
Não sei se quero gestar um ser humano chamado “filho”. Mas… e se eu decidir que quero quando não der mais tempo de querer?
Pensei sobre isso pela primeira vez há uns dois anos. Em um jantar com duas amigas, falávamos sobre nossa maternidade hipotética quando uma delas, muito genuinamente, me perguntou: “Você não sente medo do relógio batendo?”
Não sentia. Aquele não era um “problema” que alimentasse o estado de neurose da Beatriz de 2023, àquela altura com 31 anos de idade. Afinal, para mulheres jovens e com letramento de gênero, como nós, aquele medo me soava incoerente, um pouco vexaminoso até.
Além do mais, para mim, filha de uma mulher que engravidou aos 39 e deu à luz aos 40, parecia absurdo temer a diminuição da fertilidade na aurora dos meus 30 (em tempo, confesso que a pergunta da amiga pairou na minha cabeça por algumas noites).
Pensei sobre isso novamente em meados de 2024. Sentamos em Botafogo para tomar um café, eu e outra amiga. Ela estava gestante havia alguns meses. Essa amiga me contava que, antes de ter engravidado naturalmente, aventava a possibilidade de congelar óvulos (uma decisão relativamente comum entre mulheres de seu círculo social).
Um pouco mais velha que eu, ela, que tinha certeza de que queria ser mãe, cogitava o congelamento de óvulos para aumentar as chances de realizar seu desejo. Eu quase nada sabia sobre o procedimento, somente do altíssimo custo para realizá-lo.
Foi aí que ela me disse: produtoras de óvulos ficam isentas da grande maioria dos custos envolvidos no processo de congelamento caso estejam aptas e dispostas a se tornarem doadoras de suas células sexuais.
Ali, uma luz se acendeu. Se eu doasse parte dos meus óvulos, poderia armazenar outra parte para a minha posteridade e sem pagar quantias exorbitantes pelo procedimento. Me aproprio do poder de escolha sobre a maternidade biológica, pensei, enquanto amenizo a pressão cronológica sobre minha vida fértil. Parecia uma ótima ideia.
Contactei a clínica recomendada pela amiga. Marquei uma consulta “sem compromisso” para, nas palavras da própria funcionária, “verificar as possibilidades” junto à biomédica responsável. Muito que bem.
Só que a consulta não ocorreu como eu imaginava. A biomédica cuspia informações sensíveis e importantes com um automatismo hostil, o que me impossibilitava de compreendê-las com o cuidado que mereciam.
Sutilmente, a consulta transformou-se em uma triagem. Afinal, imagino, a biomédica precisava logo identificar se eu atendia aos requisitos para doadora de óvulos ou se eu era uma grande perda de tempo para sua clínica de medicina reprodutiva.
Eu já não tinha certeza se desejava prosseguir com a consulta, mas, quando me dei conta, estava confiando meu histórico familiar de doenças e detalhes sobre minha saúde sexual a uma desconhecida cuja única responsabilidade, eu acreditava, era me informar sobre o processo de congelamento de óvulos mediante doação.
O que já estava esquisito ficou pior quando fui questionada sobre meu grau de escolaridade e meu domínio de línguas estrangeiras. Não, minha proficiência em línguas e meus diplomas de curso superior não revelam absolutamente nada sobre o código genético que meus óvulos carregam.
Atestam apenas o óbvio: que tive o privilégio de estudar mais que a média das mulheres brasileiras. No entanto, convencer uma receptora de que ela está comprando óvulos “poliglotas e de boa escolaridade” (por vários milhares de reais, inclusive) é um marketing que, convenhamos, pega bem demais.
Com a sensação de que havia vivido um episódio sombrio de Black Mirror ou The Handmaid’s Tale, saí daquela consulta atordoada e reflexiva. Qual é o preço que pagamos para armazenarmos nossos óvulos para o futuro?
Não falo somente do custo financeiro para a realização do procedimento, que, como mencionei, é bastante elevado. O ciclo completo (consultas, exames, medicamentos para estimulação ovariana e coleta dos óvulos) facilmente ultrapassa o valor de R$20.000,00 - isso sem contar com o “aluguel” de um espaço para seus óvulos em um tanque de nitrogênio líquido, o que pode custar cerca de R$2.000,00 por ano.
Falo, sobretudo, do preço que se paga com nosso bem-estar. Mais que um procedimento invasivo e, em muitos casos, fisicamente doloroso, o congelamento de óvulos não garante o sonho da maternidade biológica. Para cada óvulo congelado, a chance de uma gestação bem-sucedida é igual ou menor que 30%.
Há tempo, dinheiro e expectativa depositados em um projeto que pode nunca acontecer, o que pode ser no mínimo frustrante e, às vezes, profundamente desgastante para a saúde psicoemocional de uma aspirante à mãe biológica.
O buraco pode ser mais fundo para doadoras que, na intenção de diminuir as despesas com o procedimento, são constrangidas por perguntas que nada informam além de falácias sobre o material genético de seus óvulos.
Nada disso, entretanto, parece nos desencorajar do procedimento — muito pelo contrário. O país concentra cerca de 200 clínicas de reprodução humana, o maior número na América Latina.
Dentro delas, são realizados aproximadamente 60 mil tratamentos por ano - e esse número só tende a crescer. Pelo visto, há um entusiasmo crescente com a ideia de nos apropriarmos de nosso planejamento de vida, sermos livres para escolher, não nos tornarmos “reféns” de nossa própria natureza.
Por outro lado, essa maior adesão ao congelamento dos óvulos parece revelar que, cada vez mais, desconfiamos de nossa capacidade de engravidar naturalmente mesmo quando não há motivo para tal insegurança.
Em um cenário de pacientes ávidas por congelar seus óvulos, ganham as clínicas, ganha o mercado financeiro. Parece loucura? Em 2023, um fundo de private equity da XP investiu R$200 milhões na aquisição e expansão de clínicas de medicina reprodutiva no Brasil. O fundo anunciou, também, que investiria em marketing para educar os brasileiros sobre esse procedimento.
Especular financeiramente sobre a ansiedade de mulheres com seu tempo de vida fértil é um tanto quanto perverso. Ao mesmo tempo, não seria justo condenar um procedimento médico que trouxe e traz benefícios à vida de muitas pessoas.
Por ora não me interessa doar/congelar óvulos, mas, caso eu mude de ideia, é ótimo saber que a possibilidade continuará existindo. Enquanto isso, seguro a onda pra não cair em armadilhas e lembro da minha mãe, que me pariu aos 40 quando “tudo era mato”.

Para refletir e se informar:
https://open.spotify.com/episode/41wvyyy4fjzZDWlrtMJzz7?si=QtJtsQ41QdORaTjBTDN8wg
https://azmina.com.br/reportagens/congelar-ovulos-estariam-nossos-ovarios-defeituosos/