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As viagens de Marli

As viagens de Marli

A ida ao México para o Dia dos Mortos foi a última viagem de Nísia e Marli. A turma formada pela agência de turismo, aliás, contemplava todas as amigas da época da assistência social. Conceição, Lourdes, Iara. Além das nem tão pouco semelhantes amigas de excursão, que vão e vêm, em desmanche igual a quando as amizades se dão na juventude. Com Nísia e Marli a amizade nunca se decompôs.  Talvez um pouco na última vez em que foram para a Chapada das Mesas, no Maranhão. Nísia era um tanto experiente nos passeios sem estrutura - afinal, não viajava só com esse grupo -, e Marli se revoltou quando viu a barraca surrada montada por dois meninos com idade para serem filhos de seus filhos, se hipoteticamente tivesse sido mãe. 

O Dia dos Mortos foi ideia sua. Depois de tanta experiência acumulada com anos de viagens, nenhuma das candidatas apresentaria tamanha ideia de girico tal qual ir à praia de Santos no réveillon. Mas naquele ano a agência formulou um pacote imperdível para o festejo e, pagando parcelado e com antecedência, o perrengue da multidão poderia ser diluído com a sensação de que já estava tudo acertado. O pedido de Marli foi atendido. Os passeios de Nísia contemplados no roteiro. Os restaurantes pesquisados por Conceição considerados nas refeições dos dias especiais. Lourdes reservou os horários para os sítios arqueológicos, e Iara, que empacotou as malas e foi, do mesmo jeito desde que começaram a viajar juntas, 20 anos antes.

Um dia, já fazia muito tempo, tinham ido para a Serra da Capivara de carro, muito antes da notoriedade de mídia conquistada há pouquíssimo pelo local. Eram pioneiras em viajar pelo Brasil desde aquela época, ainda que não lhe fossem gentis ao verem um grupo de cinco amigas a circular pelo fundão sem maridos e filhos. E, pra piorar, com cabelos brancos demais, pintados demais, todas velhas demais, em um carro espaçoso demais para ser dirigido por mulheres sabichonas demais. Quando Marli peitou o homem que tentou penetrar a todas com um guarda-chuva longo e amarelo manobrado para atingi-las por trás, Nísia entendeu que seria ela a tranca rua capaz de proteger o grupo da desordem alheia. Não que como grupo não se bastassem, mas era Marli quem botava qualquer um e qualquer coisa pra correr, inclusive tudo aquilo que evocasse um pedaço de morte. Se o outro lado ao lado de lá pertence, o confronto em vida era inevitável, e com isso nenhuma outra se metia, até porque eram todas católicas e não se botavam a espiar o sussurro do que não é da terra. 

Fora a escolha pouco usual da amiga, não tinham reparado que alguma coisa estava errada durante a estadia no país. Haveriam de viver por muitos mortos, se encantar em vida pelo mistério do desencanto e só. A contumaz dor de cabeça seguida do enjôo digno de remédios parecia justificável pela comida forte, que apesar de parecida com a do Brasil, não carecia de pimentas nunca antes vistas e folhas escuras de tempero. Brotava nela um desejo profundo de se aventurar por caminhos incertos, mesmo enjoada. Queria entrar nas festas pequenas pela porta dos fundos, ler as letras miúdas das placas desimportantes, acordar na cama vizinha sem referência da volta e compreender a dinâmica dos carretos em um país de casas com tantos degraus. No dia 2 de novembro, foi a única que não esteve ao lado dos vivos e da devoção dos vivos. Começava seu enlace com o outro lado, preparando a quem estivesse atenta o caminho de sua própria consagração. Nísia, que escolheu o altar mais vazio de Oaxaca para celebrar os 7 anos de passagem de sua mãe, deixou por lá a caixinha de bala pintada à mão pela amiga no último Natal.

Semanas depois do México, quando Marli embarcou para o mais distante dos estrangeiros, às vésperas de um ano novo, Lourdes, Conceição e Iara foram quem a encontraram desacordada, surpreendidas pelo sono incomum diante do trabalho que tanto gostava de fazer para receber a virada do calendário. No apartamento com cheiro de brio, Marli inaugurou a luz do céu noturno antes do clarão artificial da meia-noite, enquanto do outro lado do estado, desavisada da passagem mas pronta para a travessia, Nísia negou os fogos, e se deitou para o descanso dos que acordam na manhã seguinte, honrando a amálgama da amiga às estrelas, agora não mais forasteira, mas moradora do lado de lá. 

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Pequena homenagem à amizade longeva, madura e corajosa entre minha tia Nísia e sua amiga Marli, que partiu no dia 31 de dezembro de 2024. 

Artigo escrito por
Bianca Mafra
Bianca Mafra é líder de conteúdo na Casa do Saber+, roteirista de séries e podcasts, mestre pela Unicamp e criadora de projetos premiados em cultura.