A solidão tem sido uma das questões contemporâneas mais exploradas pelas narrativas tecnológicas da atualidade. Recentemente, Mark Zuckerberg, CEO da Meta, anunciou que os "amigos IA" — versões personalizadas de inteligências artificiais com características humanizadas — serão a solução definitiva para a solidão humana: “As pessoas vão conversar com assistentes que as conhecem profundamente, que são seus amigos”, afirmou Zuckerberg.
Em tom messiânico, ele descreve um futuro em que ninguém mais precisará sentir-se só, porque terá à disposição uma versão amigável e personalizada de inteligência artificial para lhe fazer companhia.

O amigo IA será, em essência, um algoritmo de confirmação: alimentado pelos dados do usuário, retroalimentado pelos seus gostos, valores, crenças e padrões de linguagem, e projetado para agradar — sem qualquer discordância, ruptura ou tensão — mas, justamente por isso, sem oferecer presença. Para a psicanálise, a formação do sujeito exige a experiência do conflito. O outro é estruturante não porque confirma, mas porque interrompe. É na diferença que o desejo se constitui.
A amizade IA proposta por Zuckerberg dissolve o conflito na lógica da customização algorítmica. Ela opera pela via do “perfilamento afetivo”: o sistema aprende o que o usuário gosta, pensa, sente, e passa a espelhar isso de volta. Como um feed emocional, ele reforça aquilo que já está lá. O sujeito, em vez de se transformar pelo encontro com o Outro, se fixa em si mesmo — preso num circuito narcísico de retroalimentação de si.
Acontece que a amizade é um campo de conflito simbólico, de elaboração da diferença, de desconstrução narcísica pela via da alteridade. Como afirma Hannah Arendt, o amigo é aquele diante do qual o mundo se revela, não porque ele o reproduz, mas porque ele o contradiz — e, ao fazê-lo, nos obriga a repensar a nós mesmos.

O problema contemporâneo não é mais a escassez de vínculos, mas a superabundância de conexões desinvestidas. Como diria Zygmunt Bauman, “as redes sociais são o lugar onde você se cerca de pessoas que pensam como você. Quanto mais você restringe seu mundo, mais solitário você se torna”. Os Amigos IA são a radicalização dessa bolha afetiva algorítmica que age produzindo mais distanciamento social e, portanto, mais solidão.
Trata-se de uma das promessas mais perigosas e ideologicamente sintomáticas da era digital: a substituição da alteridade real — complexa, conflitiva, viva — por simulacros afetivos programados para agradar. Se o que define a amizade é o encontro com o outro, com sua diferença irredutível e sua capacidade de nos transformar, então os amigos IA não acabarão com a solidão — ao contrário, a solidão se tornará estrutural, como também terá outro efeito colateral — e profundamente político — a formação de uma subjetividade extremista. Sem o outro, o sujeito não apenas se isola — ele se radicaliza.
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Ao conviver apenas com entidades que confirmam suas crenças e reafirmam seus valores, o indivíduo perde a capacidade de elaborar o dissenso e o sujeito que só escuta o que quer se torna, inevitavelmente, intolerante. Pois, o extremismo não nasce do conflito, mas da ausência de alteridade real que garanta o exercício democrático de vivermos entre diferentes.
Não se trata, portanto, de uma iniciativa ingênua, mas de um projeto: tornar o outro desnecessário, dissolver a alteridade e higienizar a diferença. Nesse cenário, a amizade deixa de ser escola de democracia (como a entendia Arendt) e se torna instrumento ideológico do individualismo, uma operação precisa de desumanização do laço social. E a quem interessa laços sociais cada vez mais enfraquecidos?
Essa amizade algorítmica é a expressão mais acabada de uma colonização neoliberal do psiquismo: “quero um outro que me atenda, que me compreenda sem esforço, que não me confronte, que não me faça esperar”. O amigo IA é a mercantilização da presença, a conversão do laço em serviço, da alteridade em produto. O que está em jogo aqui não é só a transformação das relações — é a própria reconfiguração da ideia de sujeito.
O sujeito desejante, que se constitui no encontro com o outro, na fricção do limite, no risco do laço, cede lugar ao sujeito consumidor — aquele que, ao adquirir uma companhia feita sob medida, não apenas perde a capacidade de se relacionar, mas também se anestesia, desaprende o outro, e, sem o outro, não há desejo. E, sem desejo, resta apenas o vazio.
Como dizia Foucault, “a amizade é subversiva”. E talvez seja exatamente por isso que o capitalismo digital tenta domesticá-la, transformá-la em algoritmo, dado, previsibilidade.
Por isso, deve ser recuperada enquanto prática de resistência, profundamente humana e radicalmente política, como espaço de alteridade viva, de travessia e de transformação. Como o lugar onde dois ou mais mundos se encontram, não para se fundir, nem para se anular, uma abertura, fresta por onde entra o outro, e com ele, o desconhecido, o imprevisto que nos obriga a nos reinventarmos sempre.
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