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De tempos em tempos, a vida nos convida (ou empurra) para atravessar algum tipo de perda. Nem sempre damos esse nome, mas quase sempre sentimos. Crescemos acreditando que luto é uma palavra reservada à morte física, algo distante, pontual, sempre ritualizado. Mas, quando pensamos com mais cuidado, percebemos que ele mora em tantos outros lugares do cotidiano. Ou seja, ele se infiltra de forma quase silenciosa, atravessando nossas rotinas e aparecendo nos momentos em que deixamos de ser quem éramos para nos tornarmos outra coisa. Às vezes ele chega junto com transformações que escolhemos; outras, com as que nunca pedimos. E essa chegada, por mais difícil que seja, sempre fala algo sobre nós: sobre como mudamos, sobre o que deixamos para trás, sobre o que não volta mesmo quando gostaríamos que voltasse.
A psicanálise nos ajuda a iluminar esse processo. Freud dizia que o luto é um trabalho psíquico, uma travessia que nenhum atalho encurta. É a lenta reorganização interna causada pela queda de um objeto amado, seja externo ou interno. Para ele, perder não era apenas sofrer; era reconfigurar, retirar da realidade algo que deixou de existir e, aos poucos, reinvestir nossa energia vital em outras experiências. Melanie Klein amplia isso ao afirmar que todo luto reativa perdas anteriores, mesmo aquelas que nunca nomeamos. Por isso algumas dores parecem exageradas: porque carregam ecos antigos, restos de histórias que ainda habitam nossa memória emocional.
Quantos lutos estamos carregando ao mesmo tempo? Alguns podem pequenos, quase invisíveis, tão discretos que só percebemos quando o corpo reclama. Outros podem ser gigantes, atravessam nossas estruturas e nos reorganizam por dentro. Ainda assim, mesmo os menores deixam marcas. Mas por que insistimos em acreditar que só merecem atenção as perdas que o mundo inteiro legitima? Por que é tão difícil admitir que o fim de uma amizade pode doer tanto quanto um término amoroso? Ou que a despedida de um pet pode arrancar de nós uma dor profunda, mesmo quando tentamos nos convencer de que “era só um animal”? Ou que deixar para trás uma identidade, uma forma de viver, um trabalho, uma cidade, um papel que ocupamos por tanto tempo, pode nos deixar emocionalmente desnorteados e sem chão?
A psicanálise nos lembra que qualquer ruptura no laço é luto. Qualquer mudança profunda na forma como habitamos o mundo exige elaboração.
Mas a verdade é que o luto é uma resposta ao apego, à expectativa de permanência. Ele fala sobre vínculos que se desfazem e denunciam a nossa tentativa de segurar com as mãos aquilo que, por alguma razão, não pôde ficar. E só isso já seria suficiente para entendermos por que dói: porque amamos, porque nos identificamos, porque criamos histórias em torno das coisas e das pessoas. Nos acostumamos com as presenças – até as de nós mesmos – e se desfazer disso não é tão simples assim.
Sabe aquele sentimento que surge quando uma versão nossa que já serviu tão bem começa a deixar de caber? Isso também é um luto. O que fazia sentido antes já não faz, certezas se dissolvem, caminhos perdem o brilho de um jeito estranho. Esse luto mora nos ritos de passagem, nas roupas que deixamos de usar, no corte de cabelo que agora já não transmite a personalidade, nos objetos que não nos representam mais, nas mudanças que exigem abrir espaço para o novo. E admitir isso requer coragem de olhar para o que foi deixado para trás sem tentar diminuir o impacto da mudança.
Há também os lutos que nascem dos vínculos e dos sonhos que se desfazem. Relações que se esvaziam sem anúncio, amizades que viram silêncio, projetos que não acontecem, vidas imaginadas que não se realizam. Quase ninguém nos ensina a chorar pelo que termina devagar ou a se despedir de expectativas que não encontraram lugar no mundo. Mas reconhecer esses fins, mesmo os mais discretos, pode ser o gesto mais amoroso que fazemos por quem estamos nos tornando.
Quando falamos sobre luto, estamos também o digerindo, e esse processo se dá dentro de um espaço e de um tempo. Dezembro, por exemplo, é uma espécie de lupa emocional: amplifica o que não resolvemos, ilumina o que não enfrentamos, escancara o que ainda nos dói, mas também nos mostra as rupturas que não conseguimos viver ao longo do ano, seja por falta de tempo, percepção de si ou negação. Não é à toa que tantas pessoas se sentem estranhas nessa época, nem exatamente tristes o suficiente para chamar de luto, nem alegres o suficiente para acompanhar o clima de festa. É uma melancolia que mora no meio do caminho, uma coisa horrorosa e confusa.
Os lutos que atravessam o corpo também ganham força nessa época. A idade que chegou sem pedir licença, a disposição que já não é a mesma, a saúde que exige novos cuidados. São pequenas despedidas corporais que vamos vivendo aos poucos. Eu já mencionei em outro texto que dezembro nos obriga a olhar para o tempo de um jeito diferente, para perceber o que mudou no corpo e no ritmo da vida; mas nesse mix de reflexões sobre luto, é preciso reconhecer que estamos sempre nos despedindo de versões que já fomos.
E mesmo quando pensamos no luto pela morte física, percebemos que ele também se intensifica no fim do ano. As ausências ficam mais nítidas, os rituais ficam mais carregados, as lembranças, mais vivas. Dezembro parece tirar do invisível todas as pessoas que marcaram a nossa história. E por mais que o tempo tenha passado, existe sempre alguma fresta pela qual a saudade encontra um jeito de entrar.
Mas se existe algo que todas essas formas de luto nos ensinam é que ele faz parte da vida. Não é uma exceção, é um movimento constante. Luto não é só sobre o que acaba, é também sobre o que se transforma no caminho, sobre o que precisou ir para que outra coisa pudesse nascer. O luto é uma passagem, e não apenas um fim. E, mesmo que esse processo seja muito íntimo, ele não precisa ser solitário. Estar perto dos nossos nos ajuda a atravessar. Às vezes, não porque essas pessoas entendem tudo, mas porque seguram o ambiente e ajudam a criar chão, trazendo presença quando o mundo parece instável.
Compartilhar o que sentimos dá forma ao que antes era nebuloso; e dar forma é sempre o primeiro passo para aliviar. Por isso, o meu desejo é que saibamos lidar da melhor forma possível com os nossos lutos. Precisamos permitir que eles existam. Dar nome, se der e se couber. Sentir, quando for possível e silenciar, quando for preciso. Reconhecer que estamos sempre perdendo e ganhando algo, sempre fechando e abrindo portas, sempre caminhando entre adeuses e recomeços. E, acima de tudo, lembrar que não há problema algum em perceber que certos lutos ainda estão vivos em nós. O que importa é que seguimos, às vezes com dor, claro, mas também às vezes com coragem.
E viver não é isso? Aprender a se despedir sem deixar de se abrir para o que chega? É preciso aceitar que algumas perdas não terão nome, alguns ciclos não terão fechamento claro, alguns sonhos vão ficar pelo caminho e lembrar que ainda assim, há futuro. Sempre há!
O novo sempre chega!
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Se você quiser se aprofundar nessa conversa, o curso “Depois do fim: vidas transformadas pelo luto” da Casa do Saber amplia ainda mais esse olhar e traz reflexões que ajudam a compreender como atravessamos perdas, e como elas, paradoxalmente, podem nos transformar.



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