Psicanálise

Autossabotagem na psicanálise: o que é, tipos e como superar

Autossabotagem na psicanálise: o que é, tipos e como superar
banner aprenda psicanalise

A autossabotagem na psicanálise é entendida como um processo inconsciente em que o sujeito cria obstáculos para si mesmo, impedindo a realização de seus objetivos. Mais do que um simples hábito negativo, trata-se de um mecanismo de defesa ligado à culpa inconsciente e à necessidade de punição.

Esse comportamento pode se manifestar em diferentes áreas da vida - no amor, no trabalho, na família ou até na saúde. Freud já observava pacientes que, mesmo tendo tudo para serem felizes, se viam presos a padrões repetitivos de fracasso e sofrimento.

Neste artigo, exploramos o que é a autossabotagem, exemplos cotidianos, sua lógica inconsciente e os principais tipos descritos pela psicanálise, além de refletir sobre como o processo analítico pode ajudar a lidar com esse fenômeno.



O que é a autossabotagem para a psicanálise?

Para a psicanálise, a autossabotagem pode ser definida como o mecanismo através do qual um sujeito se boicota ou então cria uma série de obstáculos para que seus objetivos não sejam realizados. Todo este processo é inconsciente, sendo geralmente feito para satisfazer um sentimento de culpa ou uma necessidade de punição.

A autossabotagem é uma operação muito comum e ocorre nos mais variados campos da nossa vida como, por exemplo, na esfera amorosa, na familiar, no campo profissional e mesmo em relação à nossa saúde.

Exemplos de autossabotagem

Quantos de vocês já passaram pela triste situação de desejar arduamente um emprego, empenhar-se demais consegui-lo, mas, de repente, em plena entrevista para a vaga, soltar uma burrice do mais baixo escalão bem na cara do gerente?

Há também a autossabotagem no amor: quantos de vocês já passaram pelo vexame de se apaixonar por alguém, bolar mil e uma estratégias para conquistar a pessoa amada, perder-se em inúmeros devaneios sobre um possível namoro ou casamento e, no entanto, bem na hora do date, fazer uma besteira inenarrável que colocou tudo a perder?

Quantos também já planejaram a viagem dos sonhos, economizaram grana por um ano inteiro, abriram mão de uma centena de outras coisas, organizaram tudo direitinho e, no entanto, bem na hora da viagem, foram tomados por dores estranhas ou por um inexplicável sentimento de tristeza e que, por isso, não conseguiram aproveitar nada do passeio?

Estes são apenas três exemplos que podem acontecer comigo, com vocês e com todo mundo! Ora, a autossabotagem é um processo que desconhece gêneros, classes sociais, raças e religiões. Ou seja, ninguém – absolutamente ninguém – está livre dela.

Ela chega sem avisar, nas horas menos propícias e mais imprevistas, fazendo-nos ficar completamente boquiabertos diante de tudo o que somos capazes de fazer contra nós mesmos.

Geralmente, os sinais de autossabotagem são por demais silenciosos, de modo que ela costuma ir se fazendo sorrateiramente, de uma maneira que a gente nem consegue perceber direito o que está pra acontecer.

E o pior: ela é um processo que se repete por indefinidas vezes ao longo da nossa vida, de forma a ser bastante comum a sensação de não sabermos como vencer a autossabotagem.

Meme do desenho Scooby-Doo em que Velma descobre que quem a sabotava era ela mesma, representando a autossabotagem

A lógica inconsciente da autossabotagem

Quando eu vou falar em sala de aula sobre os processos de autossabotagens, eu começo marcando que Freud jamais se serviu deste termo. Ou seja, a autossabotagem é uma noção presente no senso comum, mas que não é propriamente um conceito psicanalítico.

No entanto, ao longo dos mais variados textos de Freud, há inúmeros exemplos de pacientes que, a princípio, tinham de tudo para serem felizes, mas que jamais o conseguiam: algo recorrentemente os impelia para trás, rumo ao boicote de tudo o que eles pretendiam construir.

E as considerações feitas sobre tais pacientes são bastante próximas disso que o senso comum considera como sendo da autossabotagem.

Assim, alguns destes pacientes criavam mil e uma armadilhas contra si, além dos mais diversos obstáculos que os bloqueavam na concretização de seus planos. Muitos deles, inclusive, armavam situações visando seus fracassos ou mesmo se julgavam pouco merecedores de felicidade, como se tivessem um terrível medo do sucesso.

Óbvio que todos estes sentimentos e mecanismos eram inconscientes, de forma que tais sujeitos jamais possuíam o exato conhecimento de tudo o que faziam contra si próprios.

Mas como explicar estes tantos boicotes, bem como as artimanhas que eles criavam para fracassar na vida? Segundo Freud (1924), tudo isto acontecia em virtude de um sentimento de culpa inconsciente.

Conforme sabemos, a psicanálise parte do pressuposto de que a gente possui um inconsciente. Ou seja, nós não temos conhecimento de tudo o que somos ou desejamos.

E, com efeito, por muitas vezes, acabamos desejando algo que é incisivamente proibido pela moral em voga na nossa sociedade. Trata-se de desejos sexuais ou muito cruéis que mantemos em nosso inconsciente e que nos geram uma terrível e severa culpa que, por vezes, também desconhecemos.

Neste sentido, a autossabotagem pode ser considerada como uma forma que encontramos de nos punir. E isto para, justamente, satisfazer este sentimento inconsciente de culpa.

banner cursos fremmium casa do saber

Tipos de autossabotagem

Os dois tipos mais comuns de autossabotagem analisados por Freud são os que envolvem a reação terapêutica negativa, além dos casos dos fracassados pelo êxito. Vamos a eles.

Foto de um cachorro sentado no banco do carro olhando de lado, expressão que simboliza desconfiança ou julgamento

A reação terapêutica negativa

Para a psicanálise, os casos mais frequentes de autossabotagem são aqueles que envolvem a reação terapêutica negativa. Em linhas gerais, este fenômeno diz respeito a pacientes que procuraram análise, obviamente, visando a uma melhora em seus quadros. Todavia, conforme o tratamento ia progredindo, eles passaram a, paradoxalmente, apresentar um enigmático agravamento de seus sintomas.

Trata-se, portanto, de sujeitos que costumam reagir mal ao tratamento psicanalítico, de forma que o mesmo dispositivo que opera de modo eficaz em outros casos, neles produzem o efeito contrário: parece haver neles uma contundente resistência aos efeitos da análise, bem como forte insistência em permanecer sofrendo.

Desta forma, aos poucos, Freud (1924) foi desconfiando que, nestes casos, a necessidade de o paciente persistir no sofrimento sempre acabava levando a melhor diante dos esforços terapêuticos.

Por isto pareceu-lhe que tamanha reação negativa se dava em virtude de um sentimento inconsciente de culpa. Culpados sem o saber, não conseguiam parar de punir-se através do agravamento de seus sofrimentos. Em suma: no final das contas, o que realmente interessava a estes pacientes era sofrer.

O fracasso pelo êxito

Há também o caso dos sujeitos “arruinados pelo êxito” (Freud, 1916). Trata-se, aqui, daqueles que quando finalmente conseguem realizar o que mais desejavam, paradoxalmente, ficam extremamente tristes, angustiados e até mesmo deprimidos. Por conseguinte, eles não conseguem usufruir de nada do que conquistaram. Vejamos dois exemplos.

O primeiro é fornecido pelo próprio Freud. Ele nos conta a história de um respeitável professor que muito idealizava ser o sucessor do mestre que o iniciara nos estudos.

Todavia, quando o mestre se aposentou e os colegas o informaram que ele fora escolhido para substituí-lo, este começa a depreciar-se e achar-se indigno do posto. Em seguida, caiu em profunda tristeza e permaneceu por anos afastado do trabalho.

O outro exemplo é o de um conhecido meu. De fato, ele idealizou por anos e anos a compra de certo bem material de difícil aquisição. Assim, após inúmeros esforços, alguns deles em vão, o dito cujo finalmente conseguiu o que tanto almejava. Porém, ele sequer conseguiu desfrutar da sua situação por, estranhamente, ter mergulhado em profunda tristeza tão logo adquiriu o bem. Restou-lhe a inexplicável sensação de sentir-se triste quando deveria, pelo contrário, estar por demais eufórico.

Ora, apesar destes exemplos serem diferentes em muitos aspectos, não podemos deixar de apontar que existe algo em comum entre eles: as duas tristezas aqui mencionadas surgiram após a concretização de um determinado ideal por parte dos sujeitos em questão (algo que em muito se aproxima do Freud chamou de “ideal do eu”). E ambos os estados de tristeza vieram a impossibilitar a fruição de tamanha conquista.

De acordo com Freud, a tristeza destes dois sujeitos “fracassados pelo êxito” também pode ser explicada em virtude de uma estranha necessidade de punição. Com efeito, o sentimento inconsciente de culpa é algo tão traiçoeiro que é capaz de atingir, inclusive, aqueles que só teriam motivos para encontrarem-se felizes.

Segundo a lógica peculiar da necessidade de punição, o que interessa é apenas o sofrimento, a dor e a tristeza, de forma a fazê-los bater em nossas portas mesmo quando experimentamos grande êxito.

Enfim, tudo se passa como se em todos nós houvesse um sentimento inconsciente de culpa clamando por satisfação e que recorrentemente nos conduz à resoluta tristeza, sobretudo, quando estamos contentes e orgulhosos de nós mesmos. Uma autossabotagem bizarra que não nos deixa sossegados e que é capaz de dominar nossas vidas e levar-nos até mesmo à depressão.



Como parar de se sabotar?

Fazendo análise, né? Ou você acredita nestes manuais que existem por aí? rs

Com efeito, não existe uma receita de bolo capaz de nos livrar da repetição e do gozo nestes padrões de comportamentos tão angustiantes. Porém, o tratamento com um psicanalista pode em muito auxiliar na tarefa de fazer frente e esta nossa terrível mania de nos autossabotar.

Mas como a psicanálise pode auxiliar neste processo?

Em primeiro lugar, por respeitar a singularidade de cada caso.

Ou seja, apesar de a autossabotagem ser um processo comum a todos os sujeitos, devemos destacar que cada sujeito acaba se boicotando de maneira absolutamente singular.

Nesta perspectiva, somente uma escuta psicanalítica atenta aos traços marcantes de cada pessoa é capaz de tornar este quadro menos angustiante. Qualquer espécie de manual ou de dicas que encontramos por aí fracassam por não respeitarem a singularidade de cada caso. Portanto, em nada conseguirão auxiliar os sujeitos que os leem na esperança de curar-se.

E em segundo lugar, a psicanálise pode auxiliar no tratamento das situações de autossabotagem, justamente, por possibilitar ao paciente uma elaboração dos seus padrões repetitivos.

Neste sentido, é bacana destacar a relação que a ideia de elaboração mantém com os nossos padrões repetitivos.

Ou seja, Freud (1920) indica que tudo o que, em nós, ainda não foi suficientemente elaborado, insiste em se repetir: e aí incluem-se as autossabotagens que nos conduzem a constantemente reviver experiências desprazerosas, bem como aquelas que envolvem histórias que sempre terminam em um desfecho infeliz ou as que ocorrem em nossos vínculos familiares e amorosos, dentre tantos outros.

Perguntas frequentes

Por que as pessoas se sabotam nos relacionamentos?

Segundo a psicanálise, a autossabotagem nos relacionamentos costuma atender a um sentimento inconsciente de culpa. Dessa forma, a pessoa se pune, mantendo-se triste e deprimida mesmo quando poderia viver uma relação satisfatória.


Como a psicanálise ajuda a lidar com a autossabotagem?

A psicanálise auxilia ao estimular a elaboração dos conflitos inconscientes. Conforme o sujeito trabalha suas questões no processo analítico, os mecanismos de autossabotagem tendem a diminuir gradualmente.


banner conheça a casa do saber 20% de desconto

Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.

Conheça os cursos de Ricardo Salztrager





Referências:

Freud, S. (1916). Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 323-348.

_____. (1920). Além do princípio de prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-75.

_____. (1924). O problema econômico do masoquismo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 173-188.

Tags relacionadas