Freud defendia que a sexualidade não começa na puberdade, mas na infância (sexualidade infantil). Para ele, tudo — dos sonhos à arte — pode ser, em última instância, reconduzido a conteúdos sexuais reprimidos. A sexualidade seria, portanto, uma chave universal para entender o funcionamento da mente humana.

Jung inicialmente aceitou a teoria sexual de Freud, mas logo começou a questioná-la por considerá-la reducionista. Para ele, a libido não deveria ser entendida exclusivamente como energia sexual, mas sim como uma energia psíquica geral, que se manifesta em diferentes formas: sexualidade, espiritualidade, criatividade, vontade de sentido, religiosidade, entre outros.

A sexualidade seria, então, para Jung, uma expressão possível, mas não única da psique.

Em vez de interpretar os sonhos apenas como disfarces de desejos sexuais, Jung os via como mensagens simbólicas vindas do inconsciente, frequentemente carregadas de elementos mitológicos e espirituais.

A estrutura do inconsciente

Além do inconsciente pessoal — formado por experiências individuais reprimidas já apontado por Freud —, Jung propôs a existência de um inconsciente coletivo. Esta seria uma camada mais profunda da psique que não se origina na vivência individual, mas é comum a toda a humanidade.

O inconsciente coletivo seria composto por arquétipos, ou seja, imagens universais e atemporais que moldam a forma como percebemos e vivemos o mundo.

Presentes em sonhos, mitos, contos e religiões, os arquétipos funcionam como estruturas simbólicas fundamentais para a construção do sentido e da experiência humana. Essa percepção de um inconsciente individual e um inconsciente coletivo se revelou como uma das maiores distinções entre eles.

Enquanto Freud buscava curar o sintoma por meio da rememoração de experiências individuais reprimidas, Jung propunha uma jornada de integração entre o consciente e o inconsciente individual e coletivo, guiada por símbolos, imagens e significados.

Símbolo e Transferência

Além disso, Freud acreditava que os símbolos se apresentavam como uma máscara para desejos individuais inconscientes. Já Jung, defendia que o simbolismo se manifestaria como uma representação transformadora do inconsciente coletivo.

A noção de transferência também se diferenciava entre eles. Freud compreendia a transferência como a repetição de padrões do inconsciente na relação com o analista. Já Jung, a percebia como uma dinâmica simbólica, capaz de auxiliar na transformação psíquica.

Abordagens e objetivos terapêuticos distintos

As abordagens e os objetivos terapêuticos também se distinguem entre Freud e Jung.

Freud fundamentava sua teoria em um modelo determinista e causal, voltado ao passado e às repressões infantis. O seu objetivo terapêutico centrava-se em tornar consciente o reprimido, aliviando sintomas neuróticos.

Jung, por sua vez, propunha uma abordagem dialética e simbólica, com foco na totalidade da psique e no processo de individuação e autoconhecimento. Assim, objetivava promover a individuação e o equilíbrio entre o consciente e o inconsciente.

A diferença de abordagem entre Freud e Jung teve impacto decisivo no rumo da psicologia ocidental, abrindo caminhos para outras abordagens do processo terapêutico.

Em Jung, por exemplo, a sua perspectiva ampliada da psique abriu caminhos para um olhar simbólico, espiritual e arquetípico para a psicologia. Nesse movimento, a Psicologia Humanista inspirada por Carl Rogers e Abraham Maslow, compartilharam com ele a ideia de que o ser humano busca crescer e integrar partes de si e alcançar uma existência autêntica.



A relação entre Freud, Lacan e Jung

Embora Jacques Lacan tenha surgido em uma geração posterior à Freud e Jung, seu trabalho reatualizou conceitos freudianos centrais sob uma ótica estruturalista e linguística, influenciado por autores como Saussure, Lévi-Strauss e Hegel.

Lacan manteve-se avançando nas investigações psicanalíticas de Freud. O seu objetivo era explorar a linguagem como a própria estrutura do inconsciente, e não como um recurso simbólico e arquetípico, como defendia Jung, ou como meio de expressão dos desejos, como acreditava Freud.

O inconsciente, para Lacan, funciona como uma linguagem, ou seja, seria estruturado por significantes que escapam ao controle do sujeito, mas que organizam seu desejo, sua identidade e seus sintomas. Em outras palavras, para Lacan, o sujeito não é o “dono” de seus pensamentos, nem de sua fala — ele é falado pela linguagem, atravessado por significantes que o precedem.

Embora Lacan tenha elaborado uma perspectiva própria sobre o inconsciente, é notável o impacto e a influência de Freud e Jung em suas teorias psicanalistas.


O impacto que a separação entre Freud e Jung teve na história da psicanálise e da psicologia

Mais do que um simples desacordo teórico, o rompimento entre Freud e Jung representou a divergência entre duas visões de mundo, que acabaram por originar duas grandes tradições clínicas e filosóficas distintas: a psicanálise freudiana e a psicologia analítica junguiana.

A psicanálise freudiana seguiu sendo estruturada com base na sexualidade, no recalque, na transferência e na interpretação dos sintomas. Freud manteve um núcleo racionalista e científico, mesmo explorando territórios como os instintos de morte e a cultura.

Além disso, sua perspectiva se estendeu a partir de outros psicanalistas, diversificando-se em várias correntes: kleiniana, lacaniana, winnicottiana, entre outras — mantendo uma influência central nas áreas de saúde mental, cultura e teoria crítica.

A psicanálise influenciou a literatura, a crítica cultural, o cinema, a política e a filosofia, sobretudo através de Jacques Lacan, Jacques Derrida e Gilles Deleuze.

Já a psicologia analítica junguiana, avançou por um caminho mais simbólico e espiritual, explorando mitos, religiões, imagens arquetípicas e o processo de individuação como forma de transformação psíquica.

O seu impacto influenciou práticas como a arteterapia, a psicoterapia simbólica, a psicologia transpessoal, a ecopsicologia e até aspectos da educação e da espiritualidade contemporânea.

Além disso, propôs uma leitura voltada à integração dos opostos, à autocompreensão simbólica e à conexão com uma dimensão arquetípica universal.

A relação entre Freud e Jung: Uma conclusão

Historicamente, muitos autores consideram que a separação impediu o surgimento de uma síntese mais ampla entre razão e simbolismo, ciência e espiritualidade. No entanto, essa ruptura também produziu um legado fecundo: a partir dela, duas tradições puderam se desenvolver com profundidade, cada uma explorando aspectos distintos, porém complementares, da psique humana.

Com o tempo, o distanciamento inicial abriu espaço para uma reaproximação. Hoje, há um movimento crescente de diálogo entre as escolas freudiana e junguiana, especialmente entre clínicos e pesquisadores interessados em abordagens mais holísticas e interdisciplinares.

Essa pluralidade fez com que a psicologia se tornasse mais sensível às diferenças culturais, existenciais e espirituais entre os sujeitos. Assim, o legado de Freud e Jung, mesmo marcado por divergências, continua a inspirar caminhos de integração, escuta e transformação no campo da saúde mental.


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Referências

SciELO Brasil - Crônica de um fim anunciado: o debate entre Freud e Jung sobre a teoria da libido

FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987, vol. 4, 5.

JUNG, C. G. (1912). Transformações e Símbolos da Libido. In: Símbolos da Transformação. 9ª ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2013, vol. 5.

Tipos de Sexualidade: Entenda Orientação  e Identidade de Gênero
Xavana Celesnah
Tipos de Sexualidade: Entenda Orientação e Identidade de Gênero
Entenda os tipos de sexualidade, o que é orientação sexual e identidade de gênero, além dos significados de cisgênero, transgênero e queer.

A sexualidade humana é um tema profundamente complexo, que precisa ser constantemente debatido, no sentido de promover o autoconhecimento e combater o preconceito associado a questões sexuais. A sexualidade engloba diversas dimensões, como a orientação sexual e a identidade de gênero, que são fundamentais para entender as experiências individuais e coletivas.

A orientação sexual, por exemplo, está diretamente ligada às preferências emocionais e relacionais de cada pessoa, sendo um aspecto dinâmico e, em alguns casos, fluido ao longo da vida. As orientações sexuais podem incluir categorias como heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade, demissexualidade, pansexualidade, entre outras, cada uma com suas particularidades. Neste artigo, abordaremos os diferentes aspectos da sexualidade, explicaremos o conceito de orientação sexual e discutiremos tópicos relevantes, como identidade de gênero, pansexualidade, assexualidade e muito mais. Acompanhe e entenda as nuances que envolvem esse tema.



O Que é Sexualidade?

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a sexualidade é uma energia que nos motiva para encontrar o amor, contato, ternura e intimidade. Nesse sentido, a sexualidade vai muito além do simples ato sexual. Ela é um aspecto profundo da psiquê que engloba nuances como prazer, erotismo, sexo biológico, orientação sexual e identidade de gênero. Ou seja, é através da sexualidade que uma pessoa se identifica em relação ao seu próprio sexo e essa identificação faz com que ela se expresse no contexto social e cultural.

Hoje, a sexualidade é um campo de estudo com notório reconhecimento, que possui marcos históricos como a Revolução Sexual da década de 1970 e a inclusão de disciplinas sobre sexualidade em graduações de psicologia e medicina na década de 1980.

Discutir sexualidade é essencial para acabar com preconceitos e discriminações e para aumentar o nível de consciência das pessoas em relação às inúmeras possibilidades de configurações relacionadas à sexualidade humana.

Além disso, o tema é relevante para promover a saúde integral da população e para defender os direitos da comunidade LGBTQIA+.

Tipos de Sexualidade: Diversidade e Inclusão

Os tipos de sexualidade são definidos a partir das orientações e preferências sexuais. Algumas preferências são mais comumente reconhecidas, mas existem identidades que só estão sendo discutidas e nomeadas há poucos anos. Veja a seguir quais são os principais tipos de orientação sexual:

TIPOS DE SEXUALIDADE CARACTERÍSTICAS
HETEROSSEXUAL Atração amorosa, física ou afetiva por pessoas do sexo/gênero oposto
HOMOSSEXUAL Atração emocional, sexual ou afetiva por pessoas do mesmo sexo/gênero
BISSEXUAL Atração afetiva e sexual por pessoas de ambos os sexos/gêneros
ASSEXUAL Pessoa que não sente nenhuma atração sexual, por nenhum sexo ou gênero
PANSSEXUAL Pessoa que sente atração sexual por todos os gêneros e sexos
POLISSEXUAL Pessoa que sente atração por muitos gêneros, mas não todos
ANDROSSESUAL Pessoa que sente atração sexual por pessoas masculinas, incluindo mulheres héteros e homens gays
GINECOSSEXUAL Pessoa que sente atração sexual por pessoas femininas, incluindo homens héteros e lésbicas
DEMISSEXUAL Só sente atração sexual depois de uma conexão emocional estabelecida


O Que é Orientação Sexual?

A orientação sexual é definida pela atração sexual. Ou seja, refere-se à tendência emocional, romântica ou sexual que uma pessoa tem em relação a outra. Pode ser caracterizada como heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual, entre outras, como abordamos acima. A orientação sexual é muitas vezes considerada uma parte fundamental da identidade de uma pessoa, embora as pessoas possam se descobrir e se identificar com mais de uma orientação ao longo da vida.

Identidade de Gênero e Sexualidade

A identidade de gênero é a percepção que uma pessoa tem a respeito de si mesma. Ela pode se enxergar como alguém do sexo masculino, feminino, uma combinação de ambos ou até mesmo nenhum. A identidade reflete a compreensão que a pessoa tem a respeito de si mesma e demonstra como ela deseja ser vista socialmente.

A relação entre gênero e sexualidade é profunda, mas não é simples. Enquanto o gênero diz respeito à identidade interna de uma pessoa, a sexualidade está relacionada ao que a pessoa sente em termos de atração sexual. Alguém pode ser transgênero e heterossexual, bissexual ou pansexual, assim como uma pessoa cisgênero pode ter qualquer orientação sexual. Veja a seguir algumas das possibilidades de identidade de gênero:

1. Pessoas Cisgênero

Pessoas que se identificam com o gênero atribuído ao nascimento são chamadas de cisgêneros. Um homem cis é aquele que foi designado do sexo masculino ao nascer e se identifica como homem. Da mesma forma, uma mulher cis foi designada do sexo feminino ao nascer e se identifica como mulher. O cisgênero é, portanto, o termo oposto a transgênero, referindo-se a quem se identifica com o gênero atribuído ao nascimento.

2. Pessoas Transgênero

Pessoas transgênero são aquelas cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo que lhes foi atribuído ao nascimento. Por exemplo, uma pessoa designada como mulher ao nascer, mas que se identifica como homem, seria um homem trans. A transgeneridade abrange uma variedade de experiências e identidades, e muitas vezes as pessoas trans enfrentam desafios significativos relacionados à aceitação e ao preconceito social.

Queer: O Que É?

O termo "queer" é utilizado para descrever pessoas cuja identidade de gênero ou orientação sexual não se alinha às normas tradicionais e socialmente aceitas. Em vez de se conformar às categorias convencionais de gênero e sexualidade, as pessoas que se identificam como queer preferem adotar uma perspectiva mais fluida e aberta, que não exige rótulos fixos ou definições rígidas. Isso inclui indivíduos que não se encaixam nas categorias binárias de "homem" ou "mulher", ou que não se identificam exclusivamente com a heterossexualidade.

Originalmente, a palavra "queer", que em inglês significa "estranho" ou "excêntrico", era usada de forma pejorativa, sendo empregada como um insulto para xingar pessoas cujas sexualidades ou expressões de gênero eram vistas como fora da norma. No entanto, ao longo do tempo, essa palavra passou por um processo de ressignificação. Em vez de ser uma expressão de discriminação, "queer" foi apropriada pela comunidade LGBTQIA+ como uma forma de autoidentificação empoderada. Ao ser reapropriada, ela deixou de ser um termo depreciativo para se tornar um símbolo de resistência e liberdade.

Hoje, queer é um conceito abrangente e flexível, que rejeita a ideia de que a identidade de gênero ou a orientação sexual deve ser limitada a categorias fixas. As pessoas queer podem ter experiências de sexualidade e identidade de gênero que não se enquadram nas convenções tradicionais de homossexual, heterossexual, cisgênero ou transgênero. Esse conceito de fluidez permite que os indivíduos explorem e vivenciem sua identidade de maneira mais autêntica e pessoal, sem a pressão de se encaixar em uma definição pré-estabelecida.

Além de ser uma forma de autoidentificação para aqueles que não se reconhecem nas normas convencionais, o termo queer também serve como uma crítica às construções sociais rígidas de gênero e sexualidade. Ele questiona e desafia as normas heteronormativas que dominam a sociedade, abrindo espaço para uma maior aceitação da diversidade. Ao adotar o termo queer, muitos buscam, não apenas a liberdade pessoal de expressão, mas também uma mudança cultural mais ampla, onde a identidade sexual e de gênero possa ser mais fluida e menos sujeita a estigmas e marginalização.

Portanto, a palavra queer representa muito mais do que uma identidade específica dentro da comunidade LGBTQIA+; ela simboliza um movimento de liberdade e de quebra de barreiras sociais. É um convite à reflexão sobre como as normas de gênero e sexualidade são impostas e como elas podem ser desafiadas, para que cada pessoa possa viver de acordo com sua verdadeira essência, sem medo de ser rotulada ou limitada por convenções externas.

A Psicanálise e Sexualidade

A psicanálise, campo do conhecimento desenvolvido por Sigmund Freud, tem uma relação intrínseca com a sexualidade humana e traz uma abordagem diferenciada para entender os desejos, comportamentos e a formação da identidade sexual. Freud propôs que grande parte do comportamento sexual é influenciado por impulsos inconscientes que emergem da dinâmica interna da psique. De acordo com a teoria psicanalítica, a sexualidade humana está intimamente ligada ao desenvolvimento psíquico, e é formada por experiências passadas junto com fatores inconscientes. Teorias como a do Complexo de Édipo e a dinâmica da libido desempenham papéis fundamentais na constituição da identidade sexual, influenciando os desejos e a forma como o indivíduo se relaciona consigo mesmo e com os outros.

A psicanálise trabalha com a teoria da libido para entender o desenvolvimento da sexualidade. Freud considerava a libido, ou energia sexual, como uma força central na vida psíquica, presente em diferentes estágios do desenvolvimento humano. Segundo ele, a maneira como essa energia é direcionada ao longo da infância e adolescência tem um impacto profundo na forma como a sexualidade se expressa na vida adulta. E a libido não se limitaria ao desejo sexual, ela também estaria envolvida em várias outras áreas da experiência humana, como a atração, o desejo e até as preferências nas relações interpessoais. A dinâmica da libido, portanto, vai além do ato sexual, abrangendo a forma como os indivíduos buscam satisfação emocional e psíquica.

Outra teoria importante que relaciona a psicanálise à sexualidade é o Complexo de Édipo, que se tornou um dos conceitos mais conhecidos da psicanálise. Ele descreve uma fase do desenvolvimento infantil em que os meninos vivenciam sentimentos ambivalentes de desejo e hostilidade em relação à mãe. O correspondente do Complexo de Édipo para as meninas seria o Complexo de Electra.

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Freud sugeriu que, durante essa fase, a criança experimenta um desejo inconsciente pelo genitor do sexo oposto e uma rivalidade com o genitor do mesmo sexo. A resolução bem-sucedida desse complexo é considerada fundamental para o desenvolvimento saudável da identidade sexual e para a capacidade de formar relações afetivas e amorosas na vida adulta. Embora esse conceito tenha gerado debates acalorados, ele permanece um pilar importante da psicanálise e ainda influencia a compreensão de como a sexualidade se desenvolve ao longo da vida.

Para entender melhor a relação entre psicanálise e questões da sexualidade, acesse o curso Psicanálise e Sexualidade, da Casa do Saber+. Nas aulas, a psicanalista Natália Pereira Travassos busca aprofundar a compreensão da sexualidade, fazendo um panorama histórico sobre o tema, desde os primeiros estudos que antecederam as pesquisas freudianas até as contribuições da psicanálise para o discurso contemporâneo sobre sexualidade.



Conclusão

Os tipos de sexualidade são múltiplos e refletem a diversidade da psique humana. Estudar o tema é essencial para entender que cada pessoa tem o direito de explorar sua sexualidade e identidade de gênero da maneira que melhor se alinha com sua vivência e sentimentos. A orientação sexual varia de pessoa para pessoa, e a aceitação dessas diferenças é vital para a construção de uma sociedade inclusiva e respeitosa. Nesse sentido, a educação sobre esses temas, incluindo conceitos como identidade de gênero, cisgênero, assexualidade, contribui para superar os preconceitos e estabelecer a compreensão necessária para o respeito às diversas formas de ser.

Perguntas Frequentes sobre Tipos de Sexualidade

Quais são as principais diferenças entre orientação sexual e identidade de gênero?

A orientação sexual refere-se ao tipo de atração emocional, afetiva ou sexual que uma pessoa sente por outra. Por exemplo, uma pessoa pode se identificar como heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual, entre outras. Já a identidade de gênero diz respeito à percepção que uma pessoa tem de si mesma em relação ao gênero, podendo ser masculino, feminino, uma combinação de ambos ou nenhum. A identidade de gênero pode ou não coincidir com o sexo atribuído ao nascimento, enquanto a orientação sexual está relacionada às preferências e atração por pessoas de diferentes sexos ou gêneros.

O que significa ser um homem cis ou uma mulher cis?

Ser um homem cis ou uma mulher cis significa que a identidade de gênero da pessoa está alinhada com o sexo que lhe foi atribuído ao nascer. No caso de um homem cis, ele foi designado do sexo masculino ao nascer e se identifica como homem. Da mesma forma, uma mulher cis foi designada do sexo feminino ao nascer e se identifica como mulher. O termo "cisgênero" é usado para descrever pessoas cuja identidade de gênero corresponde ao sexo biológico atribuído a elas, em contraste com pessoas transgêneras, que não se identificam com o sexo designado ao nascimento.




Referências

https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/583362/3/Manual%20de%20Orienta%C3%A7%C3%B5es%20sobre%20G%C3%AAnero%20e%20Diversidade%20Sexual.pdf

https://g1.globo.com/pop-arte/diversidade/noticia/2024/06/23/entenda-o-que-e-ser-queer.ghtml

TDAH: Sintomas, O que é, Características no Adulto e Tratamento
Xavana Celesnah
TDAH: Sintomas, O que é, Características no Adulto e Tratamento
O que é o TDAH? Sintomas e características do déficit no adulto e na criança, diagnóstico pelo comportamento e tratamento para o transtorno CIDF90

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é uma disfunção neuropsiquiátrica muito frequente. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 3% da população mundial convive com esse distúrbio que afeta a saúde mental, caracterizado pela dificuldade de concentração e pela inquietação constante. Esses sintomas são típicos do TDAH, que se manifesta também por uma impulsividade excessiva e, em alguns casos, uma hiperatividade difícil de controlar.

Quando não tratado adequadamente, o transtorno pode prejudicar o desempenho acadêmico, profissional e até mesmo as relações sociais, afetando a qualidade de vida do indivíduo. Embora muitos associem o TDAH à infância, a verdade é que ele pode se estender à vida adulta. Neste artigo, vamos esclarecer o que é TDAH, mostrar quais são seus sintomas, como é feito o diagnóstico e quais são os tratamentos mais indicados.



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O que é o TDAH?

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um transtorno caracterizado pela dificuldade em manter o foco, impulsividade excessiva e, em muitos casos, hiperatividade. O TDAH impacta profundamente a vida cotidiana de seus portadores e não se restringe à infância, já que muitos adultos também convivem com seus sintomas.

Muitas vezes, o TDAH é reduzido a uma simples dificuldade de concentração, mas é importante destacar que suas implicações vão muito além disso. Quem tem o transtorno pode conviver com um constante sofrimento psíquico, já que não se trata apenas de “não conseguir prestar atenção”, mas de uma dinâmica cerebral que dificulta o controle das ações e pensamentos, resultando em comportamentos que são frequentemente mal interpretados pela sociedade.

De perto ninguém é normal – o que é considerado uma característica de "anormalidade" no TDAH, muitas vezes reflete uma forma de ser e de estar no mundo, que não se encaixa nas expectativas da sociedade sobre como devemos nos comportar. Essa dificuldade em seguir normas pode levar a frustrações, principalmente porque a pessoa com TDAH é constantemente desafiada a corresponder a expectativas que não são naturais para ela.

Como o TDAH afeta o corpo e a mente?

Sabe aquela pessoa que parece viver no “mundo da Lua”? Ou aquela que é uma “espoleta” e não consegue ficar parada de jeito nenhum? Provavelmente você já conheceu alguém assim e é possível que essas pessoas tenham TDAH. A mente da pessoa com TDAH parece estar em constante movimento, saltando de um pensamento para outro, o que dificulta a concentração em uma única tarefa. Esse ciclo de desatenção afeta a autoestima, alimentando sentimentos de inadequação e fracasso.

Além disso, a impulsividade, um dos principais sintomas do TDAH, adiciona outra camada de complexidade à condição. As decisões tomadas com pressa e sem a devida reflexão muitas vezes resultam em comportamentos inadequados ou prejudiciais, tanto no âmbito social quanto profissional. No contexto interpessoal, a falta de autocontrole pode gerar mal-entendidos e desentendimentos, uma vez que a pessoa com TDAH pode agir de forma impetuosa, sem considerar as consequências de suas atitudes. No trabalho, isso se traduz em dificuldades para lidar com tarefas que exigem paciência, atenção aos detalhes e pensamento estratégico, prejudicando o trabalho em equipe. A impaciência pode levar a erros evitáveis e à incapacidade de concluir projetos de maneira satisfatória.

O TDAH também afeta o corpo. A inquietude física é uma característica comum, fazendo com que muitos indivíduos sintam necessidade constante de se movimentar. Essa agitação pode resultar em dificuldades para permanecer sentado por longos períodos, como em salas de aula ou em ambientes de trabalho. Além disso, essa inquietação pode gerar tensão muscular e fadiga, já que o corpo está em constante estado de alerta. A dificuldade em se concentrar e em manter o controle sobre os impulsos também pode afetar a capacidade de realizar tarefas motoras finas, como escrever ou coordenar ações mais complexas.

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Quais são as causas do TDAH?

As causas do TDAH incluem fatores genéticos, neurológicos e ambientais. Entre os principais fatores que contribuem para o transtorno, destacam-se:

  1. Genética: O TDAH é frequentemente observado em famílias, o que sugere uma forte base hereditária. Se um dos pais tem TDAH, as chances de o filho também ser diagnosticado aumentam significativamente.
  2. Anormalidades Neurológicas: O TDAH está relacionado a desequilíbrios nos neurotransmissores cerebrais, principalmente a dopamina. Esse desequilíbrio afeta os circuitos cerebrais responsáveis pela atenção e pelo controle do comportamento, dificultando a regulação dessas funções.
  3. Fatores Ambientais: A exposição a substâncias tóxicas durante a gestação, como nicotina e álcool, ou complicações no parto, podem ser fatores que aumentam o risco de desenvolvimento do transtorno.
  4. Pressões e Estresse Social: Vivemos em uma sociedade cada vez mais acelerada, o que coloca enormes demandas sobre os indivíduos, principalmente sobre as crianças, que são as mais afetadas por esse contexto. O impacto de uma educação excessivamente pressionada, sem espaço para a individualidade e a criatividade, pode desencadear ou agravar os sintomas de TDAH.


Quais são os tipos de TDAH?

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é classificado em três tipos principais, de acordo com a literatura médica:

  • predominantemente desatento

  • predominantemente hiperativo e impulsivo

  • combinado (que mistura características dos dois anteriores)


O tipo predominantemente desatento é caracterizado pela dificuldade persistente de manter a atenção, focar em uma tarefa ou seguir instruções, resultando em um desempenho abaixo do esperado, tanto na escola quanto no ambiente de trabalho. Indivíduos com esse tipo de TDAH frequentemente são vistos como "sonhadores", distraídos e esquecidos. Eles podem ter dificuldades em concluir tarefas e manter a organização, o que afeta sua produtividade e autoestima. Na infância, esse tipo é mais comumente diagnosticado em meninas, que tendem a exibir um comportamento mais internalizado, ao contrário dos meninos que, frequentemente, apresentam sinais mais evidentes de hiperatividade.

O segundo tipo, o predominantemente hiperativo e impulsivo, é marcado pela impulsividade excessiva e pela hiperatividade, o que torna difícil para o indivíduo controlar seus impulsos ou manter-se calmo em situações que exigem paciência ou quietude. Pessoas com esse perfil frequentemente têm dificuldade em permanecer sentadas por longos períodos, interrompem os outros enquanto falam, tomam decisões apressadas e se envolvem em comportamentos arriscados sem considerar as consequências. Na infância, esse tipo é mais comumente identificado em meninos, já que os sinais de hiperatividade são mais visíveis e frequentemente associados a comportamentos que causam incômodos em ambientes como escolas e outros locais sociais. A impulsividade pode afetar a interação com os outros, dificultando o estabelecimento de relacionamentos saudáveis.

Finalmente, o TDAH combinado é o tipo mais comum, caracterizado pela presença de sintomas tanto de desatenção quanto de hiperatividade/impulsividade. Indivíduos com esse tipo de TDAH apresentam uma combinação de dificuldades em manter o foco e uma constante necessidade de se movimentar, o que pode interferir em várias áreas da vida, como desempenho acadêmico, habilidades sociais e relacionamentos.

TIPOS DE TDAH SINTOMAS
Predominantemente desatento Dificuldade em manter o foco, organização e seguir instruções.
Predominantemente hiperativo e impulsivo Impulsividade excessiva, hiperatividade e dificuldades em controlar comportamentos.
Combinado Combinação de desatenção, impulsividade e hiperatividade.


Como é feito o Diagnóstico do TDAH?

O diagnóstico do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um processo que exige uma análise clínica minuciosa, dada a sobreposição de sintomas com outras condições psicológicas e neuropsiquiátricas. Sintomas como desatenção, impulsividade e hiperatividade podem ser confundidos com outras condições, como depressão, distúrbios de aprendizagem e até mesmo transtornos de personalidade. Por essa razão, é essencial que o diagnóstico seja realizado por profissionais qualificados, como psicólogos, psiquiatras ou neurologistas, que tenham experiência no reconhecimento dos sinais e na diferenciação do TDAH em relação a outras condições.

O diagnóstico adequado do TDAH requer várias etapas. Inicialmente, o profissional realiza uma entrevista clínica detalhada com o paciente, além de conversar com familiares, professores ou outras pessoas que convivem com o indivíduo, a fim de entender melhor o histórico e o comportamento ao longo do tempo. Também são aplicadas escalas de avaliação específicas, que medem a intensidade dos sintomas de desatenção e impulsividade, além de verificar como esses sintomas impactam a vida cotidiana do paciente. Em alguns casos, exames neurológicos e testes psicológicos mais profundos podem ser indicados para descartar outras condições que possam gerar sintomas semelhantes, como dislexia ou transtornos de humor.

Adicionalmente, o Código CIDF90, presente na Classificação Internacional de Doenças, pode ser utilizado para facilitar a identificação do TDAH, promovendo a padronização do diagnóstico e auxiliando na escolha do tratamento mais adequado. Ao considerar todos esses fatores, o diagnóstico do TDAH não se resume à simples observação de sintomas, mas envolve um olhar atento para o histórico clínico e a avaliação cuidadosa das variáveis psicológicas e neurológicas, garantindo um caminho eficaz para o manejo do transtorno.



Existe tratamento para TDAH?

O tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) exige uma abordagem profissional personalizada, que leve em consideração as diversas características do indivíduo, incluindo aspectos neurológicos, emocionais e comportamentais. Uma combinação de intervenções médicas, terapêuticas e complementares é frequentemente utilizada para lidar com os principais sintomas do transtorno, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida e o bem-estar geral do paciente.

Além do uso de medicamentos, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) tem se mostrado uma das abordagens mais eficazes para o tratamento do TDAH. Por meio da TCC, o paciente aprende estratégias para organizar suas tarefas, controlar suas emoções e melhorar suas habilidades de resolução de problemas. Essa terapia também é eficaz para lidar com as questões de impulsividade e baixa autoestima que frequentemente acompanham o transtorno. Outras terapias complementares, como o treinamento de habilidades sociais, programas de reabilitação cognitiva e práticas de mindfulness, podem ser incluídas no tratamento para oferecer recursos adicionais e promover uma vida mais equilibrada.

Saúde Mental e TDAH

Para quem deseja se aprofundar no conhecimento acerca dos maiores transtornos e sofrimentos psíquicos da humanidade, a Casa do Saber + possui diversos cursos na área, incluindo o curso do psicanalista, psiquiatra e professor titular de psicopatologia clínica pela Aix-Marseille Université (França), Mario Eduardo Costa Pereira. O curso sobre Transtornos e Sofrimentos Psíquicos aborda questões como depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar e dependência química.

A plataforma Casa do Saber + possui uma série de opções de estudo que tratam das principais questões de saúde mental contemporâneas, incluindo a hiperatividade, abordada no curso Excitados, Desatentos e Cansados, da Doutora em teoria psicanalítica pela UFRJ, Nina Saroldi.



Conclusão

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é uma condição que vai além das limitações cognitivas, influenciando o comportamento do indivíduo e a maneira como interage com o mundo e com as pessoas ao seu redor. Através de um diagnóstico preciso e um plano de tratamento adaptado às necessidades de cada pessoa, aqueles com TDAH têm a oportunidade de gerenciar seus sintomas e alcançar uma vida plena e produtiva, superando as dificuldades impostas pelo transtorno. É essencial que o apoio familiar, escolar e social esteja presente ao longo desse percurso, criando um ambiente de acolhimento e compreensão.

Perguntas frequentes sobre TDAH

  1. Quais são os principais sintomas do TDAH e como identificá-los?


    Os principais sintomas de TDAH incluem dificuldades em manter a atenção em tarefas ou conversas por períodos prolongados, impulsividade (agir sem pensar nas consequências), hiperatividade (excesso de movimento ou inquietação), e uma tendência a ser facilmente distraído. Além disso, pessoas com TDAH podem apresentar desorganização, dificuldade em seguir instruções e esquecimento frequente. Esses sintomas podem variar de acordo com a idade, sendo mais evidentes em crianças, mas também presentes em adultos. Caso esses sintomas persistam por mais de seis meses e impactem a vida diária, pode ser um indicativo de TDAH.

  2. O TDAH é um transtorno que afeta apenas crianças?


    Não. O TDAH não é exclusivo da infância e pode persistir na vida adulta. Muitas pessoas com TDAH são diagnosticadas quando crianças, mas seus sintomas podem continuar ou até ser reconhecidos tardiamente na fase adulta. Nos adultos, o transtorno pode se manifestar de formas diferentes, como dificuldades de concentração no trabalho, desorganização nas tarefas cotidianas, impulsividade em decisões financeiras ou sociais, e até mesmo desafios nas relações interpessoais. O tratamento do TDAH em adultos pode incluir Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), acompanhamento psicológico e, em alguns casos, medicação, dependendo da gravidade dos sintomas.





Referências

https://drauziovarella.uol.com.br/psiquiatria/o-que-esta-por-tras-da-explosao-de-casos-de-tdah-no-brasil-e-no-mundo/


https://bvsms.saude.gov.br/transtorno-do-deficit-de-atencao-com-hiperatividade-tdah/




Autores

O quanto você acredita que suas percepções são capazes de interferir na forma como você vê o mundo e entende a realidade? É exatamente essa uma das principais ideias desenvolvidas por David Hume, filósofo escocês do século XVIII.

Neste texto, você vai conhecer os conceitos centrais como o hábito, o ceticismo, a crítica à causalidade e a valorização do conhecimento empírico. Além de entender por que Hume continua sendo uma referência para a filosofia contemporânea.

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Quem foi David Hume?

David Hume nasceu em Edimburgo, na Escócia, em 1711, e foi um dos principais pensadores do Iluminismo.

As suas contribuições mais relevantes foram principalmente na abordagem da natureza do conhecimento humano e a crítica à metafísica.

Hume cresceu em um lar religioso e, tanto em casa quanto na universidade, recebeu uma educação voltada para uma vida de virtude, baseada nas tradições calvinistas escocesas.

Apesar de ter estudado Direito na Universidade de Edimburgo entre 1724 e 1726, Hume achava o Direito, em suas palavras, “enjoativo” e voltou sua atenção para os conhecimentos em literatura, economia e filosofia.

Entretanto, as ideias de David Hume ficaram conhecidas pelo ceticismo e suposto ateísmo quando passou a criticar racionalmente a religião e rejeitar argumentos teístas, como a existência de Deus.

Hume vivenciou o século XVIII, que foi marcado por revoluções como a Revolução Francesa, a Revolução Americana, e uma grande efervescência intelectual, principalmente com o Iluminismo.

Dentro deste cenário intelectual e político, as ideias do empirismo e do ceticismo inspiraram Hume, que foi um forte crítico do racionalismo cartesiano. Suas ideias tiveram influência em Kant e Auguste Comte.

David Hume faleceu em 1776, de câncer de intestino. Entretanto, antes de falecer, se preocupou com a preparação de sua obra póstuma, e mais controversa, Diálogos sobre a Religião Natural , além de escrever uma breve autobiografia, Minha Própria Vida.

Principais obras de Hume:

  • Tratado da Natureza Humana (1739-40);
  • Ensaios Morais e Políticos (1742);
  • Ensaio sobre o Entendimento Humano (1748);
  • Investigações sobre o Princípio da Moral (1751);
  • Minha Vida (1776).


David Hume e o empirismo cético

David Hume foi um dos principais nomes do empirismo moderno e sua ideia principal é que todo o conhecimento humano deriva da experiência sensível.

Conhecido por seu ceticismo quanto à natureza e a justificativa de determinadas formas de conhecimento, ele trouxe uma perspectiva diferente para a natureza do conhecimento.

Contextualizando o desenvolvimento da filosofia de Hume, enquanto René Descartes desenvolvia o racionalismo, o empirismo ganhava força, principalmente na Inglaterra, trazendo uma teoria diversa da origem das ideias.

Para os filósofos empiristas, todas as ideias vêm da realidade, na qual se pode experimentar o mundo e interagir com ele por meio dos sentidos. Dois autores que se debruçaram sobre essa vertente foram John Locke e David Hume.

Retratos de John Locke e David Hume lado a lado, pensadores centrais do empirismo e do iluminismo
John Locke e David Hume, da esquerda para a direita.

Diferentemente de Locke, que foi contemporâneo de duas grandes revoluções políticas inglesas, Hume vivenciou grandes transformações e esse momento histórico foi fundamental para o desenvolvimento de sua filosofia.

Segundo o professor Franklin Leopoldo e Silva comenta na segunda aula do curso “Trilha da Filosofia | 4º Temporada”, a principal diferença entre os dois pensadores é a teoria da associação das ideias, que se tornou muito importante para a ciência, em especial, para o campo da psicologia.

Enquanto John Locke acreditava que as ideias eram adquiridas por percepção, obtidas por sensação e reflexão; David Hume dizia que as ideias e as percepções se associam e produzem novas ideias.

Para Hume, todo o conhecimento humano deriva da experiência sensível: as impressões (vívidas e imediatas) são a base de onde se originam as ideias, que são cópias dessas impressões.

Ele categoriza as percepções e ideias em três princípios:

  • semelhança;
  • contiguidade;
  • causalidade.


Desse modo, David Hume vai de encontro com o inatismo, pois, para ele, essas relações são aprendidas através da experiência.

Além disso, ele também faz uma crítica à razão como única fonte confiável de conhecimento. Para ele, a razão é limitada e pode levar a conclusões que não encontram respaldo na experiência.

Portanto, o empirismo cético de Hume questiona tanto os princípios racionalistas quanto as certezas metafísicas.

Então, David Hume propõe uma filosofia que compreende as limitações do entendimento humano e valoriza a observação e a experiência como elementos validadores do conhecimento.

Basicamente, o ceticismo filosófico de Hume se volta para o questionamento da razão e da preocupação com os limites do conhecimento.



Ceticismo e a crítica à causalidade em David Hume

Um exemplo marcante do pensamento de Hume é a crítica ao princípio de causalidade, que, para ele, não é algo inato ao homem.

Para Hume, a ideia de causa e efeito não possui fundamento racional, mas sim psicológico, referente ao hábito e a experiência da mente.

A ideia de Hume sobre o hábito psicológico de esperar determinados resultados após eventos recorrentes é resultado de um ceticismo que não nega o conhecimento, mas impõe limites a ele. Sendo assim, só se pode confiar no que pode ser confirmado pela experiência.

Para exemplificar, vamos nos perguntar: o que aconteceria se o Sol não nascesse?

Vamos fazer uma análise empírica da expectativa do nascer do sol, um exemplo clássico do hábito de pensar.

O Sol nascerá amanhã e ninguém duvida disso. No entanto, segundo Hume, do ponto de vista empírico da origem das ideias, não há nada que comprove que o Sol nascerá amanhã.

A ausência da dúvida de que o Sol vai nascer acontece porque desde a origem dos tempos isso se repete dia após dia. Portanto, nós adquirimos o hábito de ver o Sol nascer repetidamente todas as manhãs. Então não temos nenhuma dúvida de que isso vai acontecer.

Apesar do nascer do Sol ser um fenômeno compartilhado pela percepção comum e uma força natural, essa ideia não é lógica e racional, uma vez que não podemos afirmar que vai ocorrer novamente amanhã.



O que é, então, o hábito?

De acordo com o professor Franklin Leopoldo e Silva, “as ideias que nós julgamos destacadas no mundo da realidade vêm do hábito de pensar. Todos nós temos como característica principal o hábito de pensar.

E esse processo acontece a partir do momento em que as percepções são absorvidas pela mente e tornam-se hábitos, o que nos faz pensar de acordo com esses hábitos.

“O hábito é o grande guia da vida humana” - David Hume

Retomando o exemplo anterior, caso o Sol não nasça amanhã, o mundo sofreria uma quebra de expectativa que romperia com um hábito, o de pensar, que nós adquirimos a partir da percepção e repetição do evento do nascimento do Sol.

Por isso, não existe um fundamento no empirismo cético que permita garantir o nascimento do Sol. É possível “prever” este acontecimento, devido à repetição do evento e ao hábito adquirido por essa expectativa.

Então, o hábito é essencial para a construção sólida do conhecimento. Portanto, a causalidade, baseada em experiências repetidas, não pode garantir com certeza eventos futuros.

A crítica à ideia de “eu” como substância em David Hume

David Hume questiona a ideia convencional do “eu” como uma substância permanente e indivisível. Contrapondo-se à metafísica clássica, Hume diz que o "eu" não é algo fixo ou substancial, mas uma sucessão de percepções temporais.

Para ele, na consciência humana o que se encontra são percepções em constante fluxo (impressões): sensações, pensamentos, emoções.

Portanto, a ideia de um "eu" constante e unitário, segundo ele, é uma construção mental criada pelo hábito para dar continuidade ao que é descontínuo.

Essa visão rompe com séculos de tradição filosófica que sustentavam uma alma ou substância pensante como essência do sujeito.

Como aponta Scruton, essa postura leva a uma forma de ceticismo acerca da identidade pessoal, ao mostrar que a crença em um “eu” permanente é formada apenas pela memória e pela associação de ideias, evidenciando a fragilidade das certezas sobre o “quem sou”.

A Teoria Moral de Hume

David Hume propõe que a moralidade não se baseia na razão, mas no sentimento, revolucionando, assim, a filosofia moral.

Ele foi de encontro à tradição racionalista, que via os princípios morais como deduções da razão pura, como defendido por Descartes e Kant.

Para Hume, o bem e o mal não são não são propriedades objetivas nas ações ou nas pessoas, na verdade são reflexos das emoções provocadas por algo ou alguém.

Em Uma Investigação Sobre os Princípios da Moral, Hume argumenta que a razão é “escrava das paixões”, porque ela pode fornecer informações sobre os meios para atingir certos fins, mas são os sentimentos que determinam os fins e a aprovação ou não das ações.

Capa do livro 'Uma investigação sobre os princípios da moral', de David Hume
Capa da obra 'Uma investigação sobre os princípios da moral', de David Hume — Fonte: Reprodução

Ou seja, a razão é um instrumento da paixão, enquanto os sentimentos são que conduzem os juízos morais. Dessa forma, o julgamento de determinada ação como boa ou não é uma reação afetiva, não um pensamento lógico.

A moral, para Hume, é construída a partir da simpatia, esta é uma capacidade humana de se colocar no lugar do outro, entendê-lo e partilhar sentimentos.

É esse mecanismo psicológico que permite a compreensão do bem e do mal e, consequentemente, serve de base para os juízos morais.

Portanto, para ele, não existe um fundamento racional absoluto que justifique os valores morais, porque eles são fruto da natureza humana e da convivência social.

Rompendo com a rigidez racionalista, Hume valoriza a complexidade emocional da vida ética e reconhece os limites da razão na formação do juízo moral.

Qual a importância de David Hume para a ciência moderna?

As ideias de David Hume tiveram um forte impacto na filosofia moderna, especialmente quanto a Immanuel Kant.

Uma vez que Hume questionou os fundamentos da causalidade, da identidade pessoal e da moralidade racional, ele abalou as bases do racionalismo. Foi sua crítica ao princípio de causalidade que levou Kant a dizer que Hume o “despertou do sono dogmático”.

Com isso, Kant buscou estabelecer novos fundamentos para o conhecimento, equilibrando razão e experiência (racionalismo e empirismo). Assim, a filosofia kantiana nasce do confronto direto com o ceticismo.

Ao passo que Hume impôs limites à razão e à metafísica especulativa, abriu espaço para uma filosofia crítica, que questiona as certezas absolutas.

Tão fortes são as ideias de David Hume que até hoje influenciam a filosofia contemporânea, principalmente, ao trazer uma nova perspectiva do “eu”.

Perguntas frequentes:

Qual método David Hume defendia?

David Hume utilizou o método empírico para desenvolver suas ideias, o qual afirma que o conhecimento deriva da observação da experiência sensível.

Ele aplicava esse método empirista com uma postura cética, principalmente ao investigar conceitos como causalidade, identidade pessoal e substância.

Portanto, seu método era uma combinação de empirismo e ceticismo, especialmente voltado para os limites do entendimento humano e contrário à metafísica especulativa sem base na experiência.

Qual a principal ideia de David Hume?

Resumidamente, a principal ideia de David Hume é que todo conhecimento humano vem da experiência sensível e existem limites na utilização da razão para explicar a realidade.

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Referências:

Curso da Casa do Saber - Trilha da filosofia | Temporada 4 - Aula 02: O empirismo em Locke e Hume.

SCRUTON, Roger. Introdução à filosofia moderna

STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. David Hume.

Vários autores. História das grandes ideias do mundo ocidental. Volume 2.

Provavelmente você já ouviu ou leu a frase “Penso, logo existo”. Uma das mais célebres frases da filosofia moderna pertence a René Descartes, um homem que foi filósofo, matemático e físico e teve contribuições fundamentais para a ciência moderna.

Neste texto você vai conhecer mais sobre a vida deste filósofo racionalista, seus principais princípios filosóficos e contribuições que estão presentes na nossa vida até os dias de hoje.

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Quem foi René Descartes?

René Descartes foi um filósofo, matemático e físico francês. Nasceu em 31 de março de 1596, na antiga La Haye, na França, agora La Haye-Descartes em sua homenagem.

Conhecido como o "pai da filosofia moderna", ele propôs uma nova perspectiva sobre o pensamento, baseado na razão e na dúvida metódica.

Desde a infância, Descartes teve contato com uma educação rica e de qualidade. Estudou no colégio jesuíta de La Flèche, onde aprendeu filosofia escolástica.

Posteriormente, formou-se em Direito na Universidade de Poitiers, apesar de não ter exercido a profissão.

Contudo, Descartes entendia que a escolástica não o levaria para um conhecimento indubitável. Então seu interesse se voltou para a matemática, a filosofia e as ciências naturais.

Ele foi de encontro com o pensamento aristotélico ao propor uma ciência unitária e universal, que seria pilar para o método científico moderno.

Descartes viveu em um período de grandes transformações. Ele vivenciou o fim da Idade Média e o início da modernidade, período no qual o pensamento era baseado na autoridade da Igreja e das tradições.

Por ter sido uma época marcada pelas descobertas científicas, mudanças religiosas e conflitos políticos, começou a ocorrer uma mudança quanto ao pensamento tradicional vigente.

Nesse contexto, Descartes propôs um novo método de investigação que valorizava a razão e a lógica acima de tudo.

Ao longo de sua vida, Descartes escreveu obras que influenciaram não só a filosofia, mas também a ciência e a matemática.

Entre as principais obras de Descartes estão:

  • Discurso do Método (1637)

  • Meditações Metafísicas (1641)

  • Princípios da Filosofia (1644)



Descartes recebeu um convite, em 1649, para ser conselheiro e professor da rainha Cristina, em Estocolmo, Suécia. Ele faleceu em 1650, de pneumonia.

O racionalismo cartesiano e a dúvida metódica

René Descartes recebeu o status de fundador do racionalismo moderno. Ele tinha como proposta filosófica estabelecer um conhecimento seguro e verdadeiro, baseado na razão.

Para isso, desenvolveu um procedimento rigoroso conhecido como dúvida metódica.

Também conhecido como método da dúvida, este é um modelo de investigação rigorosa que consiste em colocar sob suspeita todas as crenças, mesmo aquelas que já são tidas como certezas, que possam ser passíveis de dúvida.

Descartes propõe que antes de aceitar qualquer ideia como verdadeira é necessário examiná-la criteriosamente, questionando sua origem e seus fundamentos.

E esses questionamentos também se referem às informações obtidas pelos sentidos – que podem ser enganosas –, as crenças aprendidas na infância e até mesmo as verdades matemáticas.

O ponto-chave da sua proposta filosófica são as ideias inatas, as quais são verdades que estão na mente humana desde o nascimento e que são independentes da experiência sensível. Para exemplificar, a noção de Deus e da perfeição. Este método também ficou conhecido como método cartesiano.

Pode-se chamar essa dúvida de método porque, para Descartes, a dúvida é uma ferramenta para a construção do conhecimento. E a razão deve ser aplicada de forma ordenada e lógica, organizando os problemas dos mais simples para os mais complexos.

Então, para ele, a dúvida de forma radical deveria ser aplicada, pois, assim, atingiria-se um ponto seguro do conhecimento que temos.

Tamanha era a preocupação do filósofo que ele questionou a própria existência, chegando à famosa frase “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum), a qual é a conclusão do argumento do cogito, a primeira certeza inabalável.

Portanto, o racionalismo cartesiano afirma que a razão é o único caminho confiável para atingir o conhecimento verdadeiro.

O método cartesiano influenciou profundamente a ciência moderna, a filosofia e a forma como pensamos sobre o mundo até hoje.


“Penso, logo existo”: significado e impacto

A frase “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum) é uma das mais conhecidas de Descartes e da história da filosofia.

Foi através dela que René Descartes traçou o caminho para a busca por um conhecimento que não pudesse ser colocado em dúvida.

Na verdade, essa frase é a conclusão do argumento do cogito.

O argumento do cogito

Ao adotar a dúvida metódica como método, Descartes questiona tudo: os sentidos, as crenças, as ideias inatas, aquelas colocadas por Deus na mente humana, e até mesmo os princípios da matemática.

No entanto, o próprio fato de pensar, mesmo que duvide, já prova a existência do sujeito enquanto pensamento.

Assim, o cogito se tornou a primeira certeza indiscutível: se penso, logo existo.

René Descartes trouxe para a discussão uma nova perspectiva do ponto de partida do conhecimento: a razão. Isso rompia com a tradição filosófica que antes se apoiava em autoridades externas, tradições ou experiências sensoriais.

A dúvida radical é fundamental para esse pensamento porque, mesmo que a convicção do indivíduo seja falsa, ele a está questionando e isso, por si só, prova a sua existência na condição de sujeito pensante.

Portanto, sendo provado que o sujeito é pensante, isso se torna uma verdade que fundamenta seu pensamento filosófico para a construção do edifício do conhecimento.

A partir da certeza do cogito, Descartes busca demonstrar e fundamentar a existência de Deus para validar a confiabilidade do mundo exterior – sempre partindo da razão.

O cogito inaugura uma nova forma de pensar, focada no sujeito e em sua capacidade de reflexão. Desta forma, Descartes estabelece a consciência do indivíduo como base da construção do saber.

Essa ideia impacta a filosofia e outras áreas, como a ciência, a psicologia e a própria noção de sujeito moderno.

A confiança na razão e na autonomia do indivíduo, discutidas no cogito, moldaram a percepção do ser humano na modernidade, instigando o caráter investigativo.

Em resumo, a conclusão “penso, logo existo” extrapola a frase filosófica. Ela é o começo para compreender o mundo e a si mesmo sob um novo olhar.



Dualismo mente e corpo: a separação entre “res cogitans” e “res extensa”

A teoria do dualismo proposta por Descartes diz que existem duas substâncias distintas na realidade: a mente (res cogitans) e o corpo (res extensa).

A res cogitans é a substância pensante, imaterial, consciente e racional, ou seja, a mente. Portanto, é a parte responsável pelo pensamento, pela dúvida, pela compreensão, pelo desejo e pelo sentimento.

Entretanto, a res extensa é a substância material, que tem forma e que se submete às leis da física, isto é, o corpo.

Descartes dizia que a mente é invisível e indivisível, enquanto o corpo é visível e divisível.

Embora mente e corpo sejam substâncias de naturezas diferentes, elas interagem nas sensações e emoções. Apesar de serem partes distintas (res cogitans e res extensa), estão interligadas.

Segundo Descartes, a comunicação entre essas substâncias acontece por meio da glândula pineal, localizada no cérebro, onde os pensamentos influenciam as ações do corpo e a recíproca é verdadeira.

O princípio do dualismo mente e corpo contribuiu para uma mudança importante no modo como essas substâncias passaram a ser abordadas na ciência: a mente passou a ser estudada pela filosofia, enquanto o corpo e os fenômenos físicos se tornaram objeto da ciência moderna.

Essa distinção não só permitiu o avanço de áreas como a medicina e a matemática, como também contribuiu para o desenvolvimento da psicologia e da nossa compreensão sobre a subjetividade humana.

Descartes na matemática, física e pensamento científico

As ideias de Descartes tiveram grande influência no desenvolvimento da matemática, da física e da ciência moderna como um todo.

Quando Descartes propôs uma busca pelo conhecimento verdadeiro por meio da razão, ele contribuiu com a fundamentação racionalista do método científico e modificou a compreensão que temos da natureza.

Na matemática, sua principal contribuição foi a criação da geometria analítica, que uniu a álgebra e a geometria em um único sistema.

Isso permitiu representar elementos geométricos, como retas, pontos, circunferências, por meio de equações, o que possibilitou descrever fenômenos naturais com precisão matemática.

Os conhecidos eixos cartesianos são fundamentais para diversas áreas da ciência e da engenharia.

Já na física, Descartes propôs uma visão mecanicista do mundo, rompendo com a visão aristotélica. Ele acreditava que a natureza funciona como uma máquina, obedecendo a leis mecânicas (matemáticas e racionais), descartando o sobrenatural.

Com isso, trouxe a ideia de que os fenômenos físicos podem ser explicados através das causas eficientes (colisões e movimento de partículas materiais), o que teve impacto direto para a física moderna.

Por último, mas não menos relevante, sua colaboração com o pensamento científico está diretamente ligada à valorização do método.

Segundo Descartes, o conhecimento deve seguir um raciocínio lógico e ordenado, com base em evidências claras e objetivas, guiando o ideal de objetividade que orienta as ciências até os dias atuais.

Quando René Descartes elaborou um pensamento que unia razão, clareza conceitual e método, ele estabeleceu fundamentos capazes de orientar a investigação científica, que ainda são utilizados no mundo moderno.

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Críticas e limitações do pensamento cartesiano

O pensamento cartesiano não só exerceu influência na filosofia e nas ciências modernas, como também recebeu críticas importantes, sobretudo de visões contemporâneas.

Um dos pontos de crítica é o seu dualismo mente e corpo, res cogitans e res extensa, como substâncias distintas e independentes.

Para alguns críticos, essa divisão gera dificuldades em explicar como duas naturezas tão diferentes poderiam interagir.

A tentativa de Descartes de resolver isso por meio da glândula pineal não foi muito aceita. Filósofos como Espinosa e Leibniz buscaram alternativas para superar essa divisão e defender uma visão mais integrada da realidade.

Outro questionamento sobre as ideias de Descartes volta-se para o racionalismo cartesiano excessivo.

Quando René Descartes prioriza a razão como fonte do conhecimento, ele desconsidera a relevância das outras experiências: dos sentidos, da vivência e do contexto histórico como parte fundamental da construção do conhecimento.

Alguns filósofos conhecidos que contrapuseram essa ideia são dois empiristas, John Locke e David Hume. Eles argumentaram que todo conhecimento tem origem na experiência sensível.

Agora, na contemporaneidade, a crítica ao racionalismo cartesiano expressa a necessidade de repensar o sujeito de forma mais complexa, pois não é possível ignorar os contextos culturais, sociais e históricos aos quais ele pertence.

Apesar dessas limitações e questionamentos, o pensamento cartesiano continua relevante. Sua influência foi tão forte que correntes filosóficas se formaram a partir das críticas e das dúvidas que vieram de suas ideias, como o empirismo.

E não seria essa a proposta inicial do pensamento cartesiano? Questionar tudo, até mesmo as crenças que são tidas como verdades? Provavelmente, ele estaria feliz com o resultado de suas ideias e de suas questões em aberto.

Por que ainda estudamos Descartes hoje?

René Descartes continua até hoje sendo referência e provocando reflexões fundamentais sobre a razão, a dúvida e o conhecimento.

O método cartesiano teve forte influência na investigação filosófica, científica e epistemológica, trazendo o sujeito pensante para o centro da busca pela verdade.

Sua proposta de começar o saber pela suspensão de todas as certezas abriu caminho para uma filosofia mais crítica e autônoma, inclusive favoreceu o surgimento de ramos da filosofia que tentavam se inspirar, como o Iluminismo, ou ressignificá-lo.

Ainda que tenham sido refutadas e recebido críticas, as ideias de Descartes não só influenciaram como ainda influenciam a construção do conhecimento, a ciência e a sociedade.

Estudar Descartes é voltar às raízes do pensamento moderno como um guia para compreendermos o que é o conhecimento e a nossa existência. Além de ser um convite para a autocrítica para refletirmos sobre como pensamos e como lidamos com a dúvida.

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A psicanálise de Wilfred Ruprecht Bion analisa a mente em grupo e a formação das emoções através do autoconhecimento. Além de ter produzido uma teoria sobre o funcionamento da personalidade, W. Bion criou a perspectiva que defende uma psicanálise aplicada para além do inconsciente, na medida em que os aspectos conscientes também revelariam o mundo dos sujeitos.

Para compreender os seus principais conceitos e percorrer sobre as particularidades da sua história, confira:



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Quem foi Wilfred Bion?

Nascido em 1897 em Penjab, na Índia, Bion foi criado até os sete anos por uma ama indiana, Ayah, que exerceu grande influência sobre seus estudos e interesses educacionais. Com uma família pouco estruturada, Bion foi enviado a um colégio interno na Inglaterra aos oito anos, no entanto, teve dificuldades de adaptação por conta da rigidez institucional e da solidão, uma vez que seus pais e irmã raramente o visitavam.

Para auxiliar no seu processo de sociabilidade, Wilfred passou a praticar esportes como natação e rugby, se tornando capitão de equipes. Além disso, ingressou nas Forças Armadas e atingiu patente de capitão, chegando a ser condecorado em função do seu desempenho. Com o final da I Guerra Mundial, Bion passa a desenvolver seus estudos em História na Universidade de Oxford, onde se aprofunda nos estudos filosóficos, com especial atenção ao empirismo inglês de Immanuel Kant.

O interesse na História Moderna e na Teologia, impulsionaram W. Bion a cursar Medicina na University College London e se tornar psicanalista. Trabalhos como o de Sigmund Freud despertaram o interesse para a prática clínica, assim como William Shakespeare, que o inspirou através dos estudos artísticos e estéticos.

Pioneiro na criação da terapia em grupo para militares, Bion buscava auxiliar no processo de reabilitação psíquica dos sujeitos após o elemento traumático.

Após formado, se qualifica em psicoterapia psicanalítica na Clínica Tavistock em Londres, onde entra em contato com o trabalho de Donald Winnicott e Herbert Rosenfeld. Foi somente em meados de 1946 que W. Bion entra em análise de treinamento com Melanie Klein, se tornando, em 1950, membro pleno da Sociedade Psicanalítica Britânica.

Nesse contexto, Bion produz estudos sobre as dinâmicas de grupo e o trabalho psicanalítico em pacientes com transtornos psicóticos, pois defendia que a sociedade tem uma tendência inata ao desejo de conhecimento e do saber.


Bion: a relação com outros psicanalistas e influências

Com o trabalho de Melanie Klein – referência nos estudos sobre escuta e desenvolvimento humano –, Bion se aprofunda na psicanálise, sobretudo em relação à vida psíquica primitiva, à identificação projetiva e ao desenvolvimento do pensamento.

Para o psicanalista, interessava compreender como a mente humana aprende a pensar.

Com Freud e a teoria do princípio do prazer e da realidade, W. Bion avança ao sugerir que o pensamento se dá justamente para que o indivíduo saiba lidar com a frustração da ausência do objeto desejado.

Esse processo é o que Bion denomina por aprendizado pela experiência: a psique se desenvolve no exercício de suportar as frustrações da vida e criar formas de compreendê-las.

Caso contrário, ao invés de pensar e processar a informação, o sujeito continuaria despejando impulsivamente seus estados emocionais, o que permitiria, segundo o psicanalista, uma abertura à patologias psíquicas.


O que diz a teoria de Wilfred Bion?

Ao trafegar por suas ideias, Bion deixa claro que não se preocupa em criar teorias, pois o seu objetivo maior estaria centrado em orientar o processo de análise do paciente a partir da experiência emocional.

No entanto, quando compara-se a sua perspectiva com a psicanálise clássica, é notório que a sua visão avança no que se refere a um processo de análise que não se dá somente a partir do analista, mas, sobretudo, a partir do sujeito analisado.

Para ele, não se trata da busca pela origem do trauma ou das fantasias do indivíduo, mas de uma expansão da capacidade de reflexão do sujeito em um universo que está em constante movimento. Nesse sentido, o que o psicanalista sugere, é que o processo analítico seja realizado principalmente pelo analisado, a partir das suas descobertas, verdades e contradições. Assim, o psicanalista auxilia o paciente no processo, não como um agente central, mas como um guia.

Para o autor, o pensamento humano se transforma em uma máquina de pensar por conta do acúmulo de experiências, sensações e percepções.

Desse modo, seria através dos processos de internalização dos pensamentos, que a compreensão de mundo do sujeito ganharia forma, no qual o indivíduo construirá suas próprias impressões, dotando-as de significado e experiência.

Quais os principais conceitos de Wilfred Bion?

Mesmo que o autor sugira que não há uma teoria em específico a seguir, alguns conceitos são centrais para o processo de compreensão de sua obra. Nesse aspecto, foram diversas as contribuições de W. Bion, algumas, em particular, merecem destaque pelo aprofundamento nos estudos psicanalíticos.

Teoria do Pensamento

Ainda na década de 1940, Bion desenvolve a Teoria do Pensamento a partir dos estudos de Freud e Klein. Em sua perspectiva, o pensar surge como uma saída, uma solução, para se lidar com a frustração no indivíduo.

Nesse sentido, a frustração, a não realização, é o primeiro passo para a origem do pensamento que, por sua vez, irá construir o aparelho psíquico. Em outras palavras, para Bion, o pensamento é precursor. Assim, o aparelho psíquico existe para dar resposta à necessidade do pensar.

“O pensamento está em busca de um pensador” (W. Bion)


Bion defende que a primeira frustração ocorre a partir da “experiência do não seio”, caracterizada pela percepção do bebê em não encontrar, instintivamente, o seio materno. A partir dessa não realização, o bebê desenvolverá o que ele denomina por Protopensamento, ou seja, uma primeira manifestação da capacidade do pensar, dando, então, condições para a elaboração dos pensamentos, para a produção dos sonhos e das funções do intelecto.

Função Alfa e Função Beta

Nesse caminho, se o bebê lidar de forma positiva com a frustração, ocorrerá o pensamento em si, gerando, assim, a capacidade de tolerância do indivíduo. Esse processo é denominado por W. Bion por Função Alfa, ou seja, trata-se da constituição de uma compreensão das necessidades humanas a partir da primeira frustração.

Há, ainda, experiências que não puderam ser pensadas ou vividas pelo indivíduo, provocadas pela incapacidade de tolerar a frustração. A esses elementos, Bion denomina por Função Beta, compreendida como as experiências sensoriais primitivas que não foram elaboradas como positivas pelo bebê, e que geram uma espécie de agitação motora, ou seja, o excesso de sensações.

Em outras palavras, para ele, os elementos beta são armazenados não como forma de memória, mas como fatos e situações não digeridas, enquanto os elementos alfa foram digeridos e processados pelo indivíduo.

Teoria do Continente e Conteúdo

Outra perspectiva de W. Bion que merece destaque, é a Teoria do Continente e Conteúdo – um dos conceitos centrais da psicanálise contemporânea, que se refere à relação entre mãe e bebê.

Para o autor, o bebê nasce repleto de experiências sensoriais intensas, com baixa capacidade de organizá-las cognitivamente. Nesse sentido, um dos principais papéis da figura da cuidadora primária, é o de “conter” as necessidades orgânicas e emocionais, os medos e angústias do bebê.

A mãe, então, age como continente das emoções do bebê, sendo os conteúdos, a própria experiência da criança. Se a mãe transforma as angústias e as sensações do bebê em pensamentos e experiências, ela auxiliará no processo de aprendizagem e produção de autoconhecimento do sujeito.

Vínculos L/K/H

Outra percepção de W. Bion trata-se do conceito de vínculo, elaborado a partir de três obras do autor: Aprendendo com a experiência (1962), Elementos de Psicanálise (1963) e Transformações (1965). Nos livros, ele descreve os três tipos de elos: vínculo de amor (L – love), vínculo de ódio (H – hate) e vínculos de conhecimento (K – knowledge).

Os sentimentos que conhecemos pelos nomes 'amor' e 'ódio' parecem ser escolhas óbvias se o critério for a emoção básica. Inveja e Gratidão, Depressão, Culpa, Ansiedade, todos ocupam um lugar dominante na teoria psicanalítica” (Bion, 1962, p. 42-43).


Com isso, o que W. Bion nos diz, é que os elos são formados de modo dinâmico através de uma inter relação primitiva que afeta o desenvolvimento individual e que é investida por esses vínculos. Para ele, não há conhecimento sobre os objetos que não estejam profundamente enraizados em laços afetivos, ou seja, toda experiência emocional pode ser percebida como um elo, pois coloca um Eu e um objeto na presença um do outro.

Cabe ainda mencionar que, para o autor, os três tipos de vínculos podem ser sinalizados de forma positiva (+) ou negativa (-). Por exemplo: menos amor (-L) não é o mesmo que sentir ódio, assim como menos ódio (-H) não significa amor.

Para ler mais sobre amor e psicanálise, confira o curso Freud e o Amor - Casa do Saber.



Três obras de Wilfred Bion que você precisa conhecer

Com mais de 50 títulos publicados, a obra de Bion reflete a complexidade dos estudos contemporâneos da psicanálise a partir da psicologia social, baseada nas experiências emocionais que ocorreram na prática psicanalítica do autor.

No entanto, em particular, algumas obras merecem destaque:

(1961) BION, Wilfred R. Experiências em grupos. Buenos Aires: Paidos Iberica Ediciones S. A., 1980.

capa do livro Experiências em Grupos, de Wilfred Bion

No livro “Experiências em Grupos”, Bion reúne artigos próprios construídos entre 1948 e 1960, e constrói uma análise psicanalítica sobre a concepção e a mentalidade dos grupos. Apresentando conceitos Kleinianos, o psicanalista chama atenção para como o processo de análise deve se dar sob o olhar do que se diz e do que não se diz em terapia, avaliando não apenas as palavras do paciente, mas também, os seus silêncios.

(1962) BION, Wilfred R. Aprender da experiência. São Paulo: Editora Blucher, 2021.

capa do livro aprendar da experiência, de Wilfred Bion

Já em “Aprender da experiência”, W. Bion mostra a sua principal teoria sobre a formação do pensamento, chamando a atenção para a experiência emocional dos indivíduos enquanto propulsor para a reestruturação de ideias. Além disso, explora o aprendizado através do conhecimento aos problemas, pois sugere que o conhecimento sobre si, pode gerar um grau de sofrimento no sujeito.

(1963) BION, Wilfred R. Elementos da Psicanálise. Ribeirão Preto: Espaço Psi, 2023.

capa do livro elementos da psicanalise, de Wilfred Bion

Considerado uma das obras mais importantes e fundamentais da obra de Bion, “Elementos da Psicanálise” trata sobre a origem e a natureza dos pensamentos e da capacidade de pensar. O autor define os elementos da psicanálise a partir de um uso sadio ou patológico do pensamento, abrindo caminhos para se pensar a formação dos sentimentos de angústia, confiança e vitalidade a partir da frustração.




Resumo sobre Wilfred Bion

Com sua pioneira capacidade intelectual de investigar sobre a experiência dinâmica de grupos, e aprofundar nos estudos sobre desenvolvimento individual, Wilfred Bion se tornou uma referência para a psicanálise moderna.

A Casa do Saber oferece um curso que apresenta um panorama das questões centrais do pensamento do autor. Saiba mais: Bion e os Dilemas da Vida Comum: O Pensar na Contemporaneidade - Casa do Saber.

O seu trabalho ativo abriu caminhos para que as experiências emocionais dos sujeitos se apresentassem como um espaço de autodescoberta psicanalítica, na qual o autor destaca ser sempre de natureza vincular.

Nesse sentido, os estudos de W. Bion apresentam instigantes possibilidades de reflexão e análise dos sujeitos a partir de uma leitura expansionista e dialética.

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Referências:

https://psychoanalysis.org.uk/our-authors-and-theorists/wilfred-bion

https://www.bion.org.br/

https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372013000200015

https://www.encyclopedia.com/psychology/dictionaries-thesauruses-pictures-and-press-releases/love-hate-knowledge-lhk-links

https://sbpmg.org.br/wp-content/uploads/2022/11/6-Bion-1.pdf

ZIMERMAN-D.-E.-A-obra-Uma-Resenha-dos-Trab.-de-Bion.-In-Bion-Da-teoria-a-pratica.-pag.-31-47.-Cap.2.pdf

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