
Clarice Lispector é uma das figuras mais marcantes da literatura brasileira. Nascida na Ucrânia e radicada no Brasil desde bebê, formou-se em Direito, mas foi na escrita que encontrou sua linguagem mais potente. Ao longo da vida, publicou romances, contos, crônicas, literatura infantil e artigos jornalísticos, com uma obra marcada por experimentações formais e mergulhos profundos na subjetividade humana.
Sua prosa poética e introspectiva trouxe à literatura nacional um tom inovador e intimista, em que reflexões filosóficas se entrelaçam com a experiência cotidiana. Em suas obras, a epifania é recorrente, assim como o fluxo de consciência, técnica que permite ao leitor acessar diretamente os pensamentos de suas personagens.
Reconhecida como uma das autoras mais influentes do século XX, Clarice também conquistou o público popular com títulos como A Hora da Estrela, que ganhou adaptação cinematográfica e figura entre os 100 melhores filmes nacionais de todos os tempos, segundo a Abraccine. Neste artigo, vamos percorrer suas principais obras, temas e o legado de sua escrita.
O artigo abordará os seguintes tópicos:
Principais livros de Clarice Lispector
A vasta obra de Clarice Lispector é composta por romances, contos, artigos de jornais, crônicas, literatura infantil, entrevistas e correspondências. Entre suas principais obras estão:
- Perto do Coração Selvagem
- A Paixão Segundo G.H.
- Laços de Família
- Água Viva
- A Hora da Estrela
Perto do Coração Selvagem e o modernismo brasileiro
O seu romance de estreia, Perto do Coração Selvagem, posicionou a jovem escritora de apenas 23 anos entre os principais nomes da literatura brasileira. Com a publicação, Clarice entrou para a seleta lista dos escritores que já estrearam recebendo o prêmio Graça Aranha. Além de Clarice, autores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo, Murilo Mendes e Jorge de Lima venceram o prêmio com seus primeiros livros.
Perto do Coração Selvagem insere uma mudança na prosa ficcional brasileira, ampliando as perspectivas da produção literária feita até então.
No texto, Clarice Lispector traz uma linguagem voltada para a subjetividade da personagem central, Joana, com seus pensamentos e percepções singulares a respeito do mundo à sua volta.
A obra surge com uma linguagem completamente diferente de tudo o que já fora publicado na sua geração, iniciando um novo capítulo do modernismo brasileiro, onde há espaço para narrativas com um tom mais introspectivo e psicológico, ultrapassando os limites das tendências realistas.
A Paixão Segundo G.H., uma obra densa
A Paixão Segundo G.H., livro publicado em 1964, é uma das obras mais complexas de Clarice Lispector. A publicação se desenvolve a partir da história de uma mulher de classe média cujo nome começa com as iniciais G.H. Ela mergulha no próprio inconsciente após a limpeza de seu apartamento, ao se deparar com uma barata.
A mulher passa, então, a refletir profundamente sobre sua infância desprovida de recursos e adentra na sua ancestralidade, filosofando sobre a pré-história da terra e o desenvolvimento da vida.
A Paixão Segundo G.H. encontra um paralelo com o livro A Metamorfose, de Kafka, devido à presença das baratas nas duas obras. Embora sejam muito diferentes, os dois livros apresentam transformações vividas pelos personagens principais a partir do inseto. Em Kafka, o personagem Gregor vive uma metamorfose, ele próprio se transforma em uma barata, de forma involuntária.
Já na Paixão Segundo G.H., a personagem principal vivencia uma mudança interior a partir da observação de uma barata. Com conteúdo denso, o livro não é para desavisados. A própria Clarice o dedica aos leitores, mas escreve: “só os leitores de alma formada conseguirão decodificar a sua linguagem espiralada”. Este romance é uma profunda exploração da identidade e da existência humana.
Outras obras notáveis da autora incluem o romance Água Viva, o livro de contos Laços de Família e a novela A Hora da Estrela, onde ela escreve sobre a jovem alagoana Macabéa, uma datilógrafa órfã de alma inocente que vai morar em São Paulo e sonha com a felicidade.
Confira a seguir os livros escritos por Clarice Lispector.
Obras de Clarice Lispector
Clarice Lispector possui uma vasta e diversificada produção literária que abrange diferentes gêneros. Sua obra inclui romances inovadores, contos, crônicas, livros infantis e artigos de jornal que oferecem um recorte histórico do tempo em que viveu.
Além disso, suas correspondências pessoais permitem vislumbrar a intimidade da autora, enquanto entrevistas revelam nuances de suas perspectivas e do seu processo criativo.
Para facilitar a compreensão dessa rica trajetória literária, apresentamos a seguir uma tabela com um resumo de todas as suas obras, organizada por gênero e ano de publicação.
Romances de Clarice Lispector
Obra | Resumo da obra | Ano de publicação |
---|---|---|
Perto do Coração Selvagem | Romance que narra a vida interior de Joana, uma menina órfã que, após a morte dos pais, é enviada a um internato, onde suas lembranças de infância se contrapõem às experiências da vida adulta e à paixão por um professor. | 1943 |
O Lustre | Narra a vida introspectiva e sonhadora de Virgínia, uma jovem de uma pequena cidade do interior do Brasil, que busca entender sua identidade e seu lugar no mundo. | 1946 |
A Cidade Sitiada | Narra, em terceira pessoa e em doze capítulos de frases curtas, as deambulações de Lucrécia Neves pelas ruas da cidade, dividida entre o subúrbio de origem e a cidade grande romantizada. | 1948 |
A Maçã no Escuro | Narra a fuga de Martim após um crime supostamente cometido, explorando sua busca filosófica por liberdade e construção de um destino próprio, em uma narrativa densa, dividida em três partes. | 1961 |
A Paixão segundo G.H. | Narra a experiência limite de uma mulher identificada apenas como G.H., que, ao tentar limpar o quarto de serviço após demitir a empregada, esmaga uma barata, desencadeando uma crise existencial profunda. | 1964 |
Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres | Ela escreve sobre a história de amor entre Lóri, uma professora primária que se muda de Campos para o Rio de Janeiro em busca de liberdade, e Ulisses, um professor de filosofia. | 1969 |
Água Viva | Escrito em primeira pessoa, o romance apresenta as reflexões e divagações de uma pintora solitária sobre a existência, o ser, e o poder das palavras, em um fluxo de consciência que mistura elementos de romance, poesia e ensaio filosófico. | 1973 |
Um Sopro de Vida | Publicado postumamente, é uma obra híbrida que narra, em primeira pessoa, as reflexões existenciais de um escritor sobre sua personagem, Angela Pralini, explorando a dualidade entre autor e criação e o conflito interno que surge daí. | 1978 |
A Hora da Estrela | Narrada em terceira pessoa, a obra acompanha a ingênua Macabéa, uma migrante nordestina pobre e desamparada na cidade grande, enquanto lida com a hipocrisia e a brutal desigualdade social. | 1977 |

Livros de Contos de Clarice Lispector
Obra | Resumo da obra | Ano de publicação |
---|---|---|
Alguns contos | Primeiro volume a reunir contos escritos por Clarice Lispector, entre eles “Amor”, “Começos de uma Fortuna” e “Uma Galinha”. | 1952 |
Laços de Família | Explora os desentendimentos familiares e a busca por libertação em 13 contos que revelam a essência humana através de cotidianos urbanos e domésticos. | 1960 |
A Legião Estrangeira | Coletânea de contos que mergulha nas profundezas da existência humana, explorando temas como a família, a solidão, o desejo e a velhice. | 1964 |
Felicidade Clandestina | A obra traz 25 contos que revelam momentos tensos e familiares, com registros, inclusive, autobiográficos. | 1971 |
A Imitação da Rosa | Laura, uma esposa submissa à rotina ditada pelo marido, aguarda ansiosamente um jantar com seus amigos Carlota e João, em uma história que explora os limites do tédio na vida conjugal e da espera por novidades na vida cotidiana. | 1973 |
Onde Estivestes de Noite | De forma divertida, a autora traz 17 textos que oscilam entre o trágico e o cômico, sobre a velhice e as conexões mágicas com a natureza. | 1974 |
A Via Crucis do Corpo | Aqui, a autora explora o erótico de maneira provocativa, abordando temas como a solidão e o corpo humano. | 1974 |
O Ovo e a Galinha | Uma mulher na cozinha contempla um ovo. A partir daí, inicia uma reflexão profunda sobre questões existenciais através da não-linearidade e da desconstrução narrativa. | 1977 |
A Bela e a Fera | Livro póstumo de contos que mescla escritos juvenis da escritora com reflexões maduras sobre solidão, sentido da vida e a condição feminina. | 1979 |
Crônicas de Clarice
Obra | Resumo da obra | Ano de publicação |
---|---|---|
Para Não Esquecer | Coletânea póstuma que reúne 108 textos diversos que interagem com as artes visuais e trazem reflexões profundas sobre a natureza humana. | 1978 |
A Descoberta do Mundo | Reúne 468 crônicas de Clarice Lispector, originalmente publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, revelando o seu olhar sobre o cotidiano. | 1984 |
Livros Infantis de Clarice Lispector
Obra | Resumo da obra | Ano de publicação |
---|---|---|
O Mistério do Coelho Pensante | Narra as aventuras de Joãozinho, um coelho branco que, ao fugir de sua jaula em busca de comida, descobre o que é a liberdade. | 1967 |
A Mulher que Matou os Peixes | O texto aborda temas como a culpa e o perdão. A narradora assume a culpa pela morte dos peixes de seu filho, e, a partir daí, a escritora explora a temática da responsabilidade e da relação entre humanos e animais. | 1968 |
A Vida Íntima de Laura | O livro narra a história de Laura, a galinha que mais bota ovos em todo o galinheiro. | 1974 |
Quase Verdade | Lançado postumamente, apresenta uma trama fantasiosa, onde uma figueira tenta explorar as galinhas com a ajuda de uma bruxa. | 1978 |
Como Nasceram as Estrelas | Reúne lendas populares brasileiras adaptadas pela autora, cada uma relacionada a um mês do ano. | 1978 |

Correspondências de Clarice Lispector
Obra | Resumo da obra | Ano de publicação |
---|---|---|
Correspondências | Coletânea que traz 129 cartas trocadas por Clarice com escritores e familiares, durante quatro décadas de sua vida. | 2002 |
Minhas Queridas | O livro revela a intimidade da autora através de 120 cartas que escreveu para suas irmãs. | 2007 |
Publicações escritas em jornais
Obra | Resumo da obra | Ano de publicação |
---|---|---|
Outros Escritos | Traz textos que revelam diversas facetas da autora, como as de jornalista, mãe, colunista, conferencista. Inclui um capítulo chamado Clarice Entrevistada, com entrevistas concedidas pela autora. | 2005 |
Correio Feminino | A faceta jornalística de Clarice Lispector é revelada aqui. Com textos que refletem a mentalidade da época, a escritora dá conselhos para mulheres. | 2006 |
Só Para Mulheres | O livro reúne colunas femininas que a escritora publicou utilizando pseudônimos, nas décadas de 1950 e 1960. | 2006 |
Entrevistas feitas por Clarice Lispector
Obra | Resumo da obra | Ano de publicação |
---|---|---|
Entrevistas | O livro traz Clarice como entrevistadora, resgatando as entrevistas que conduziu entre maio de 1968 e outubro de 1969, nas revistas Manchete e Fatos e Fotos: Gente. | 2007 |
Biografia de Clarice Lispector: vida e contexto histórico

Clarice Lispector nasceu na pequena aldeia de Tchechelnik, localizada no distrito de Olopolko, no dia 10 de dezembro de 1920, na Ucrânia. Seu nome de batismo era Chaya Pinkhasovna Lispector.
Ela nasceu em viagem, pois seus pais já estavam emigrando para a América, quando passaram pela aldeia de Tchechelnik, onde sua mãe, Marieta Lispector, deu à luz a pequena Clarice.
Eles fugiam de sua terra natal devido à violenta perseguição que os russos estavam fazendo aos judeus na Ucrânia, no contexto pós 1ª Guerra Mundial e pós Revolução Russa de 1917, que dividiu os russos em “vermelhos” (os que apoiavam a vitória dos bolcheviques) e “brancos”, os que buscavam anular a revolução russa e promoviam os pogroms, perseguições sanguinárias aos judeus.
O avô de Clarice foi assassinado em um dos pogroms e, para sobreviver, os pais da escritora, assim como seus tios e primos vieram ao Brasil fugindo das perseguições contra os judeus na Ucrânia.
Quando Clarice Lispector chegou ao Brasil?
Clarice Lispector chegou ao Brasil com apenas dois meses de idade.
Em fevereiro de 1921, ela aportou recém nascida com sua família em Maceió, onde tinham parentes. Por iniciativa do pai, todos mudaram de nome aqui no Brasil. Foi quando ele a batizou de Clarice, em substituição a Chaya Pinkhasovna Lispector.
Após três anos e meio na capital de Alagoas, Clarice foi para o Recife com seus pais, cidade onde chegou com quase 4 anos de idade e onde morou por 10 anos.
Aos quatorze anos de idade, Clarice se mudou com o pai e as irmãs para o Rio de Janeiro, onde passaria a maior parte de sua vida. Apesar disso, se dizia pernambucana.
O Recife de Clarice
As memórias do Recife da infância de Clarice aparecem em seus contos, crônicas e romances. A autora faz fortes referências à cidade em Felicidade Clandestina, livro escrito em 1971, que se passa na capital pernambucana.
Outra obra de Clarice que revela recordações do Recife é o seu terceiro livro, A Cidade Sitiada, onde ela escreve sobre os banhos de mar em Olinda, sobre o Mercado de Peixe da Boa Vista e sobre a praça Maciel Pinheiro, local que ficava em frente ao sobrado onde morou e que hoje abriga uma estátua em sua homenagem.
A casa de Clarice Lispector no Recife será transformada no primeiro museu dedicado à escritora.
A infância de Clarice no Recife foi estudada pelo historiador pernambucano Henrique Inojosa no livro Clarice Lispector: no coração do Recife, publicado em 2023.
Carreira e Casamento de Clarice
No Rio de Janeiro, Clarice Lispector ingressou na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Apesar de formada em direito, sua carreira foi dedicada ao jornalismo e à literatura.
Em 1934, Clarice casou-se com o colega universitário de direito e futuro diplomata Maury Gurgel Valente e, no mesmo ano, publicou o seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, que ganhou o Prêmio Graça Aranha de melhor romance do ano.
O casamento a levou a fazer diversas viagens e a morar em países como Suíça, Itália, Inglaterra e Estados Unidos. Em 1944, mudou-se para Nápoles, na Itália, local onde, no ano seguinte, iria trabalhar como enfermeira voluntária durante a Segunda Guerra Mundial.
Clarice viveu durante um período de grandes mudanças no Brasil e no mundo, incluindo a Era Vargas, a Segunda Guerra Mundial e a Ditadura Militar no Brasil.
Em 1946, o casal seguiu da Itália para a Suíça, onde nasceria o primeiro filho de Clarice, Pedro. Em 1949, voltam ao Rio de Janeiro, mas logo seguem para a Inglaterra, onde moram por seis meses.
Retornam ao Brasil e, em 1952, seguem novamente em viagem, mas rumo aos Estados Unidos, onde nasceria o segundo filho do casal, Paulo Lispector. Lá, Clarice fez amizade com o escritor Érico Veríssimo e sua esposa, Mafalda, que se tornaram padrinhos de seus filhos.
O casamento de Clarice chega ao fim em 1959. Ela voltou de navio ao Rio de Janeiro com seus dois filhos, numa época em que o divórcio ainda não era legalizado no país. Clarice queria fixar residência para poder cuidar melhor do seu filho Pedro, diagnosticado com esquizofrenia.
Recém divorciada, logo começou a trabalhar no jornal Correio da Manhã, onde assinava a coluna “Correio Feminino”. Também atuou como jornalista no Diário da Noite, com a coluna “Só Para Mulheres”. As publicações desses dois jornais foram reunidas nos livros Correio Feminino e Só Para Mulheres, ambos publicados pela editora Rocco.
Nessa mesma época, escreveu o seu aclamado livro de contos Laços de Família, que ganhou, em 1961, o Prêmio Jabuti, a maior premiação da literatura brasileira.

O Incêndio que quase matou Clarice Lispector
Alguns anos depois, em 1966, a escritora dormiu com um cigarro aceso, desencadeando um incêndio em sua casa. Foi socorrida por uma vizinha, mas sofreu graves queimaduras pelo corpo, passando dois meses internada. Recebeu enxerto de pele e fez sessões de fisioterapia para tentar recuperar seus movimentos, que não voltaram 100% ao normal.
A partir daí, Clarice passou a contar com a ajuda de sua secretária Olga Borelli, que a auxiliava na digitação dos textos. Foi nessa fase que Clarice Lispector publicou alguns de seus livros infantis, como O Mistério do Coelhinho Pensante, que lhe rendeu o Prêmio Calunga, da Campanha Nacional da Criança, em 1967.
Em 1969, publicou o livro Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, que recebeu o Prêmio Golfinho de Ouro. Trabalhou como jornalista para a revista Manchete e chegou a enveredar pela pintura nos idos de 1975.No ano seguinte, recebeu o prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal pelo conjunto da obra.
Em 9 de dezembro de 1977, Clarice Lispector morreu, aos 56 anos de idade, no Rio de Janeiro, devido às complicações de um câncer no ovário.

Poemas de Clarice
Embora mais conhecida por sua prosa poética, Clarice Lispector também escreveu poesia. Essa sua faceta ainda é pouco conhecida, mas o biógrafo Benjamin Moser, autor do livro “Clarice”, encontrou dois textos em verso escritos pela autora. São eles, A Mágoa e Descobri o meu país.
Esses poemas foram publicados originalmente nos jornais Diário de São Paulo, em 5 de janeiro de 1947 (A Mágoa) e Descobri o meu país, no jornal Dom Casmurro, do Rio de Janeiro, em 25 de outubro de 1941.
Os poemas de Clarice refletem sua intensa busca interior e questionamentos existenciais.
A Mágoa (1947)
Os telhados sujos a sobrevoar
Arrastas no vôo a asa partida
Acima da igreja as ondas do sino
Te rejeitam ofegante na areia
O abraço não podes mais suportar
Amor estreita asa doente
Sais gritando pelos ares em horror
Sangue escoa pelos chaminés.
Foge foge para o espanto da solidão
Pousa na rocha
Estende o ser ferido que em teu corpo se aninhou,
Tua asa mais inocente foi atingida
Mas a Cidade te fascina.
Insiste lúgubre em brancura
Carregando o que se tornou mais precioso.
Voas sobre os tetos em ronda de urubu
Asa pesa pálida na noite descida
Em pálido pavor
Sobrevoas persistente a Cidade Fortificada escurecida
Capela ponte cemitério loja fechada
Parque morto floresta adormecida
Folha de jornal voa em rua esquecida..
Que silêncio na torre quadrada.
Espreitas a fortaleza inalcançada.
Não desças
Não finjas que não dói mais
Inútil negar asa partida.
Arcanjo abatido, não tens onde pousar.
Foge, assombro, inda é tempo,
Desdobra em esforço a sua medida
Mergulha tua asa no ar.
Descobri o meu país, Clarice Lispector (1941)
Subi a montanha
e no seu topo os anjos me cercaram
e me engrinaldaram a fronte
com as flores do céu.
Asas zumbiam
em harmonias fragílimas
e vozes de arcanjos louvavam a paz.
Derramaram sobre meu corpo
sete bálsamos purificadores
e fizeram-me beber
ambrosia e mel.
Banharam-me no rio da música
e eu saí ingênua
como o canto de uma criança.
E depois surgiram novos anjos
e não havia noite
e não havia dia.
E a ambrosia e o néctar
deslizavam com fartura celestial.
E novas canções se entoaram
sempre em louvor a Deus.
E não havia noite
e não havia dia.
E aos poucos cresceu dentro de mim
o desespero
e eu busquei em vão os olhos celestiais.
Eles nada diziam
e cantavam a paz.
E aos poucos uma nostalgia
me enlanguesceu
e eu era o arco distendido
sem a flecha
e eu buscava o ar
sem respirar.
Um anjo me interrogou: mais néctar?
Eu gritei: quero cheiro da terra!
E o anjo me perdoou
E eu cansei de ser perdoada,
eu queria sofrer.
E não havia noite e não havia...
Quebrei minhas asas,
desci a montanha
e vivi na Terra!
Homens amavam
e cansavam do amor.
Homens bebiam sangue
e descobriam
que não desejavam brigar
Entoavam-se cânticos místicos
onde só havia a insatisfação.
E depois homens morriam
e todos sabiam que era o fim.
Nem a terra,
nem o céu!
Fechei-me num quarto,
inventei outro Deus,
outro céu, outra terra
e outros homens.
Temas e estilo literário de Clarice Lispector
A obra de Clarice Lispector é conhecida por explorar conceitos complexos e profundos, desafiando as normas tradicionais da narrativa brasileira escrita até a sua chegada.
A escritora é didaticamente associada à terceira fase do modernismo brasileiro, que ficou conhecida como a Geração de 45 ou Fase Pós-Modernista.
Escritores da Geração de 45:
- Clarice Lispector
- João Guimarães Rosa
- João Cabral de Melo Neto
- Mário Quintana
- Lygia Fagundes Telles
Entre os principais conceitos presentes nos escritos de Clarice Lispector está o existencialismo, devido às abordagens filosóficas que a autora traz por meio de seus personagens, que muitas vezes se encontram em momentos de introspecção profunda, refletindo sobre o sentido da vida e da própria existência.
A epifania é outra característica presente na linguagem clariceana. São verdadeiros momentos de súbita revelação que suas personagens vivem, passando a ter compreensões profundas a respeito de si mesmos ou da realidade. Esses momentos são acompanhados de uma experiência mística transformadora para os personagens.
A linguagem poética fragmentada, com uma estrutura de escrita introspectiva e lírica ao mesmo tempo, traz muitas vezes monólogos internos, em narrativas profundamente subjetivas. Essa forma de escrever revela a complexidade emocional e psicológica de seus personagens.

Autores Relacionados e Influências
A obra de Clarice Lispector é comparada a de autores como Virginia Woolf, James Joyce e Jean-Paul Sartre, devido às afinidades temáticas e à forma inovadora como abordaram a profundidade das emoções humanas.
Virgínia Woolf e Clarice Lispector compartilham do fluxo de consciência e da forma não linear de escrita. O tempo, em ambas, é frequentemente marcado pelo fluxo de consciência, e não pela sequência de eventos que normalmente é utilizada nas narrativas tradicionais.
Além disso, as duas escritoras trazem epifanias para seus personagens. Em estudos de literatura comparada, os contos Felicidade Clandestina, de Clarice e Happiness, de Virgínia Woolf são exemplos que trazem essa identidade estilística entre as autoras.
No conto de Clarice, a personagem vive a revelação ao perceber que a sua felicidade é clandestina. Já no texto de Virgínia, esse momento acontece quando o personagem Stuart reflete sobre o que é a felicidade.
O paralelo entre Lispector e Jean- Paul Sartre se dá em relação ao existencialismo, conceito filosófico defendido por Sartre, que compreende a essência do homem como sua existência. Para ele, não há uma natureza essencial do ser humano, mas existe a liberdade de construção do próprio destino. “O homem cria o que ele é”, mas sua liberdade é finita.
Clarice Lispector traz à tona a questão existencialista, com suas abordagens sobre a situação humana e o sentido da vida. No seu conto O Ovo e a Galinha essa concepção filosófica encontra-se mais presente do que nunca, pois nesse texto ela faz elucubrações acerca da existência. Suas reflexões abordam o ser humano como indivíduo, como espécie, o sentido da vida, da morte e até mesmo a revelação de Deus. Tudo isso surge a partir de uma cena corriqueira, observar um ovo na cozinha.
Com James Joyce, especialmente no seu livro Um Retrato do Artista quando Jovem, Clarice Lispector tem em comum a epifania e o fluxo de consciência. Esses recursos possibilitam o acesso à mente do narrador, que vagueia de um pensamento ao outro, inserindo uma linguagem fragmentada e não linear ao texto literário.
Frases de Clarice Lispector
“Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.” (Clarice Lispector)
“Meu tema é o instante? meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes, em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos - só me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim.” (Clarice Lispector, Água Viva)
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais começou.” (Clarice Lispector, Água Viva)
"Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome." (Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem)
Filmes inspirados na obra de Clarice Lispector
A literatura de Clarice Lispector já foi contemplada nas telas do cinema nacional em algumas títulos, como:
A Hora da Estrela (1985)

Filme dirigido por Suzana Amaral e baseado na novela homônima de Clarice Lispector. É estrelado pela atriz paraibana Marcélia Cartaxo, que venceu o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim, em 1986, por sua interpretação da personagem Macabéa.
Recentemente, o filme foi digitalizado e voltou a ser exibido nas salas de cinema do Brasil, no projeto Sessão Vitrine Petrobras 2024.
Estrela Nua (1985)

Dirigido por José Antônio Garcia e Ícaro Martins, Estrela Nua traz Carla Camurati e Vera Zimmerman no elenco. O filme é baseado em um texto de Clarice Lispector e conta a história de uma aspirante a atriz que consegue sua grande chance ao ser convidada para dublar uma outra atriz que havia se suicidado. Suas personalidades se confundem num intrincado jogo de identidade.
O Corpo (1991)

Longa dirigido por José Antônio Garcia e estrelado por Antônio Fagundes, Marieta Severo, Cláudia Jimenez e Carla Camurati. A trama é baseada no conto “A Via-Crúcis do Corpo”, de Clarice. Esta comédia trata de um relacionamento do tipo trisal, onde o personagem Xavier vive um namoro escancarado com duas mulheres, Carmen e Bia. Mas, elas não esperavam que ele ainda tivesse uma amante! Indignadas, as namoradas se unem para uma vingança.
O Livro dos Prazeres (2021)

Dirigido por Marcela Lordy, o filme é uma adaptação do livro “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”, de Clarice Lispector e conta a história da professora Lóri, interpretada pela atriz Simone Spoladore. Ela vive uma vida entediante até conhecer Ulisses, um professor de filosofia argentino com quem terá novas experiências e descobrirá o que é amar.
A Paixão Segundo G.H. (2023)

Adaptação do livro homônimo de Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. foi dirigido por Luiz Fernando Carvalho e estrelado por Maria Fernanda Cândido. O longa mostra a transformação existencial vivida pela escultora da elite carioca, G.H., quando decide fazer uma faxina em seu apartamento e se depara com uma barata.
Clarice Lispector é, sem dúvida, uma das personalidades mais singulares e influentes da literatura brasileira. Sua obra completa, que abarca romances, contos, crônicas, artigos, correspondências, entrevistas e livros infantis, revela uma escritora profundamente comprometida com a exploração da condição humana e das complexidades interiores de seus personagens.
Através de uma linguagem inovadora, com sua prosa poética e introspectiva, ela desafiou as convenções narrativas tradicionais, levando o leitor a uma viagem pelo mundo interior dos pensamentos, repleto de ambiguidades e nuances emocionais.
A profundidade psicológica de suas personagens e a sensibilidade com que aborda temas como a identidade, o amor, a solidão e a busca de sentido na vida, tornam sua obra atemporal e universal.
Clarice Lispector não contribuiu apenas para a literatura brasileira, mas deixou um legado que ultrapassa fronteiras, influenciando escritores e leitores ao redor do mundo.
Perguntas frequentes sobre Clarice Lispector
Quem foi Clarice Lispector?
Clarice Lispector foi uma das mais importantes escritoras da literatura brasileira. Nascida na Ucrânia e radicada no Brasil desde a infância, destacou-se por sua prosa introspectiva, subjetiva e inovadora, marcada pelo uso do fluxo de consciência e pela busca por epifanias existenciais.
Quais são as principais obras de Clarice Lispector?
Entre as principais obras de Clarice estão: Perto do Coração Selvagem, A Paixão Segundo G.H., A Hora da Estrela, Laços de Família e Água Viva. Esses livros exploram temas como identidade, existência, linguagem e cotidiano.
Qual é o estilo de escrita de Clarice Lispector?
O estilo de Clarice Lispector é marcado pela introspecção, pela linguagem poética e filosófica, e pelo uso do fluxo de consciência. Suas narrativas costumam explorar a subjetividade, revelando os pensamentos e conflitos internos das personagens.
