Psicanálise

Sadismo e Masoquismo: o que Freud revelou sobre prazer e dor

Sadismo e Masoquismo: o que Freud revelou sobre prazer e dor
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Sadismo e masoquismo costumam gerar estranhamento, polêmica ou até piadas, mas para a psicanálise esses termos vão muito além das fantasias populares. Neste artigo, você vai entender o que Freud realmente propôs ao falar em sadomasoquismo, por que essas tendências não são consideradas perversões e como elas aparecem tanto na sexualidade adulta quanto na infância. Vamos também explorar as práticas BDSM, o conceito de pulsão de morte e o impacto do masoquismo moral na vida psíquica.



O que é sadismo e masoquismo?

Para a psicanálise, o sadismo é definido como a prática sexual na qual um sujeito obtém prazer dominando ou provocando dor em seu parceiro.

Já o masoquismo corresponde ao prazer que uma pessoa tem em ser dominado ou em sentir dor. Estas dores podem ser tanto físicas (pancadas, flagelações) quanto morais (humilhações, rebaixamentos e xingamentos).

E o que é sadomasoquismo para a psicanálise?

Vamos começar a exposição sobre o sadismo e o masoquismo com algumas curiosidades.

A primeira delas diz respeito à origem dos termos “sadismo” e “masoquismo”. Com efeito, eles não são uma criação psicanalítica, mas sim, médica. Ambos aparecem pela primeira vez no ano de 1886 no famoso livro “Psychopathia sexualis” do eminente médico Richard von Krafft-Ebing.

O termo “sadismo” foi criado em referência ao Marquês de Sade, importante escritor de fins do século XVIII, cuja obra é marcada por narrativas de atos sexuais repletos de cenas de flagelações e humilhações. Já o termo “masoquismo” faz referência ao escritor austríaco Leopold von Sacher-Masoch.

E, agora, algo que muitos poucos sabem: o termo “sadomasoquismo” é uma criação freudiana, aparecendo pela primeira vez em 1905 nos famosos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”.

Através deste termo, Freud visou marcar que as tendências sádicas e masoquistas nunca se encontram separadas: todo sujeito sádico seria, ao mesmo tempo, masoquista e vice versa.

Assim, fica destacado que uma pessoa sádica é também capaz de gozar com qualquer dor que venha a sentir. Do mesmo modo, uma pessoa masoquista também sente prazer provocando dores e humilhações em seus parceiros.

A particularidade mais notável [do sadismo e do masoquismo] reside em que suas formas ativa e passiva costumam encontrar-se juntas numa mesma pessoa. Quem sente prazer em provocar dor no outro na relação sexual é também capaz de gozar, como prazer, de qualquer dor que possa extrair das relações sexuais. O sádico é sempre e ao mesmo tempo masoquista, ainda que o aspecto ativo ou passivo da perversão possa ter-se desenvolvido nele com maior intensidade e represente sua atividade sexual predominante” (Freud, 1905, p. 151).

Quanto a isso, lembro-me de uma pessoa com quem tive contato há muito tempo em um ambiente de trabalho. Era uma mulher que todos odiavam. Ela simplesmente humilhava todo mundo, debochava de qualquer um que lá trabalhava e queria ter domínio total sobre tudo o que ali acontecia. Metia um medo danado na gente e, de fato, conseguia mesmo submeter alguns de nós em virtude deste medo que insistia em provocar.

No entanto, certo dia, chegou-nos uma fofoca que ninguém imaginava: alguém espalhou que esta mesma senhora que a todos humilhava era completamente humilhada em seu outro trabalho.

E era verdade o bilhete: os chefes de lá a subestimavam, os colegas viviam debochando da cara dela e a única coisa que ela conseguia fazer era chorar, chorar e chorar, vitimizando-se o tempo todo em relação às situações que vivia. Era muita lamúria e muita queixa, coisas que nós, do outro trabalho, não conseguíamos nem visualizar.

Realmente, isso comprova que uma pessoa sádica é necessariamente masoquista e vice-versa. E, neste sentido, é impressionante notar o quanto duas tendências tão antagônicas podem encontrar-se juntas em um mesmo sujeito.

E a prática BDSM? O que é?

Sempre que o assunto é o sadomasoquismo, alguém pede para que eu fale um pouco sobre as práticas BDSM. Então vamos lá!

Trata-se, aqui, de um conjunto de práticas sexuais muito comentadas nos dias de hoje. Geralmente, elas são centradas em atos de dominação do parceiro e/ou de ser por ele dominado.

A letra “B” se refere à prática da “bondage”, ou seja, ao prazer referente aos atos de imobilização com cordas, fitas isolantes e mesmo algemas.

Já a letra “D” é referente à “disciplina”, geralmente obtida através de punições, castigos e humilhações. E, por fim, as letras “S” e “M” se referem à prática sadomasoquista.

Porém, é necessário frisar que tudo o que é feito e utilizado durante o ato sexual deve ser previamente acordado entre os praticantes. E isto em nome da proteção e da segurança dos parceiros, evitando-se qualquer tipo de ato não consentido.

Meme clássico do Batman dando um tapa no Robin

É interessante marcar que nos dias de hoje, os praticantes do BDSM têm buscado o merecido reconhecimento e legitimidade social, bem como a diminuição do preconceito em relação aos seus prazeres.



Para Freud, a pessoa sadomasoquista é perversa?

É óbvio que não! E neste sentido podemos destacar que um dos grandes méritos de Freud foi, justamente, o de ir contra toda a tradição médica que insistia em preconizar que sim. Este é um dos meus assuntos preferidos e sempre gostei de escrever a seu respeito. Vejamos.

Conforme destaca Foucault (1988), um dos pilares da tradição médica de fins do século XIX foi o de trabalhar com o conceito de perversões sexuais. Para estes médicos, nossos prazeres seriam governados por um instinto sexual, ou seja, uma força que nos conduz aos mais variados atos que visam à satisfação e ao gozo.

Haveria, assim, um funcionamento instintivo normal e um funcionamento instintivo anormal.

O funcionamento instintivo normal conduziria um homem a sentir-se atraído por uma mulher e vice-versa, sendo o objetivo desta união o ato da cópula (ou seja, a penetração pênis-vagina).

Já o funcionamento instintivo anormal conduziria a todo e qualquer ato que escapasse a esta penetração.

Portanto, para os médicos de fins do século XIX, seriam consideradas perversas:

  • a pessoa sádica – pessoa que possui prazer em provocar dor no parceiro e/ou a ter domínio sobre ele;
  • a pessoa masoquista – pessoa que sente prazer na dor e/ou em ser dominada;
  • o voyeurista – pessoa que sente prazer em olhar os outros;
  • o exibicionista – pessoa que sente prazer em ser olhado pelos outros;
  • o homossexual – pessoa que sente prazer com outros do mesmo sexo;
  • e o fetichista – pessoa que apenas sente prazer com um objeto não diretamente ligado à sexualidade.


Seu Madruga com muletas em cena do seriado Chaves


Freud e a psicanálise: do instinto sexual à pulsão sexual

Mas aí, inconformado com tudo o que diziam estes médicos, Freud chegou chegando bagunçando a zorra toda!

Com efeito, em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, ele se coloca muito pouco disponível em aceitar estas tantas concepções reacionárias da medicina de sua época.

Segundo Freud, seria muito raro encontrar uma pessoa que não tivesse alguma espécie – ainda que mínima – de prazeres sádicos, masoquistas, voyeuristas, exibicionistas, homossexuais ou fetichistas.

Então, das três, uma: ou todo mundo seria perverso; ou o normal seria ser perverso; ou então não existiria propriamente uma perversão sexual...

Por isso, Freud constrói o conceito de pulsão sexual. Segundo a psicanálise, é a pulsão sexual – e não o instinto – a força que rege a nossa sexualidade. Dentre as principais diferenças entre o instinto e a pulsão está o fato de o instinto possuir uma maneira estereotipada de satisfazer-se, enquanto a pulsão não.

Assim, a pulsão sexual não teria nem objeto nem alvo específicos, o que acaba com a ideia de que há um ato sexual normal e outros perversos: por este viés, tanto o sadismo quanto o masoquismo seriam práticas absolutamente normais, tal como o voyeurismo, o exibicionismo, a homossexualidade, o fetichismo, etc.

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Sadismo, masoquismo e sexualidade infantil

De tão normais que são, Freud (1905) vai inclusive considerar que o sadismo e o masoquismo podem ser percebidos no próprio contexto da sexualidade infantil.

Deste modo, ele coloca que como as crianças ainda não foram suficientemente educadas, elas ainda não conhecem os padrões morais em voga na sociedade. Por isso, é bastante comum vermos nelas algumas tendências que a sociedade julga como problemáticas, dentre elas, o sadismo e o masoquismo.

Neste sentido, em relação ao sadismo, podemos até mesmo perguntar: existe ser mais sádico que uma criança?

Com efeito, as crianças são capazes de exibir todas as suas tendências sádicas em relação aos outros. Mais do que qualquer adulto, volta e meia, elas dizem na nossa cara as verdades que mais nos machucam, demonstrando também toda a raiva que são capazes de sentir.

Também gostam de brigar umas com as outras para ver quem tem o devido domínio das brincadeiras e jogos que inventam. Inclusive – isto talvez seja o pior de tudo – dedicam-se meticulosamente às mais grotescas práticas de bullying que tanto nos assustam...

Eu mesmo lembro que, um dia, no colégio, joguei uma menina dentro da lixeira. Tipo: eu estava caminhando pelo pátio, olhei ela, olhei a lixeira e simplesmente me deu na telha jogá-la lá dentro!

A menina chorou demais e foi procurar a professora que, por sua vez, me deu a maior bronca. E eu nem sei porque joguei ela na lixeira... Simplesmente quis! Sádico desde criancinha...

E em relação ao masoquismo, a mesma pergunta: existe ser mais masoquista que uma criança?

De fato, é muito comum percebermos que as crianças, muitas vezes, fazem de tudo para apanhar: as maiores artes, as maiores malcriações... e elas apanham chorando, gritando e esperneando, porém, também sorrindo. E quando acabam de apanhar, simplesmente se levantam, colocam a mão na cintura e pedem mais.



Masoquismo erógeno e masoquismo moral: Freud e a pulsão de morte

Por fim, quero dizer que quando se trata de ensinar a concepção psicanalítica sobre o sadismo e o masoquismo não podemos deixar de lado as reelaborações que se fizeram a partir do conceito de pulsão de morte.

Com efeito, a introdução da pulsão de morte conduziu Freud a enxergar um domínio agressivo comum a todos os sujeitos e já presente nos primórdios de uma existência.

Sua hipótese é que, de início, a pulsão de morte volta-se contra o próprio sujeito, tendo por finalidade sua autodestruição. Trata-se, aqui, do domínio do masoquismo erógeno ou originário. Com ele, Freud (1924) passa a conceber que todos nós somos, acima de tudo, pessoas masoquistas.

Neste sentido, é deste masoquismo primeiro que surge todo o sadismo que uma pessoa pode vir a ter ao longo da vida. Assim, o sadismo aparece quando uma parte considerável da força da pulsão de morte é desviada para fora, dando origem a algumas tendências agressivas, destrutivas e de domínio em relação aos objetos em geral. Assim, a pessoa passa a destruir os objetos do mundo ao invés de prosseguir se autodestruindo.

No entanto, Freud coloca que o masoquismo erógeno ainda persiste e fornece as bases para todo o masoquismo que surge posteriormente. O principal deles é o masoquismo moral, fundamentado no sentimento de culpa e, portanto, originado a partir da atuação do superego (supereu).

Assim, culpando-se por qualquer coisa que tenha feito ou simplesmente desejado fazer, uma pessoa pode ser capaz de fazer com que tudo dê errado em sua vida e, com isso, sofrer bastante!

Ela pode, por exemplo, vir a fracassar, destruir seu casamento, acabar com suas relações com os filhos e também recorrentemente falhar na vida profissional. Tudo isto para sofrer!

Com efeito, Freud considera este masoquismo moral como o mais destrutivo de todos. E ele é também o que mais aparece em nossa clínica.

De acordo com a minha experiência, esta é uma das tendências que mais trazem sofrimento, sendo algo bem difícil de elaborar... Algo que a gente tenta ultrapassar, mas que sempre acaba retornando independentemente dos nossos esforços.

De fato, há muitas pessoas que se culpam por alguma coisa... E muitas vezes, sem ter consciência de que se culpam tanto. E para sofrer visando satisfazer esta culpa, elas inventam as maiores desgraças e os maiores desgostos, mergulhando fundo em um masoquismo sem fim... Um sofrimento que persiste, persiste, persiste e que parece que nunca acaba.



Perguntas frequentes sobre sadismo e masoquismo

O que é sadismo e masoquismo na psicanálise?

Na psicanálise, o sadismo é o prazer obtido ao provocar dor ou dominar o outro, enquanto o masoquismo é o prazer em sentir dor ou ser dominado. Freud propôs que essas tendências coexistem no mesmo sujeito, formando o conceito de sadomasoquismo.

O que é sadomasoquismo segundo Freud?

Freud cunhou o termo "sadomasoquismo" para destacar que o sadismo e o masoquismo não estão separados: quem provoca dor também pode sentir prazer ao ser submetido à dor, e vice-versa. Para ele, essas tendências são parte da constituição da sexualidade humana.

Freud considerava o sadomasoquismo uma perversão?

Não. Freud rompeu com a visão médica tradicional de sua época, que via essas práticas como perversões. Ele propôs que todos possuem elementos sadomasoquistas em algum grau, e que essas manifestações fazem parte da sexualidade humana regida pela pulsão, e não por um instinto fixo.

O que é a prática BDSM?

BDSM é um conjunto de práticas eróticas que envolvem dominação, submissão, disciplina e sadomasoquismo. Envolve prazer por meio de imobilizações, punições e jogos de poder consensuais. Tudo deve ser acordado entre os participantes, respeitando segurança e consentimento mútuo.

Sadismo e masoquismo aparecem na infância?

Sim. Freud observou tendências sadomasoquistas na sexualidade infantil. Crianças expressam sadismo ao provocarem ou ferirem o outro, e masoquismo ao buscarem punições ou situações dolorosas. Essas manifestações são normais e fazem parte do desenvolvimento psíquico.

O que é o masoquismo moral?

O masoquismo moral é um tipo de sofrimento inconsciente causado por sentimentos de culpa. A pessoa cria situações de fracasso e dor para se punir, mesmo sem perceber. Para Freud, esse é o tipo de masoquismo mais destrutivo, frequentemente tratado na clínica psicanalítica.



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Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.






Referências:

Foucault, Michel. (1988). História da sexualidade, vol. 1 – A vontade de saber. São Paulo: Graal.

Freud, Sigmund. (1905). Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 117-231.

_____. (1924). O problema econômico do masoquismo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 173-188.

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