Psicanálise

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças | Análise do filme

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças | Análise do filme
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Esquecer um grande amor seria um alívio ou uma tragédia? O filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças levanta essa pergunta ao nos apresentar um mundo onde apagar lembranças dolorosas parece possível — mas a que custo?

Neste artigo, propomos uma análise psicológica do filme sob a ótica da psicanálise, explorando temas como o inconsciente, o recalque, a repetição de padrões e o luto amoroso. Um mergulho sensível nas camadas mais profundas da memória, do desejo e daquilo que insistimos em esquecer, mas que segue nos habitando.



Por que o filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” fascina tanto?

“Brilho eterno de uma mente sem lembranças” está no meu top 3 de filmes preferidos. Às vezes ele fica lá no top 1, às vezes no top 2, outras no top 3, mas fato é que sempre que me perguntam qual é o meu filme preferido, eu não consigo decidir entre ele, “Matrix” e “De volta para o futuro”...rs. Não dá!

Assisti “Brilho eterno” pela primeira vez logo que foi lançado em vídeo e, na época, tentava em vão esquecer um grande amor. O filme caiu como uma luva e naqueles fins de 2004, era impossível dissociá-lo de outras grandes produções com temáticas parecidas como “Efeito borboleta” ou o maravilhoso “A dona da história”.

Como ocorreu com tantos colegas, “Brilho eterno” me fez olhar para o Jim Carrey com outros olhos. E, inclusive, por muito tempo, tive como uma das minhas cenas preferidas (não apenas deste filme, mas da história do cinema mesmo...rs) aquela em que ele chora compulsivamente no carro enquanto passam os créditos do filme.

Frame de Jim Carey como Joel em O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças com os protagonistas deitados no gelo

“Meet me in Montauk” também virou gíria em minha bolha de amigos. E lembro-me que, alguns anos depois, com o término amigável de outra relação, esta foi a última coisa que nos dissemos.

Sem dúvida alguma, “Brilho eterno” traz consigo o melhor roteiro de todos os tempos. Em minha humilde e leiga opinião, nunca houve outro filme com uma história tão bem pensada, construída e, sobretudo, tão bem contada.

E fora o enredo criativo e que tanto nos fascina: e se realmente houvesse um tratamento que fizesse-nos esquecer quem a gente ama, mas que já não mais nos corresponde? E se fosse assim tão fácil? Como seria bom a gente dormir apaixonado e acordar sem lembrança alguma de quem tanto gostamos em vão...

Sinopse de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”

Cena do filme O Brilho eterno de uma mente sem lembranças, onde Joel e Clementine estão deitados lado a lado na neve

“Brilho eterno” conta a história de Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet). Eles formavam um casal ora feliz, ora com alguns problemas, mas que durante pouco mais de dois anos curtiram um namoro bacana.

No entanto, após sofrer algumas desilusões típicas de qualquer casal, Clementine – impulsiva como ela só – decide terminar com Joel e esquecê-lo para sempre. Para tal, ela procura a empresa Lacuna, especialista em um tratamento que consegue apagar da memória a pessoa amada em apenas uma noite, durante o sono.

O procedimento de Clementine aparentemente dá certo e, no dia seguinte, ao encontrar Joel, ela sequer o reconhece. Este, ainda apaixonado, mergulha em profunda tristeza e, assim, decide também submeter-se ao tratamento para apagar a amada da memória.

A Lacuna pede que Joel recolha todos os objetos que, de uma forma ou outra, trazem lembranças de Clementine e, através destes objetos, os especialistas conseguem fazer um mapeamento cerebral com todas as memórias do relacionamento.

À noite, em seu quarto, enquanto dormia, o procedimento é finalmente realizado. Porém, mesmo estando em transe, Joel se convence que ainda ama Clementine e acaba resistindo ao processo. Deste modo, ele tenta encaixar a amada em lembranças de épocas nas quais o casal ainda não se conhecia.

Análise psicológica (psicanalítica) de “Brilho Eterno”

Fazer uma abordagem psicanalítica do filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças” não significa necessariamente mergulhar em uma análise psicológica de Joel e Clementine. Com efeito, é sempre um pouco arriscado interpretar aqueles que sequer existem ou que jamais deitaram em nossos divãs...

No entanto, me parece bem sedutora a proposta de enxergar o enredo do filme – de uma forma mais geral – através de um olhar psicanalítico. Isto porque, tal como bem demonstra a psicanálise, a moral do filme é, justamente, indicar que uma mente sem lembranças possui um brilho eterno.

Ora, a princípio, isso parece um pouco paradoxal: como pode algo que foi esquecido existir para todo o sempre? Como pode algo que foi sumariamente afastado da nossa memória ainda influenciar – e mesmo dominar – as nossas vidas?

Em relação a estas questões, tanto o filme quanto a psicanálise nos ensinam que aquilo que a gente não se lembra é, justamente, o que vem a animar as nossas vidas, conduzindo-nos a repetir no presente as mais variadas tendências esquecidas do passado.

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O recalque e o desejo inconsciente

De fato, todo este dinamismo entre memória e esquecimento apresentado em “Brilho eterno” se explica a partir dos próprios pressupostos da psicanálise.

Como muitos leitores já sabem, Freud postulou que o nosso psiquismo é dividido entre a consciência e o inconsciente. Em si, o termo “inconsciente” significa “desconhecido” e, portanto, dizer que um sujeito possui um inconsciente implica em considerar que ele desconhece uma grande parte de si.

Assim, com a postulação de um inconsciente, a psicanálise vai indicar que todos nós possuímos desejos, fantasias e mesmo lembranças que, apesar de desconhecidas, influenciam de forma crucial a nossa vida.

De acordo com Freud (1909), há em nós algumas tendências – geralmente sexuais ou agressivas – que nos causam certo grau de desprazer. E, portanto, para nos livrarmos deste desprazer, acionamos alguns mecanismos de defesa, sendo o mais comum, o trabalho de recalque (em algumas edições das Obras Completas de Freud, conceito mal traduzido por “repressão”).

Em si, o recalque consiste em afastar da consciência aquilo que nos causa mal, fazendo com que a tendência em questão se torne inconsciente. No entanto, Freud alerta que recalcar algo jamais significa matá-lo ou esquecê-lo, mas apenas, passar a desconhecê-lo.

Assim, aquilo que tanto nos incomoda permanece vivo e atuante no inconsciente, promovendo as mais variadas consequências em nossas vidas e, às vezes, conduzindo-nos à repetição de alguns comportamentos que em muito nos incomoda.

A repetição de padrões segundo a psicanálise

E, de fato, “Brilho eterno” ilustra de forma magistral estes pressupostos da psicanálise: a mente sem lembranças possui um brilho eterno e, portanto, é impossível esquecermos aquilo que tanto nos incomodou.

Pelo contrário, quanto mais nos empenhamos a esquecer, mais forte ficam as tendências inconscientes e mais elas acabam por nos pegar de jeito quando menos esperamos. Foi exatamente isto o que se passou com Joel e Clementine, tal como com a secretária Mary (Kirsten Dunst) e seu ex-atual-amado Dr. Howard Mierzwiak (Tom Wilkinson).

Cena do filme O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças com personagens Mary e Dr. Howard Merzwiak

Vejamos outros exemplos:

Segundo a psicanálise, todos nós, quando crianças, amamos em demasia as nossas figuras parentais. Este é o complexo de Édipo, tal como postulado por Freud: com efeito, os nossos pais foram os nossos primeiros objetos de amor, amores estes os mais intensos que já vivemos.

Inevitavelmente, quando crescemos, os desejos e fantasias edipianas sofrem o destino do recalque, tornando-se inconscientes, esquecidos e desconhecidos. Porém, mesmo nestas condições, conseguem influenciar as nossas escolhas amorosas posteriores.

E, assim, se voltarmos nossa atenção para todas as pessoas por quem já nos apaixonamos, facilmente perceberemos que as nossas escolhas amorosas obedecem a certos padrões, trazendo consigo algo semelhante ao que um dia vivenciamos com nossos pais.

Este é o caso, por exemplo, de um sujeito que, durante a mais remota infância, ficou marcado por uma dependência extrema do amor de seus pais. Quando este sujeito cresce, a relação edipiana é recalcada e, com isto, ele passa a procurar outras pessoas para se relacionar. No entanto, vale marcar, sem jamais conseguir escapar da tendência em ser dependente de seus objetos de amor.

Assim, em virtude do trabalho de recalque, ele passará a desconhecer que o que procura, no fundo, é uma relação de dependência. E em meio a tantas negações, pode mesmo passar a se julgar a pessoa mais independente do mundo e certamente irá gritar pelos quatro cantos que não precisa de ninguém para ser feliz.

Porém, quando menos espera, ocorre de ele se pegar completamente apaixonado por alguém e tornar-se estritamente dependente desta pessoa. Deste modo, ele assumirá uma posição propriamente passiva diante da pessoa amada e poderá, inclusive, sofrer bastante por não conseguir construir uma vida minimamente distante dela.

E assim acontece recorrentemente: este sujeito termina um relacionamento, em seguida, passa a bradar que não depende de ninguém, consegue efetivamente acreditar-se independente e logo cai apaixonado, enfurnando-se em uma relação de extrema dependência.

vetor de homem abrançando um coração

Neste mesmo sentido, há o exemplo do sujeito que, durante a infância, amou demais sua mãe, acreditando ser seu único objeto de amor. Em meio a este contexto, ele pode ter sofrido bastante por uma espécie de “traição” da parte dela quando se deu o nascimento de seu irmão.

Ora, quando ocorrer o recalcamento desta relação edipiana, ela será incisivamente esquecida, porém deixando marcas indeléveis em sua vida e que determinarão suas escolhas amorosas posteriores.

Deste modo, pode acontecer deste sujeito desejar intensamente uma relação estável e duradoura com alguém. No entanto, quando menos esperar, ele será traído... Assim, é provável que tal sujeito passe a se portar como uma vítima infeliz, morrendo de ciúmes e, inclusive, clamando por vingança, tal como aconteceu quando ele era criança. Traído, ele é capaz de largar seus relacionamentos bastante magoado, levando séculos para recuperar-se dos tristes fins.

E assim se sucederá por anos e anos e anos, com ele entrando em outros relacionamentos completamente apaixonado e julgando-se o único objeto de amor em jogo. Porém, cedo ou tarde, será presa de uma desilusão decorrente de uma traição qualquer.



É possível esquecer um grande amor?

Óbvio que sim! Mas não pelos procedimentos da Lacuna, infelizmente!

Ora, qualquer um de nós sabe que, apesar da mente sem lembranças possuir um brilho eterno, é perfeitamente possível esquecermos um grande amor passado.

Se não fosse assim, jamais experimentaríamos a engraçada sensação de encontrar um ex na rua e pensarmos: “Cruzes, eu já fui apaixonado por isso?”, ou então, “Tá amarrado que eu já sofri por isso...”.

Eu, particularmente, no 31 de outubro passado, saí de casa para dar uma voltinha e, sem esperar, me deparar com três “exs”. Uó! Voltei correndo para casa e nela permaneci, pensando que aquele era efetivamente um dia sugestivo para encontrar tanto ex... rs.

Mas piadinhas à parte, podemos mesmo pensar que se no mundo real não temos o método Lacuna para esquecermos dos nossos amores, temos a psicanálise. Processo muito mais demorado, é verdade... Porém, muito mais eficaz!

Neste sentido, Freud (1917) coloca que um sujeito enlutado pela perda de um grande amor sofre, justamente, por um excesso de lembranças. E as principais características de um estado de luto são um desânimo contundente, um relativo desinteresse pelas coisas do mundo e a incapacidade de amar alguém novamente.

Também é comum que o enlutado deixe de se dirigir a qualquer atividade que não esteja ligada à pessoa amada, preferindo ficar isolado e evocando todas as lembranças do passado.

Ao longo do trabalho de luto, é comum, portanto, que o sujeito fique se apegando a intermináveis fantasias cujo propósito é manter imaginariamente o objeto ainda presente. Tal situação pode persistir por certo tempo, mas um tratamento psicanalítico bacana pode conduzi-lo a uma elaboração da perda amorosa.

O sujeito fará um trabalho de retorno para si mesmo falando sobre seu incômodo, com o psicanalista intervindo para, justamente, tentar tornar esta situação o menos angustiante possível. Com isto, quase sempre acaba prevalecendo a aceitação da perda, com o enlutado conseguindo esquecer o amor passado e entregando-se a uma nova relação.

Perguntas frequentes sobre o filme "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças"

Qual o significado de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” segundo a psicanálise?

Tal como a psicanálise, o filme demonstra que aquilo que aparentemente esquecemos ainda permanece vivo em nós, influenciando a nossa vida de forma crucial.

O que o filme ensina sobre o inconsciente e os relacionamentos?

O “Brilho eterno” ensina que todos nós nos desconhecemos, ou seja, possuímos uma série de tendências inconscientes que governam as nossas vidas. A força destas tendências aparentemente esquecidas faz com que seja impossível esquecer um grande amor mediante procedimentos pretensamente rápidos e quase que mágicos.



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Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.





Referências:

Freud, Sigmund. (1909). Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 165-186.

_____. (1917). Luto e melancolia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 245-269.

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