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Manual Honesto Para Feministas em Contradição

Manual Honesto Para Feministas em Contradição

Eu nunca fui sozinha a um bar, nem a uma roda de samba. Quando chego sozinha em rodas e bares, é sempre com a certeza de um encontro previamente combinado. Amigas ou amigos que, em questão de minutos, seguramente se juntarão à minha companhia.

Gosto muito de um bar, mais ainda de uma roda. Frequento ambos com uma assiduidade mais pra “regra” do que pra “exceção”. Mesmo assim, permanecer nestes espaços deliberadamente em minha única companhia é uma possibilidade que me gera desconforto. Frequentar bar e roda, sabemos, é um hábito historicamente masculino; a chance de que estes ambientes sejam machistas, portanto, não é pequena. “Vão achar que tô ‘procurando macho’, que tô ‘solteira desesperada’? E se meu contato visual distraído for mal interpretado pelos caras? Qual lookinho me deixa bonita sem parecer disponível?”. Mais uma vez, hesito e desisto. Ainda não consigo (talvez nunca consiga) bancar minha presença desacompanhada nestes ambientes.

Por me entender como feminista, acho essa minha limitação um pouco boba e constrangedora. Claro que o desconforto é legítimo — estranho seria não sentir desconforto em espaços acostumados a nos deixar desconfortáveis (ou, pior: vulneráveis, inseguras, hostilizadas). Ao mesmo tempo, “que espécie patética de feminista é essa, que não sustenta algo tão básico, tão banal quanto curtir um samba sozinha?”, me pego pensando. Se desejo que todas as mulheres possam ocupar todos os espaços com dignidade, eu não deveria estar fazendo minha ínfima parte para que o mundo caminhe nessa direção? Não seria mais correto bancar esse desconforto, me fazer presente e mostrar — com o perdão da expressão já muito pasteurizada pelo capitalismo — que “lugar de mulher é onde ela quiser”? 

Das minhas contradições enquanto feminista, talvez esta seja das mais inocentes. A real é que a lista é longa. Condeno veementemente padrões de beleza que distorcem nossa autoimagem, mas me recuso a postar fotos em que eu não me ache bonita “o suficiente” (e raramente me convenço de que estou bonita “o suficiente”). Eu sei que cultuar a juventude é compactuar com uma sociedade que ancora nosso valor no desejo sexual masculino; tenho certeza de que o etarismo é incomparavelmente mais cruel com nosso corpo. Acontece que, se sobra dinheiro, marco uma aplicação de Botox, compro um cosmético de retinol ou leio um artigo recente sobre bioestimulador de colágeno.

E o buraco é mais embaixo, pois várias das minhas contradições são praticadas socialmente. 

O corpo feminino alheio está sempre sob o olhar vigilante dos meus grupos de amigas, e dedicamos muito mais tempo a repará-lo, compará-lo e comentá-lo do que gostaríamos de admitir. Se uma de nós emburaca na raiva e xinga outras mulheres com ofensas machistas, às vezes reagimos à situação com gargalhadas — apesar de defendermos a sororidade com unhas e dentes. Mesmo com a sororidade fora de questão, toda ocasião parece oportuna para convocarmos um stalk coletivo sobre outras vidas femininas: afinal, se fulana é inteligente/bonita/interessante/bem-sucedida, PRECISAMOS descobrir o defeito que ela esconde. 

Me sinto profundamente desrespeitada quando um homem interrompe minha fala, mas, quando amigos, sogros, tios o fazem, tenho dificuldade de me posicionar a respeito; só deixo pra lá. Torço o nariz para homens adultos que vivem com os pais por opção, mas não problematizo tanto assim as mulheres que fazem o mesmo. Há dois anos, faço parte de um grupo de samba majoritariamente masculino. Mesmo sendo um grupo amador, ainda fico insegura em tocar na frente dos meus parceiros (meu inconsciente diz que, se eles se impõem mais na roda, têm mais propriedade para tocar do que eu). 

A lista continua, mas vou parando por aqui. Transformar esse artigo num elogio à contradição é um risco que prefiro evitar. Conformar-se com o fato de que a prática de uma feminista não acompanha seu discurso é jogar contra todo um processo histórico de lutas por justiça de gênero — lutas que buscam, no final das contas, mudanças práticas no mundo em que vivemos.

O que me interessa nessa conversa é encarar as contradições olho no olho, reconhecer que elas coexistem com nossos princípios. Já sei que não sou uma arauta do feminismo — mas será que alguém é? Claro, há quem estude muito mais do que eu, quem seja muito mais comprometida com a luta, mas suspeito que a mais admirável das feministas é humana como todas as outras mortais. Se as contradições não são uma opção, reconhecê-las é a saída honesta, inclusive, para identificarmos as chances de superá-las e, assim, nos desenvolvermos enquanto feministas responsáveis, mais capazes de afinar a prática com o discurso.

Nesse processo, seguimos administrando as contradições que acompanham a caminhada rumo ao que não se pode perder de vista: uma realidade em que todas usufruam da cidadania em sua mais plena realização.

Artigo escrito por
Beatriz Miranda
Comunicadora social graduada pela UFRJ e PUC-Rio, Beatriz Miranda escreve sobre cultura brasileira e já colaborou com NYT, BBC, Estadão e outros.