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Dezembro chega sem pedir licença: cansaço, expectativas e balanços internos

Dezembro chega sem pedir licença: cansaço, expectativas e balanços internos

No exercício de fazer uma recapitulação do ano, dei uma olhada nos meus últimos escritos por aqui e percebi que a maioria deles aborda a culpa como um elemento central para nós, mulheres. Diante disso, pensei: “não irei fazer esse texto ser sobre culpa”. No entanto, como desconsiderar esse sentimento que não sabe esperar ser chamado e que se desdobra, se contorce em tamanhos e formatos diversos ao longo do ano, e que tem seu auge justamente quando o calendário decide anunciar que estamos chegando ao fim?

Se em outro texto eu mencionei que o tempo passa diferente para as mulheres, então o tempo do calendário também assume outros sentidos e temporalidades para nós. Longe de ser apenas o último mês do ano, dezembro nos lembra de tudo que ficou por fazer e de tudo que ainda precisa ser feito. É o temido “encerramento do ciclo”, mas com a sensação de que estamos prestando contas a uma banca avaliadora imaginária que cobra organização, serenidade, beleza, responsabilidade e, claro, um sorriso no rosto. Uma mistura de autoavaliação, autocobrança e necessidade de recuperar um tempo perdido que acompanha essa última ceia. 

Nesse caminho, vemos de um lado a pressa de fechar tudo “a tempo”, como se o mundo fosse desmoronar no dia 31 à meia-noite caso algo ficasse por fazer. Do outro, um desejo quase infantil de desacelerar, de encontrar um canto silencioso longe das notificações e das expectativas. Dezembro tem essa habilidade curiosa de esticar e comprimir as temporalidades ao mesmo tempo, nos deixando confusas sobre se estamos atrasadas, adiantadas ou simplesmente cansadas demais para medir qualquer coisa.

E enquanto tudo isso acontece, ele também vai abrindo pequenas frestas pelas quais transbordam incômodos antigos, quase sempre domesticados ao longo do ano, quando testemunhamos aquelas cenas que a gente já conhece bem: mulheres na cozinha, organizando, lavando, limpando, calculando horários, equilibrando panelas e sobremesas, enquanto os homens ocupam o quintal com uma leveza que não passa nem perto da carga que está do outro lado da porta. Não é novidade para ninguém, mas a repetição anual transforma essa divisão numa espécie de tradição involuntária, como se fosse parte integrante do “espírito natalino”.

De modo geral isso nos atinge, mas de modo individual os desdobramentos se intensificam. É o familiar que pergunta como estão “os preparativos”, a amiga que lembra que você é “boa com essas coisas” e pede ajuda para organizar o encontro de fim de ano do ensino médio, o colega que precisa daquele último arquivo “só pra fechar o ano”, o companheiro, às vezes bem-intencionado, que solta um “O que vamos fazer no Natal?”, como se o protagonismo da logística já estivesse subentendido e como se fosse óbvio que a responsabilidade é nossa. Como se a gente fosse naturalmente a guardiã das dinâmicas.

E aí, quando você percebe, está tentando coordenar agenda de família, decidir ceia, resolver presentes, organizar viagem, lidar com demandas profissionais atrasadas, apoiar emocionalmente meio mundo de gente que também não sabe lidar com esse momento do ano e, achando pouco, ainda precisa sorrir, porque fazer não é suficiente, tem que fazer graciosamente, sem demonstrar desgaste e sem admitir que está à beira de explodir. É essa performance que dezembro exige e que não nos deixa esquecer o quanto simbolicamente custam alguns momentos de celebração e que, por vezes, nem são tão bons assim.

Ainda é de se surpreender o quanto esse mês desperta uma necessidade muito particular que não acontece durante o ano inteiro. Para quem mora em outra cidade, esse processo é ainda mais curioso, pois exige um deslocamento que, claro, é físico, mas que também é emocional. E é estranho, e até um pouco cruel, como esse retorno é romantizado pelos outros, mas raramente compreendido na sua profundidade. Para eles, você está “voltando pra casa”, mas para você, às vezes, é como atravessar um portal onde velhas expectativas continuam te esperando na porta, intactas, iguais a dezembro passado. Entre elas, a de que você precisa compensar a distância com presença, a ausência com disposição, e o cansaço com entrega, como se morar longe fosse, por si só, um tipo de falha que você precisa reparar quando dezembro chega. 

Perceber toda a logística dessas dinâmicas implica olhar para nós e também para quem está à nossa volta e a forma como a gente se coloca e é colocada nesse cenário. Vemos aquela coreografia familiar de ser a pessoa que sabe onde está a travessa grande, quem chega primeiro, quem não come uva-passa, que horas colocar o peru no forno, pensar na opção vegana, quem precisa de carona, quando é melhor passar no mercado “antes que acabe” e todos os desdobramentos que estão longe de ser um Natal de comercial. 

É por isso que festividade de fim de ano não implica necessariamente no princípio da comunhão. Alguém sempre será a pessoa que sustentará o clima da festa, que segura a logística, que garante o conforto coletivo e, ao mesmo tempo, não pode admitir cansaço, afinal, é Natal, é celebração, gratidão, família reunida. Como reclamar quando todo mundo insiste em te lembrar do “privilégio” de estar ali? Como dizer que está difícil quando o discurso do amor se confunde com a obrigação de servir? Dezembro cria esse tipo de armadilha emocional: a de acreditar que estar presente significa sempre estar disponível e oferecer mais do que se tem.

Se dezembro nos força a lembrar do que ficou de fora, dos planos abandonados, dos projetos que não vingaram, das promessas feitas para um “depois” que nunca aconteceu, ele também pode, se a gente permitir, nos convidar a olhar para o que ficou dentro: tudo o que conseguimos fazer mesmo com pouco tempo e pouca ajuda, tudo que construímos apesar da sobrecarga e do esgotamento diário. 

Então não, esse texto não será sobre culpa, porque agora iremos pensar no que conseguimos construir até aqui.

Ao longo desses meses, mesmo quando a exaustão e o esgotamento se arrastaram pelos dias, encontramos maneiras de seguir. Talvez não do jeito que imaginamos, nem com o ritmo que desejamos no início do ano, mas com os recursos que tínhamos naquele momento. Fizemos escolhas difíceis em silêncio, nos colocamos em primeiro lugar pela primeira vez em muito tempo, realizamos pequenas revoluções diárias que ninguém viu, mas que nós sabemos o quanto custaram para acontecer. Nada disso se perde só porque não coube numa lista de grandes acontecimentos, pelo contrário, é justamente nesses gestos cotidianos, no passo a passo, que se revelam as mudanças mais profundas, aquelas que remodelam a forma como nos relacionamos com a nossa própria vida.

Olhando com essa lente, vamos perceber que houve uma força contínua sustentando nossos dias, seja o desejo do movimento ou a raiva. A capacidade de refazer planos quando eles desmoronaram, de retomar conversas difíceis, de recalcular rotas emocionais que nem sabíamos que estávamos percorrendo. Por isso, dessa vez, a culpa vai ficar pra depois, porque hoje é dia de sentir satisfação pelos nossos passos, caminhos e conquistas trilhados até aqui.

O ano não precisa terminar bonito, ele só precisa terminar. E, quando finalmente terminar, que possamos acolher essa renovação de ciclo com mais gentileza do que cobrança, e que o silêncio faça seu trabalho, assim como o desejo de que o descanso seja legítimo, e que as expectativas dos outros não ocupem mais espaço na nossa vida do que deveriam. Os desafios e tropeços continuarão fazendo parte da nossa vida, mas quanto mais a gente se movimentar, colocar a culpa de escanteio e entrar nessa dança e nesse jogo, mais atenta à vida nós seremos. E não há nada mais bonito do que isso.

Artigo escrito por
Camila Fortes
Pesquisadora. Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde do ICICT/FIOCRUZ/RJ.