Newsletters

Uma Funcionária Gentil no Tanque de Tubarões

Uma Funcionária Gentil no Tanque de Tubarões

Aparentemente sou uma profissional diplomática — é o que dois colegas me disseram, pelo menos. No sentido figurado, diplomacia é a “atitude que denota finura no trato com as pessoas”, uma conduta, acredito, inerente à gentileza. Pra mim, ser gentil é condição irredutível para a existência de relações sadias.

É bem satisfatório ser reconhecida como uma colega gentil, pois, no ambiente de trabalho, sei que faço minha parte. Busco desembaraçar situações com jogo de cintura, tateio os contornos antes de comunicar, me aproximo aos pouquinhos e cuido para não agudizar ruídos ou estremecer diferenças. 

Ajo deste jeito porque não consigo (ou até hoje não consegui) fazer muito diferente. A verdade é que, de vez em quando, eu adoraria levantar a voz para chefes que interrompem minha fala ou rebater colegas agressivos com grosserias à altura. Acontece que, pra mim, isso não é espontâneo. Me tiram de trouxa? Imagino que várias vezes. Mas é na gentileza que me sinto mais eu. 

E é com ela que me sinto mais confortável. Afinal, segundo um estudo de 2021, divulgado pela BBC Radio 4 e conduzido por pesquisadores da Universidade de Sussex, pessoas que realizam mais atos de gentileza apresentam, em média, níveis mais elevados de bem-estar. Também não surpreende que ser gentil reverbere positivamente na saúde psicoemocional de quem trabalha conosco. Dados divulgados pela Forbes em 2024 mostram que praticar gentileza ajuda a reduzir níveis de ansiedade e chances de burnout, além de aumentar a satisfação de nossos colegas com a vida, fortalecer as conexões pessoais e elevar a moral de nossa equipe. 

É claro que, na teoria, nossa sociedade deseja, celebra e evoca a gentileza como horizonte de conduta. É o que vimos e sempre soubemos: vive-se melhor praticando e recebendo gentileza. No entanto, minha impressão é que, na prática, ainda somos inábeis para reconhecer, valorizar e recompensar a gentileza, sobretudo quando ela se manifesta no ambiente profissional. Além disso, em uma sociedade que perpetua desigualdades e opressões de gênero, condicionando o respeito, a autoridade e o poder a um arquétipo de masculinidade que costuma antagonizar a gentileza, essa realidade afeta a vida das mulheres muito mais injustamente. 

Na minha história profissional, a gentileza sempre foi uma experiência ambígua. Por um lado, tive a sorte de resolver divergências de trabalho com conversas honestas, calmas, olho no olho. De contar com a generosidade de colegas em dias de “síndrome da impostora”. De postergar prazos e ter tempo pra respirar diante de chefes compreensivos. De não me levar tão a sério quando falhei, de rir de mim mesma ao lado de colegas que me apoiavam e torciam por mim. De tomar uma cerveja com quem me fazia sentir segura, conversando sobre incômodos após um dia qualquer de trabalho. Tive a sorte de ser respeitada e valorizada por ter sido nada além de quem sou, com todos os meus limites e defeitos. 

Em outras relações de trabalho, não tive sorte alguma. Decepcionei um documentarista “ortodoxo” ao sugerir uma ajuda de custo para um entrevistado em situação de vulnerabilidade social. Trabalhando como recepcionista em um evento, fui verbalmente agredida por um policial civil ao informá-lo de que sua entrada na área VIP não havia sido autorizada. Fui assediada por colegas jornalistas (homens, mais velhos e estrangeiros) que interpretaram minha solicitude como disponibilidade sexual. Minha voz foi interrompida por muitos colegas e superiores que falaram mais alto que eu. Fui frequentemente desautorizada pelo chefe “humanista” que dirigia meu trabalho.

Vi mulheres ao meu redor passando por situações semelhantes. Há alguns anos, uma amiga comentou que, toda vez que dirigia perguntas à sua antiga chefe, a líder a ignorava (detalhe: a chefe e a amiga sentavam à mesma mesa de trabalho, uma ao lado da outra). Na época de escola, parecia normal e até divertido desrespeitar as professoras “boazinhas” - matávamos suas aulas, dormíamos enquanto elas ensinavam e conversávamos em alto volume sem dar a mínima. 

Não são poucas as agressões contra a mulher gentil. Onde há gentileza, habituamo-nos a enxergar insuficiência: falta de competência, assertividade, firmeza, seriedade... Em uma sociedade que confunde autoridade com autoritarismo, como reconhecer autoridade em quem não impõe medo? O fardo da mulher gentil é convencer os outros (e as outras) de que é digna de ser respeitada - como funcionária, como líder, como colega.

Há mulheres que cedem, assumindo uma conduta “pulso firme” para conseguir sobreviver no tanque de tubarões com que se parecem alguns ambientes de trabalho. Difícil julgá-las. Alguns desses ambientes devem ser mesmo sufocantes, cruéis, muito mais do que consigo imaginar. Mesmo assim, quero apostar que as gentis desbancarão as autoritárias. As mulheres gentis são as que levo comigo, as que admiro e com quem aprendo.

Em tempos de modelos de poder e de produtividade adoecedores, deterioração de direitos trabalhistas, competitividade feroz e precarização da saúde mental, bancar a gentileza é ato de coragem e subversão. E, com muita delicadeza, mostraremos que é a saída mais digna. 

Artigo escrito por
Beatriz Miranda
Comunicadora social graduada pela UFRJ e PUC-Rio, Beatriz Miranda escreve sobre cultura brasileira e já colaborou com NYT, BBC, Estadão e outros.
Tags relacionadas