Psicanálise

O que são chistes na psicanálise? Freud, o humor e o inconsciente

O que são chistes na psicanálise? Freud, o humor e o inconsciente

Algumas frases ditas de forma espontânea podem carregar muito mais do que apenas uma piada. Para Freud, os chamados chistes revelam desejos inconscientes e funcionam como uma via de escape para pensamentos que normalmente seriam reprimidos.

Neste artigo, você vai entender o que são os chistes na psicanálise, qual sua relação com o inconsciente e por que essas tiradas espirituosas dizem tanto sobre nós.

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O que é um chiste?

Em linhas gerais, os chistes respondem por tudo aquilo que se relaciona à ordem do cômico. Segundo a psicanálise, através do humor, o sujeito conseguiria manifestar algumas das suas tendências inconscientes, sejam elas agressivas ou mesmo obscenas.

O significado de chiste para a psicanálise

Para a psicanálise, ao contrário do que muitos pensam, os chistes não são exatamente piadas. Trata-se, aqui, de um antigo mal-entendido ocasionado pela problemática tradução do alemão “Witz” (termo empregado por Freud) por “chiste” que, literalmente, significa “piada”. No entanto, a ideia presente no texto freudiano não é exatamente esta.

Nesta perspectiva, destaca-se a opção de Lacan (1998) que, em seu “Seminário 5”, defendeu a tradução de “Witz” por “tirada espirituosa”. Para mim, esta é uma opção mais compatível com as análises de Freud e com os exemplos por ele mencionados. Por este viés, não seria através de qualquer piada que o inconsciente se manifestaria, mas apenas através de um tipo particular delas: as tiradas.

Uma “tirada” pode ser definida como qualquer fala, observação ou comentário mais ou menos espontâneo que através de jogos de palavras, trocadilhos ou neologismos consegue provocar riso nos outros. Em todas as tiradas, é comum haver certa dose de cinismo, ironia ou mesmo sarcasmo. E, de fato, qualquer um de nós reconhece que através de uma tirada, conseguimos dizer uma série de coisas que jamais poderiam ser ditas de outra maneira.

Qual a diferença entre chiste e piada?

Ao contrário do que muitos pensam, quando Freud escreveu sobre os chistes, ele não estava se referindo às piadas de maneira geral. Porém, a apenas um tipo delas: as “tiradas”.

As “tiradas” são espécies de trocadilhos, neologismos ou jogos de palavras que fazemos durante uma conversa e através dos quais conseguimos manifestar algumas das nossas tendências inconscientes.


Freud e o humor

São muitos os exemplos de chistes ou tiradas fornecidos por Freud. A maioria sem graça alguma... Há uns dois ou três mais engraçadinhos, mas mesmo assim, nem tanto.

Lembro de já ter compartilhado com alguns amigos psicanalistas a estranha sensação de não ter rido de quase nenhuma das tiradas apresentadas por Freud (muitas delas, inclusive, sequer entendi...). Como eles também confessaram não ter rido, concluímos que das duas uma: ou Freud era um péssimo piadista ou então há coisas que realmente só tem graça em alemão<. Ou as duas coisas...

Trata-se de algo semelhante ao que acontece quando, por exemplo, assistimos à transmissão do Oscar e também não rimos de exatamente nenhuma piada. E isso enquanto o apresentador conta mil delas no palco e a plateia inteira se esgoela de tanto rir. Deve haver coisas que só tem graça pra eles mesmo...


O chiste segundo Freud

Enfim, seguem os dois exemplos de tiradas mais ou menos engraçadinhas apresentadas por Freud:

Exemplo 1: A vaidade e os quatro calcanhares de Aquiles

O primeiro é o de dois amigos que conversavam sobre alguém que eles odiavam. Tratava-se de uma figura em evidência e bastante eminente na época. Durante a conversa, um comenta com o outro: “Bem, a vaidade é um de seus quatro calcanhares de Aquiles”.

Obviamente, o amigo riu de tamanha espirituosidade e sarcasmo. Uma tirada bem engraçadinha! Ora, percebe-se que ao referir-se à pessoa nestes termos, o piadista quis igualá-la a um animal, já que somente estes possuem quatro calcanhares.

Segundo Freud (1905/1996), o que ocorreu nesta ocasião foi o seguinte: o piadista possuía um impulso hostil em relação a alguém eminente, mas, por motivos óbvios, tal hostilidade não podia de forma alguma transparecer. Ante esta impossibilidade, ele acaba construindo um dito irônico capaz de expressar seus duros sentimentos.

Exemplo 2: Phocion e o elogio irônico

O outro exemplo é o de Phocion, estadista ateniense. Quando, em certa ocasião, ele termina um discurso e se vê aplaudido pelo povo, vira para os amigos e pergunta: “Qual foi a besteira que eu falei agora”?

Ora, para quem não entendeu a tirada, é necessário explicar que Phocion encarava o povo como propriamente estúpido. Portanto, se o estavam aplaudindo, certamente era porque ele havia dito alguma asneira durante seu pronunciamento. De fato, esta foi uma fala irônica e sarcástica que manifestava todo o seu desdém pela população.


O chiste e sua relação com o inconsciente

Com a publicação do livro “Os chistes e suas relações com o inconsciente”, em 1905, Freud encerrava a sua trilogia sobre o conceito de inconsciente.

A trilogia se inicia com “A interpretação de sonhos” de 1900 e prossegue com a “Psicopatologia da vida cotidiana” de 1901. Através destas três obras, Freud realizou suas intenções de analisar como o inconsciente se estrutura e funciona, além de também examinar como ele se manifesta.

Nestes três livros, Freud nos mostra as cinco formas de manifestação do inconsciente: os sonhos, os atos falhos, os lapsos, os sintomas e os chistes.

Mas, então, como os chistes se relacionam com o inconsciente?

Para a psicanálise, tudo se passa como se tivéssemos um domínio inconsciente no qual encontram-se algumas das nossas tendências recalcadas. Ou seja, vivemos em uma sociedade que não nos permite dar livre curso a tudo o que desejamos e, neste sentido, não podemos deixar que tais tendências proibidas se manifestem. Trata-se de desejos sexuais e obscenos, ou então, de tendências por demais agressivas que, por motivos meramente morais, não podemos realizar.

Porém, através de um chiste, de um trocadilho ou de um jogo de palavras conseguimos dar livre curso a estas tendências imorais. Com efeito, através de uma tirada espirituosa podemos dizer alguma coisa querendo, no fundo, dizer outra. Assim, algo proibido e inconveniente pode finalmente ser mostrado, conforme atestam os exemplos a seguir.

Uma tirada é uma maneira não tão direta de falarmos sobre coisas imorais, sejam elas sexuais ou agressivas: algo que jamais poderia ser dito de forma nua e crua o pode através de um jogo de palavras engraçado e inteligente.


Alguns exemplos de chistes

Segundo Freud (1905/1996), os chistes ou tiradas mais comuns são os obscenos, os agressivos e os cínicos. Vejamos exemplos dos três:

  • Chiste ou tirada obscena

    No escurinho do cinema
    Chupando drops de anis

    Longe de qualquer problema
    Perto de um final feliz

    Se a Deborah Kerr que o Gregory Peck
    Não vou bancar o santinho
    Minha garota é Mae West
    Eu sou o Sheik Valentino

    Mas de repente o filme pifou
    E a turma toda logo vaiou
    Acenderam as luzes, cruzes!
    Que flagra, que flagra, que flagra!

    (Rita Lee & Roberto de Carvalho – Flagra)

    Imaginem uma roqueira brasileira e seu marido, os dois ardendo de paixão, querendo fazer uma música repleta de obscenidades em plena ditadura militar? Não ia dar!

    Então, a solução foi apelar para a espirituosidade. E o verso “Se a Deborah Kerr que o Gregory Peck” é uma tirada que entrega tudo! Ora, Deborah Kerr e Gregory Peck são dois atores antigos de Hollywood. E Rita e Roberto fizeram um trocadilho interessantíssimo com o nome dos dois: algo que soa como “Se a Deborah quer que o Gregory peque”.

    Assim, através do humor e da espirituosidade, os dois conseguiram manifestar suas tendências obscenas, compondo uma música sobre como deve ser praticar o sexo oral no escurinho do cinema. Neste sentido, os versos “chupando drops de anis”, “perto de um final feliz” e “acenderam as luzes, cruzes, que flagra!” adquirem novos sentidos para além do literal. Sentidos, aliás, engraçadíssimos!

  • Chiste ou tirada agressiva

    Diz pra eu ficar muda, faz cara de mistério
    Tira essa bermuda que eu quero você sério
    Tramas do sucesso, mundo particular
    Solos de guitarra não vão me conquistar

    Uh, eu quero você como eu quero
    Uh, eu quero você como eu quero

    (...)

    Longe do meu domínio, cê vai de mal a pior
    Vem que eu te ensino como ser bem melhor

    (Leoni & Paula Toller – Como eu quero)

    Ao contrário do que muitos pensam, esta não é uma música de amor, mas sim, de ódio. E o alvo de tanto ódio é uma ex-empresária do Kid Abelha que, na época, namorava o antigo baterista da banda. Um relacionamento bastante conturbado por ela ficar exigindo que o músico abandonasse seu trabalho para dedicar-se a algo mais sério. Daí os versos “tira essa bermuda que eu quero você sério” e “solos de guitarra não vão me conquistar”.

    A tirada está no refrão: notem que não há vírgula em “eu quero você como eu quero”. Ou seja, não se trata de uma exclamação (eu quero você, como eu quero!), mas sim, de uma imposição: eu quero você como eu quero (que você seja...). Uma sacada inteligente e engraçada.

    Com efeito, através do humor e aproveitando dos duplos sentidos de algumas expressões, a gente consegue dizer um bando de coisas e ainda passarmos desapercebidos.

  • Chiste ou tirada cínica

    Oh, musa do meu fado
    Oh, minha mãe gentil
    Te deixo consternado
    No primeiro abril

    Mas não sê tão ingrata
    Não esquece quem te amou
    E em tua densa mata
    Se perdeu e se encontrou
    Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
    Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

    (...)

    Guitarras e sanfonas
    Jasmins, coqueiros, fontes
    Sardinhas, mandioca
    Num suave azulejo
    E o rio Amazonas
    Que corre trás-os-montes
    E numa pororoca
    Deságua no Tejo

    Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
    Ainda vai tornar-se um império colonial

    (Ruy Guerra & Chico Buarque – Fado tropical)

    “Fado tropical” é super irônica. Trata-se de uma composição do ano de 1973, época na qual a censura perseguia por demais o Chico Buarque e não o deixava gravar quase nada... Então, ele era obrigado a compor músicas repletas de trocadilhos e jogos de palavras com o intuito de burlar os censores.

    Esta música, então, conseguiu passar pela censura que, aliás, amou a letra. E isto porque eles pensaram que o Chico estava fazendo um elogio saudosista aos tempos nos quais o Brasil era uma colônia portuguesa. Tal interpretação se fez graças aos versos “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal”, “E o rio Amazonas que corre trás-os-montes e numa pororoca deságua no Tejo” e, sobretudo, “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um império colonial”.

    No entanto, não era nada disso. Os elogios do Chico aos portugueses, bem como os anseios para que o Brasil se tornasse um imenso Portugal, se deram porque exatamente naquele ano, a Revolução dos Cravos destruía uma ditadura que já durava décadas... Daí o Chico querer que o mesmo acontecesse ao Brasil! Outra tirada, portanto, super espirituosa, sarcástica e irônica!

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Chistes, prazer e laço social

Por fim, é necessário frisar a interessante ideia de Freud (1905/1996) de que os chistes ou tiradas se constituem como verdadeiros promotores de laços sociais.

De fato, há no mínimo três sujeitos envolvidos no contexto de uma tirada: o sujeito que joga com as palavras, aquele que o ouve, além do objeto da ironia ou sarcasmo. E quando esta tirada é replicada por aquele que a ouve ainda podem inserir-se nesta cadeia outros tantos sujeitos.

Portanto, uma rede de laços sociais mais ou menos extensa e feita a partir de um prazer compartilhado. Prazer este promovido por uma espécie de “suspensão” (ainda que momentânea) do recalque que alguns ditos espirituosos conseguem tão bem promover.


Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.

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Referências:

Freud, S. (1905). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 8. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 9-231.

LACAN, J. (1999). O Seminário livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.



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