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Já fez seu chá revelação hoje?

Já fez seu chá revelação hoje?

Eu estava sobrecarregada. E com o dever de escrever a respeito da sobrecarga feminina para os encontros do +Elas. Na verdade, eu estava cega. Cega de cansaço, de raiva, e com um desejo profundo de acolher a inércia que clamava dentro de mim. Precisava parar, mas não dava. Não lembro da última vez que deu. 

Você pode vir amanhã? Você já falou com o médico da mamãe? Você dirigiria até aqui? Não posso ir, tudo bem você ir sozinha? Toma aqui o número do advogado. Só tem você pra ficar na internação. Uma terça-feira como qualquer outra: pressão externa e sobrecarga para a mulher da família que escolheu não ter filhos.

Parece que ao escolher não tê-los, ou não os tendo ainda, o cuidado de todas as outras funções da família compulsoriamente recaem sobre nós, sobretudo se fazemos parte de núcleos com questões persistentes a serem enfrentadas. E os trabalhos (sim, trabalhos no plural), e a vida acadêmica e os projetos autorais e a vida íntima e os cuidados com a própria saúde? Pra depois. 

Depois só pra mim, porque para os outros essas facetas podem ser facilmente esquecidas. Não ser mãe corrobora o entendimento de que estamos sempre à disposição, e de que ao não desempenharmos o “papel principal” incumbido às mulheres (a maternidade), não temos outras coisas para fazer senão gerenciar as broncas alheias. Ou melhor, de que sequer podemos escolher se queremos ou não assumir as responsabilidades da família. É goela abaixo.

Daí que se faz tão necessário, vez ou outra, promover o chá revelação de quem somos nós. Pode ser estrondoso, com fumaça colorida contagiando todo o recinto e anunciando em alto-falante que temos outras coisas para fazer, mas também pode ser em doses homeopáticas, de forma mais branda e atuando devagar no inconsciente, dizendo pequenos nãos que sim, vão doer, mas que aos poucos comunicarão os nossos limites e impossibilidades. (Talvez a primeira opção de chá signifique estouro e gritaria: não recomendo, apesar de, às vezes, ser o único jeito possível).

É claro que tem certos momentos da vida em que não há escolha. Teremos que fazer e ponto. Além de que cuidar dos outros e das coisas pode ser uma escolha devidamente consciente e feliz. Eu mesma escolho com alegria assumir determinados cuidados. Mas é preciso questionar se, ao impor que uma mulher que não tem filhos dedique sozinha boa parte da sua vida em função de outras pessoas, não estamos reforçando uma lógica de punição pelo desvio do caminho “tradicional” da maternagem, mais uma vez silenciando toda as dimensões pessoais e subjetivas de sua vida.

Por isso, falar de rede de apoio (por mais esvaziada que a palavra esteja) e das estruturas sociais que podem contribuir para amenizar a sobrecarga feminina - sendo mãe e não sendo mãe - é fundamental para reorganizar toda a economia do cuidado ainda designada às mulheres. As responsabilidades não deixarão de existir, mas se tivermos algo ou alguém pra chegar junto - seja o Estado, um grupo de amigas, uma instituição - fica muito mais fácil. E pra ter esse apoio, é preciso falar. É preciso impor os nossos limites e necessidades para que a co-participação aconteça, e para que o “não posso” ou “não quero” estejam livres de peso e culpa. Ninguém mais vai reivindicar pela nossa individualidade e direito de escolha a não ser nós mesmas. 

Na semana que passou, o meu chá revelou o gênero mulher exausta emp*tecida com o tanto de cobranças surreais em um mês notadamente caótico. Soltei fumaça pelos quatro cantos e usei o alto-falante para comunicar o nascimento de uma sobrecarga furiosa. Ganhei de presente ajuda temporária e me liberei para o final de semana. Vou decidir se durmo ou se compro carne pra churrasco. 

Artigo escrito por
Bianca Mafra
Bianca Mafra é líder de conteúdo na Casa do Saber+, roteirista de séries e podcasts, mestre pela Unicamp e criadora de projetos premiados em cultura.
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