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A dimensão do tempo no trabalho para nós, mulheres

A dimensão do tempo no trabalho para nós, mulheres

Pode parecer meio esquisita a pergunta, pois lógico que o nosso tempo é nosso. Mas será? Tenho pensado muito ultimamente sobre o quanto de tempo dedico ao meu trabalho, e em como as pessoas reagem a isso. Não me refiro apenas às horas formais dedicadas à profissão, mas também aos espaços que se estendem para muito além do expediente: nas tarefas invisíveis, na necessidade de resolução de problemas que são levados para dentro de casa, nas preocupações que seguem mesmo quando o corpo tenta descansar. 

É nesse sentido que o tempo, para nós mulheres, é feito de sobreposições e não de uma linearidade cronológica que fomos ensinadas a acreditar.

O tempo das mulheres nunca foi apenas o tempo do relógio. Sempre foi o tempo do outro, que raramente está alinhado a um tempo interno nosso. Parece que para nós, sempre há um aval para o outro dizer como devemos agenciar nossas atividades, nossas disponibilidades e até mesmo nossas reuniões e negociações profissionais. Ele pode vir de todos os lados: de quem responde para você, do seu parceiro de cargo, claro, do seu gestor, sem esquecer do seu pai, do seu irmão ou do seu companheiro. A masculinidade tem dessas: acredita que pode opinar sobre o que não lhe cabe.

O nosso tempo é constantemente observado, comentado, passível de opiniões e julgado por eles. Se trabalhamos demais, dizem que negligenciamos a vida pessoal. Se trabalhamos de menos, questionam nossa ambição. Se estamos sempre ocupadas, somos vistas como distantes. Se priorizamos o descanso, como preguiçosas. É uma equação sem solução, porque o problema não está em nós, mas nas expectativas que nos cercam sobre o nosso próprio tempo.

Essa relação desigual com as temporalidades é herança de uma estrutura que historicamente nos ensinou a colocar nossas horas a serviço dos outros. E isso se manifesta de forma sutil no cotidiano: quando interrompemos o que estamos fazendo para resolver algo de alguém; quando sentimos culpa por não atender uma ligação; quando dizemos “só mais um minuto” mesmo sabendo que aquele minuto será mais uma concessão; ou quando estendemos o expediente e nos sentimos mal depois, na medida em que pensamos que alguém ficou desassistido dentro de casa. A disponibilidade feminina ainda é vista como uma obrigação moral, e não como uma escolha.

Mas por que o outro se sente nesse direito de julgar o que fazemos com o nosso tempo? Será porque não o colocamos mais a serviço dele? Ou porque o outro faria diferente com o tempo que tem? Que as percepções sobre o tempo são relativas, nós já sabemos, mas parece que ela só é negociável do lado de cá da corda, enquanto do outro lado, ela segue firme e forte. Do lado de lá, o agenciamento do tempo é admirável, bonito de se ver, pois a determinação é celebrada como virtude. Já pra nós, é quase uma afronta.

É por isso que esse controle de que define o que é “tempo bem gasto” e o que é “tempo perdido” quase nunca é definido por nós. No entanto, é nesse ponto que o debate precisa se deslocar: como questionar os alicerces de um tempo que nunca foi feito para nos contemplar e que nos apresenta a culpa como principal medida de valor?

A experiência feminina do tempo é marcada pela culpa, pela cobrança e por uma expectativa silenciosa dessa disponibilidade constante. Como já mencionei, essa disponibilidade é para o outro, para que possamos estar a serviço dele; mas também para nós. “Não dá pra viver só de trabalho, por isso, é bom reservar um tempo para se cuidar mais!”, eles dizem. “E se você for para a academia às 5h, antes de ir pro escritório? É uma boa opção, né?”, eles insistem. Evidentemente, desconsidera-se que esse tempo “livre” precisa sair de algum lugar, seja do sono, do descanso ou da pausa que já era curta. 

Mas, se o outro sabe agenciar o nosso tempo melhor do que nós mesmas, então o que sobra de nós nesse arranjo? O que resta da nossa vontade, do nosso ritmo, da nossa escolha? A ideia de que alguém de fora (mesmo que de dentro) pode definir o que devemos fazer com o nosso tempo é uma forma sofisticada de controle, e precisamos apurar nosso faro para não cair nas armadilhas de um tempo não gerenciado por nós, quando se trata sobre nós. Às vezes pode soar como um conselho que, muito embora não tenha sido solicitado, sempre deixa um gosto amargo de culpa na boca, porque a possibilidade de que um olhar externo traga uma solução que estava diante dos nossos olhos nos faz se sentir meio burra às vezes. 

O “demais” é sempre o limite imposto para nos conter porque o outro sempre acha que sabe o que é melhor para nós. Só esquecemos que essa solução geralmente vem a partir da perspectiva de quem não vive o que nós vivemos, de quem não passou pelo que passamos, e quem não sabe o caminho que foi percorrido para que chegássemos onde chegamos. Por isso, se para o outro eu trabalho demais, o problema não está no meu ritmo, mas no incômodo que a minha autonomia e o meu gerenciamento causam.

Se são 19h30 e eu ainda estou trabalhando, não é porque romantizo exaustão ou porque “não sei parar”. É porque, hoje, essa é a escolha que faz sentido para mim. Assim como pode haver dias em que encerro às 15h e vou ao centro comprar um pão artesanal, ou dias em que dormir até meio-dia será a decisão mais inteligente que posso tomar. A questão não é o horário, é quem decide. O tempo é uma fronteira, e estou aprendendo a erguer a minha.

Nesse sentido, o meu desejo é que saibamos, primeiro, administrar o que temos de mais precioso, que é o nosso tempo e o que fazemos com ele; segundo, que saibamos identificar a diferença entre cuidado e imposição de uma dinâmica que só funciona para alguns; e terceiro, que tenhamos coragem de sustentar o desconforto que vem quando escolhemos nos colocar no centro do nosso próprio tempo. E, sobretudo, que a gente aprenda a confiar que o nosso tempo, quando é nosso de verdade, não se perde, pois ele se transforma em algo que o relógio não mede: em consciência e pulsão de vida.

O tempo, para nós, não é apenas um recurso. É uma narrativa. É o registro vivo de como existimos, mesmo quando o mundo nos exige aceleração e automatização. Se para o outro a nossa maneira de gerenciar o tempo é um exagero, lembremos que o exagero também é forma de existir num mundo que sempre quis que a gente ocupasse menos espaço. Por isso é que a minha ambição é uma virtude, e ninguém poderá dizer o contrário. 

Gerenciar o seu tempo é conjurar o próprio destino e escolher conscientemente a si, mesmo sabendo que as nossas temporalidades fazem parte de uma lógica sistêmica que opera contra nós. Assim, defender o próprio tempo é se priorizar, e é nos colocando nesse topo da pirâmide que reencontramos o eixo das nossas satisfações.

E talvez a pergunta que realmente desconcerta seja outra: quem ganha quando não temos tempo? Porque alguém ganha. Quando o nosso tempo é ocupado por demandas invisíveis, alguém produz mais. Quando abrimos mão de descanso para cumprir expectativas, alguém se beneficia. E quando sentimos culpa por não dar conta de tudo, alguém segue confortável. Existe uma economia inteira sustentada pelo tempo que nós cedemos; por isso, quando escolhemos não ceder, não estamos apenas nos priorizando, estamos retirando combustível de um sistema que depende da nossa disponibilidade para continuar funcionando. Nesse sentido, tomar o próprio tempo não é um ato individual, é uma redistribuição de poder.

Artigo escrito por
Camila Fortes
Pesquisadora. Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde do ICICT/FIOCRUZ/RJ.