Era 2013 e alguém mencionou “Em Busca do Tempo Perdido”, clássico da literatura francesa, em uma conversa. Já desconheço o contexto daquela prosa e o paradeiro dos demais interlocutores, mas bem lembro que o enredo do livro de Proust soou atraente. Registrei na listinha mental “livros para ler”.
Doze anos se passaram, até hoje não o li. Continuo, veja a ironia, em busca de tempo para “Em Busca do Tempo Perdido” — obra de sete volumes que, agora, encontra-se atrás de “Um Defeito de Cor” e “Grande Sertão: Veredas” na ordem das minhas prioridades. A verdade é que, para obras cuja leitura estende-se em mais longa duração, já faz tempo que não encontro tempo.
Afinal, toda jornalista que se preze acompanha as notícias constantemente, mas já são 9:11, hora de desejar um dia agradável à equipe, ficar a postos para as demandas da chefe e terminar a matéria de hoje [corro ao banheiro para aplicar o protetor solar fator 80 que previne o envelhecimento precoce do meu rosto].
Meio-dia: Cozinhar a receita saudável da ‘nutri’ de 980 mil seguidores ou ir à academia ‘bater ponto’ no aplicativo de desafio fitness? Me apego à ilusão de que conciliaria os dois em um curto espaço de tempo.
Fim do expediente: Estendo as roupas antes que mofem dentro da máquina de lavar. Até que não está tarde, há tempo para praticar cavaquinho [faz meses que nem toco no instrumento], adiantar o ‘frila’ ou encontrar com as amizades [ouvi no podcast que é imprescindível para a saúde mental].
No entanto, resigno-me à plataforma de streaming e escolho algum reality de baixo estímulo intelectual, interrompendo sua exibição, é claro, por dispersivas visitas às redes sociais.
Desde que o trabalho (que garante meus meios de vida) e a fantasiosa empreitada para me tornar “minha melhor versão” (a mais saudável, a mais antenada, a mais jovem, a mais competente em um mundo de competitividade doentia) começaram a disputar o tempo que me diz respeito, muita coisa parece mais importante e mais conveniente do que a fruição cultural.
O tal do “tempo livre” torna-se cada vez mais escasso para tudo o que demanda estado de atenção, de presença, de espera. Mais escasso, também, para tudo aquilo que não gera utilidade, tampouco engajamento.
Falo de obras literárias como a de Proust, mas talvez do monólogo teatral de duas horas, do filme preto e branco dos anos 1940, dentre outras experiências artístico-culturais que não parecem regular com o tempo e o apelo do capitalismo digital.
Mesmo vinda de um contexto familiar que, profissional ou socialmente, nunca pertenceu à classe artística, cresci em uma condição socioeconômica suficientemente confortável para que, desde cedo, eu pudesse acessar cultura em muitas de suas linguagens e expressões. Porque pude acessá-las com frequência, me tornei quem sou. Me entristece constatar o tempo tão modesto que tenho dedicado à cultura - comparando ao tempo generoso que um dia a ela já dediquei.
Se o tempo à cultura tem escasseado na vida de uma mulher com considerável poder de escolha (além de tudo, não cuido nem sou financeiramente responsável por crianças ou idosos), a fruição cultural é muito menos viável quando vidas femininas são atravessadas por outras dimensões de desigualdade.
Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Cultura entre fevereiro e maio de 2024 mostrou que, enquanto 86% das mulheres da classe A do Rio de Janeiro foram ao cinema ao menos uma vez nos últimos 12 meses referentes ao período deste levantamento, somente 24% das cariocas das classes D e E conseguiram realizar esta atividade.
Além disso, 55% das cariocas sem filho(s) assistiram a pelo menos um show musical naquele último ano, mas, para aquelas que são mães, o número cai para 38%.
Com relação aos homens, entretanto, a desigualdade de acesso à cultura entre os que são pais e aqueles que não têm filho(s) cai vertiginosamente: 48% dos homens sem filho(s) e 44% dos que são pais assistiram a algum show musical naquele último ano.
Os dados reiteram o que já sabemos. Que tempo resta às mulheres - sobretudo às mais vulneráveis socioeconomicamente - quando cuidar é imperativo e a tripla jornada (cuidado + afazeres domésticos + trabalho remunerado) não é uma opção?
É verdade que a descentralização de equipamentos culturais públicos e as políticas de fomento à cultura ajudam a democratizar o acesso, mas, enquanto a realidade continuar a perpetrar e a entrelaçar desigualdades (de gênero, raça e classe), a corresponsabilidade do Estado na prática do cuidar é fundamental para que o tempo à cultura possa efetivamente existir na vida de mais mulheres.
Cultura, precisamos lembrar, é o imaterial que dá contorno à existência. Mais que um direito garantido pela constituição, a cultura transforma nossa interpretação de mundo, o modo como articulamos ideias e nos relacionamos, como operam nosso senso crítico, nosso senso de humor, nosso senso de humanidade. A cultura é onde nos encontramos para reverenciar a vida, seus mistérios, seu tempo finito.
Cansada, me conformo com a possibilidade (grande) de nunca ler “Em Busca do Tempo Perdido”. Mas é sexta-feira. Invento tempo para um convite fortuito em meio ao tempo que parece faltar. Coloco a to-do list em suspenso, sigo para um show em homenagem a Naná Vasconcelos com duas boas amigas que conheci em uma aula de dança. E que beleza de show.
Conteúdos que inspiraram a minha elaboração:
https://www.scielo.br/j/ref/a/X8NFPqwrPs9rtPK8gzkBRCR/
Revista Estudos Feministas. Artigo “Mulheres, trabalho e lazer no Brasil: entre tempos, gostos, desejos e a fruição de um direito” (2023)
Pesquisa “Cultura nas Capitais” (2024)
Aeon Magazine. “The Winter of Civilization” (2025)
Café Filosófico. “Desigualdades de gênero: cuidados e os usos do tempo” (2025)