
Quando se fala em escuta analítica, muita gente imagina um silêncio atento, quase técnico. Mas, na psicanálise, escutar é mais do que ouvir: é abrir espaço para o que escapa ao controle. É aí que entra a atenção flutuante, conceito fundamental proposto por Freud para descrever a postura do analista diante das associações livres do paciente.
Neste artigo, você vai entender o que significa atenção flutuante na prática, qual sua relação com a associação livre, por que ela exige neutralidade e desprendimento, e como essa escuta pode revelar o que há de mais inconsciente no discurso do sujeito.
O artigo abordará os seguintes tópicos:
O que é a atenção flutuante na psicanálise?
Freud utiliza o termo “atenção flutuante” para caracterizar o modo de escuta de um psicanalista. Trata-se de uma escuta, a princípio, neutra e não direcionada a quaisquer elementos do discurso do sujeito em análise.
Neste sentido, há também a orientação para que o psicanalista seja, ao máximo, isento de preconceitos e de outras tendências pessoais que possam influenciar o seu trabalho.
Associação livre e atenção flutuante
De fato, estes tantos anos como professor de psicanálise me ensinaram que a melhor forma de fazer quem está começando a carreira a entender o que é a atenção flutuante é esmiuçando as suas relações com outro conceito crucial da técnica psicanalítica: a associação livre.
Portanto, primeiro passo: entender que associação livre e atenção flutuante encontram-se profundamente embricadas na prática psicanalítica. Com efeito, a compreensão das articulações entre estes dois conceitos é de suma importância para qualquer um que pretenda entender o que se passa em uma sessão de psicanálise.
Então, vamos lá!
É conhecido que logo após o abandono do método catártico, Freud (1904) criou um dispositivo clínico baseado naquilo que considerou a regra fundamental da psicanálise. Esta regra nada mais remetia do que à necessidade de, durante uma sessão de psicanálise, o paciente associar livremente.
Nestes termos, era como se Freud convidasse seus pacientes a relatarem-lhe tudo o que lhes viessem à cabeça durante as sessões. E, assim, a clínica psicanalítica passou a ter como postulado fundamental a necessidade de o sujeito em análise associar suas ideias de forma livre e sem quaisquer interferências do analista... Pelo menos em um primeiro momento. Este se limitaria a fazer algumas perguntas, a escutar o discurso de seus pacientes e a observar aonde as associações iriam chegar.
E, neste aspecto, são muitos os meus alunos que ficam perplexos ao me ouvirem falar do quanto que a técnica psicanalítica é algo fundamentalmente simples: ao paciente é solicitado que tudo diga, de modo a expor seus pensamentos, fantasias e ideias de qualquer ordem. Como se ele tivesse a função maior de dizer a nós analistas tudo o que lhe chega ao pensamento.
Neste sentido, é sempre necessário que as associações livres do sujeito em análise se deem da maneira mais involuntária possível.
Ou seja, o paciente deve se deixar levar por suas associações, sem selecionar uma ou outra ideia que julgue mais relevante sob quaisquer pretextos. Ele não deve, portanto, nada selecionar nem nada discriminar... E isto para que se evite ao máximo as interferências de quaisquer tendências conscientes em seus discursos.
E foi justamente tendo isto em vista que Freud construiu a ideia de uma escuta flutuante da parte do psicanalista.
Como funciona a atenção flutuante na prática psicanalítica?
Deste modo, Freud (1912) sublinha que ao escutar as associações livres de seus pacientes, o psicanalista deve manter uma atenção flutuante.
Por estes termos, ele designa uma escuta que, pelo menos a princípio, não deve privilegiar elemento algum do discurso do paciente.
Ora, tal como ocorre com as associações do analisando, a escuta psicanalítica deve ser igualmente livre, pouco concentrada e isenta de quaisquer entraves que possam direcionar ou atrapalhar o relato ouvido.
Neste sentido, o analista deve trabalhar para se livrar ao máximo de tudo o que sua atenção consciente possa vir a focalizar, como:
- tendências pessoais
- concepções teóricas
- julgamentos de qualquer ordem
- ou mesmo preconceitos
E isto porque se o psicanalista abrir mão de uma escuta flutuante, pode acontecer de ele acabar conduzindo o tratamento de acordo com suas próprias inclinações pessoais, o que viria a prejudicar todo o seu trabalho.
Exemplos do que acontece quando o psicanalista não mantém a atenção flutuante...
Em relação a este ponto, lembro de muitas pessoas que vieram até mim se queixar de ter procurado um psicanalista e de este ser, de alguma forma, ligado a instituições religiosas. Ou seja, o tratamento em nada caminhou, pois logo estas pessoas perceberam que não era amor... Era cilada!
Dentre elas, umas contaram que, durante as sessões, chegaram a falar de suas relações com Deus a alguém que não aceitava qualquer outro posicionamento que não o de uma problemática submissão às leis e aos sacramentos da religião.
Outras queriam falar de seus desejos sexuais a alguém que considerava pecado qualquer intenção deste tipo... Enfim, uó!
Sinceramente, não consigo imaginar onde estes psicanalistas se formaram. Tampouco se efetivamente fizeram análise ou procuraram supervisão ao menos uma vez na vida. Portanto, nada que chegue a se aproximar de qualquer recomendação de Freud a respeito da importância de o psicanalista manter uma atenção flutuante durante seus atendimentos...
E ainda em relação a esta atenção flutuante, há outro ponto que acho interessante destacar.
Trata-se da necessidade de o psicanalista jamais concentrar sua escuta clínica em determinado elemento do discurso do paciente. Caso ele o faça, corre o sério risco de negligenciar outra série de elementos que podem vir a ser relevantes para o andamento do caso atendido.
Com efeito, a proposta freudiana de que o analista não deve fixar-se, a priori, em nenhum elemento discursivo se dá em virtude da possibilidade de a associação seguinte caminhar para um rumo completamente oposto ao do por ele esperado.
Portanto, ao trabalhar sem essa atenção flutuante, o psicanalista se arriscaria a não descobrir nada além do que já sabe e, com isto, jogar fora todo o proveito que se poderia retirar das associações livres de seus pacientes.
A escuta do psicanalista e o caso da moça mandona
Em relação a este ponto, lembro de um supervisionando que atendia uma moça muito mandona, nervosa, tipo sargentona e que queria que o mundo inteiro se comportasse exatamente do jeito que ela desejava. Ela era assim com o marido, com os filhos, com os pais, amigos, com o analista e, sobretudo, no trabalho.
Esta sua tendência em querer em todos mandar era devidamente apontado pelo psicanalista e, talvez, este era o assunto principal de todo o tratamento. Este corria relativamente bem e a paciente estava, de fato, elaborando tais questões.
No entanto, certo dia, ela relatou ao analista certa situação ocorrida em uma reunião de trabalho na qual, em meio a uma discussão, ela efetivamente conseguiu ouvir o que seus colegas diziam e até mesmo dar-lhes razão. Porém, logo depois da reunião, voltou a comportar-se de forma imperativa e quase ditatorial com todos da empresa.
De fato, seu psicanalista (que estava bastante fixado na ideia de que ela era por demais imperativa e mandona) não conseguiu perceber o quanto ela comportou-se de forma diferente, ainda que por pouco tempo...
Ou seja, por estar fixado a determinadas ideias, ele fechou sua escuta para o que de novo apareceu nas associações livres da paciente e, infelizmente, passou batido pela oportunidade de trabalhar algo diferente com ela.
Tal "comida de mosca" só foi-lhe apontada na supervisão...
A escuta do inconsciente
Portanto, de forma resumida, podemos dizer que atenção flutuante é uma escuta:
- não concentrada em elementos específicos do discurso do paciente;
- preferencialmente isenta de entraves que atrapalham a escuta do sujeito em análise;
- livre ao máximo de preconceitos, tendências pessoais ou concepções teóricas.
E, com base nestas considerações, podemos dizer que a atenção flutuante está para o analista assim como a associação livre está para o analisando... E que ambas se complementam durante o tratamento!
Com efeito, Freud considera que a técnica psicanalítica
é muito simples. (...) Consiste simplesmente em não dirigir o reparo para algo específico e em manter a mesma atenção flutuante em face a tudo o que se escuta. Desta maneira, poupamos de esforço violento nossa atenção. (...) Pois assim que alguém deliberadamente concentra bastante a atenção, começa a selecionar o material que lhe é apresentado. (...) A regra para o médico pode ser assim expressa: “Ele deve conter todas as influências conscientes da sua capacidade de prestar atenção e abandonar-se inteiramente à ‘memória inconsciente’” (Freud, 1912, pp. 125-126).
Deste modo, podemos compreender um último ponto crucial característico da atenção flutuante: ela deve ser uma escuta despreocupada!
Em outros termos, a escuta analítica é o exato oposto de uma escuta concentrada, baseada no esforço consciente de tentar compreender e entender aquilo que é falado.
Neste aspecto, costumo dizer que um psicanalista que bem compreendeu o que é a atenção flutuante porta-se de forma relaxada durante as sessões.
Como se ao invés de tentar, a todo custo, capturar o discurso do analisando, se deixasse capturar por aquilo que o analisando fala...O paciente em análise está associando livremente e o psicanalista escutando de maneira flutuante... O paciente associa mais e o analista escuta relaxado... O paciente associa mais ainda e o analista escuta despreocupadamente... Até que a sua escuta é como que convocada por algo que o paciente falou... E daí ele intervém!
Assim, desta maneira flutuante e em meio à certa distração, a fala do paciente lhe convocará e, neste momento, ele poderá operar o devido manejo clínico.
Deixando de lado sua concentração consciente, o analista finalmente conseguirá escutar as tendências inconscientes daqueles que lhe procuram, sem oferecer a este trabalho qualquer tipo de resistência.
E é exatamente disso que se trata no domínio da atenção flutuante: uma capacidade de atenção um tanto quanto difícil de ser obtida e que só o é a partir de certo tempo de análise e de supervisão.
Daí a necessidade de o psicanalista respeitar o conhecido “tripé da psicanálise”... Ou seja, aquele que coloca a exigência para qualquer um que almeja praticar a psicanálise cumprir três tarefas muito básicas: estudar a teoria psicanalítica, ter feito (ou ainda fazer) análise pessoal e, sobretudo, fazer uma supervisão dos casos que atende.
Para se aprofundar mais sobre a atenção flutuante
Seguem abaixo algumas sugestões de leitura para complementar o entedimento sobre atenção flutuante:
- 1904 – “O método psicanalítico de Freud”: texto no qual é formulado o conceito de associação livre.
- 1909 – “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos” – O pequeno Hans:caso clínico no qual o termo “atenção flutuante” aparece pela primeira vez.
- 1912 – “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”: texto que explica a atenção flutuante de forma mais abrangente.
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Perguntas frequentes sobre atenção flutuante
O que significa atenção flutuante na psicanálise?
A atenção flutuante é definida como uma escuta despreocupada e, ao máximo, isenta de preconceitos, concepções teóricas e de tendências pessoais do analista.
Por que o analista precisa escutar sem foco?
Porque assim ele consegue tirar o maior proveito das associações livres de seus pacientes. Caso ele se foque em determinado elemento do discurso ouvido, inevitavelmente negligenciará outros elementos que podem ser de suma importância para o tratamento do caso.
Como o analista aprende a manter a atenção flutuante?
Para aprender a manter uma atenção flutuante durante seus atendimentos, é imprescindível que o analista faça (ou tenha feito) análise e se dedique a algumas sessões de supervisão, tudo isto em respeito ao chamado tripé da psicanálise.

Referências:
Freud, S. (1904). O método psicanalítico de Freud. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 233-240.
______. (1909). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 10. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 121-133.

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