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Ofício de dublê

Ofício de dublê

A missão da newsletter quinzenal parecia perfeitamente cabível. Se o texto sai na sexta, o bom plano é entregar com folga na quarta para dar tempo da revisão e diagramação, mirando na segunda ou na terça para que já tenha nascido. Pronto, basta priorizar. Ou melhor, sentar e escrever. Deve ser assim que funciona pra quem tem uma coluna ou newsletter fixa: celular longe, word aberto e boas dedadas no teclado que entregarão palavras encadeadas e domínio do assunto sem grandes esforços. Até que se abra o whatsapp web, o linkedin, o instagram e até o famigerado facebook. Eu abro, você não?

Se você não abre, ótimo. Talvez esse texto não seja pra você. Agora, se assim como eu, você também está servido de um cardápio imenso de distrações e, além de estar servido, é aderente a eles, acho que vai se identificar com as minhas reclamações auto penitentes que, na verdade, são só fruto do efeito cérebro derretido causado pela imposição do excesso de tecnologia. Duvido que sobrem muitos fora dessa. Se sobrarem, talvez a palavra certa não seja imposição, mas escolha. Dá pra escolher não ceder ao uso - e consequente vício - de tantas mídias?

Não tenho conseguido entregar os textos com antecedência. Em partes porque falta disponibilidade criativa, em partes por uma má gestão de tempo. E o que é má gestão de tempo e falta de disponibilidade criativa, senão o próprio tempo comido pelo uso distraído do instagram e redes adjacentes? A boa notícia é que nos entregaram a resolução desse problema de mão beijada, e agora criatividade e tempo são atributos altamente dispensáveis. É só adicionar uma nova aba no navegador, digitar ChatGPT e pedir com jeitinho aquele texto criativo e sagaz que você precisa entregar no prazo. A única recomendação é que sejamos simpáticos, ainda não se sabe quando as inteligências artificiais explodirão em guerra contra os humanos. Na dúvida, diga obrigada e por favor.

Ironias à parte, o novo mascote das telas parece ser ainda mais nocivo para nossas capacidades cognitivas do que qualquer rede social, e olha que o páreo é disputado. Em uma pesquisa realizada pelo MIT Media Lab, nos Estados Unidos, 54 estudantes foram divididos em três grupos para escrever redações durante 20 minutos: o primeiro grupo poderia usar inteligência artificial para redigir todo o texto, ao segundo estava permitido fazer pesquisas no Google, e o terceiro deveria escrever sem auxílio de nenhuma ferramenta. Com o uso de um eletroencefalograma, a pesquisa detectou que os jovens que utilizaram inteligência artificial apresentaram atividade cerebral praticamente nula e, ao serem solicitados para citar uma frase do texto que haviam acabado de escrever, 83% sequer conseguiram lembrar. 

Entendo que existam benefícios e otimizações importantes que as IAs entreguem, mas nesse texto não vou defendê-la; ainda quero me dedicar a proteger a inteligência sem atalhos. O que aconteceu com a dúvida de uma grafia? Como fazíamos para confirmar a concordância de uma frase? Sim, o texto hesitante toma mais tempo para ficar pronto, mas é justamente a busca e o confronto com o não saber que nos faz memorizar e aprender. Não estou dizendo que escrever seja fácil. É preciso ler, angariar repertório e ter uma intimidade com as palavras que não vem à luz em uma única e longa sentada na cadeira. Requer técnica, tempo, prática, inclusive para quem não vive do ofício. No entanto, ainda que se alegue não saber escrever, duvido que o texto de um humano não vá ter ao menos mais alma e identidade do que um escrito artificialmente. 

Voltando à pergunta de parágrafos atrás, é difícil não escolher encurtadores de caminho que dinamizam nossos trabalhos e equilibram pratos e prazos por nós. Mas se, então, escolhemos por essa versão curta e cheia de atalhos de nós mesmos, que fique claro tratar-se de dublês que, tal como no cinema, não precisam memorizar nada, dizer qualquer coisa relevante, nem se destacar por seus comportamentos erráticos. Estando ok e ciente desses termos, vida longa aos dublês. 


Quanto a mim, escrevendo me dou conta de que não conseguir entregar os textos a tempo deve ser um bom sinal (e de que a escrita continua uma excelente ferramenta de reflexão autorreferenciada). Estar atrasada, afinal, é um trunfo de quem não cedeu à facilidade de convocar o sósia artificial para entregar o trabalho. 

Artigo escrito por
Bianca Mafra
Bianca Mafra é líder de conteúdo na Casa do Saber+, roteirista de séries e podcasts, mestre pela Unicamp e criadora de projetos premiados em cultura.
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