O que acontece quando o espaço que deveria ser de liberdade e espontaneidade vira também um território de (auto)cobrança? As redes sociais, que nasceram como promessa de expressão pessoal, logo se transformaram em arenas onde gestos, imagens ou palavras podem ser interpretados como afirmação ou erro.
Para nós, mulheres, nesse jogo de aparências e percepções, até que ponto estamos realmente no controle da narrativa sobre nós mesmas, e até que ponto somos moldadas por olhares externos que nos classificam?
Já faz um tempo que esse universo se transformou em um complexo palco digital onde nós somos simultaneamente, artistas, espectadoras e, por vezes, juízas de nossas próprias performances.
Há um detalhe crucial que frequentemente escapa em discussões sobre essa dinâmica: não se trata apenas de como escolhemos nos apresentar, mas de como somos incessantemente traduzidas e avaliadas por uma lente que jamais é neutra. Cada like, cada comentário, cada métrica de engajamento carrega um peso de expectativa, uma sombra de julgamento que está longe de ser invisível.
Se olharmos com a devida atenção, é possível traçar um fio condutor que conecta as capas de revistas femininas dos anos 1990, repletas de ideais inatingíveis, aos vídeos virais e tendências do TikTok de hoje.
A forma mudou, a tecnologia evoluiu, mas a lógica subjacente permanece surpreendentemente similar: somos pressionadas a nos encaixar em um molde, em um padrão, em uma narrativa que, em sua maioria, não fomos nós quem desenhou. O paradoxo é gritante: a palavra "autenticidade" virou mantra, um valor supremo, intensamente capitalizado por marcas, influenciadores e pela própria cultura digital.
Na prática, ser autêntica online muitas vezes se traduz em uma performance meticulosa de uma versão de si mesma que aparenta uma espontaneidade. Uma performance que exige tanto cálculo, planejamento e edição quanto qualquer campanha publicitária bem-sucedida.
O sorriso "natural" que levou várias tentativas para ser capturado, a rotina de skincare "sem filtros" que esconde a maquiagem corretiva e a iluminação perfeita, a confissão "crua" sobre inseguranças que foi cuidadosamente editada para se adequar ao tempo de exibição do algoritmo – tudo é cuidadosamente curado. Parece que, quando tudo se torna conteúdo, até mesmo nossas fragilidades precisam ser embaladas em uma estética que seja agradável ao olhar do público digital.
Eu, particularmente, tenho uma dificuldade que beira o absurdo em postar qualquer coisa nas redes sociais. Essa paralisia não advém de uma falta de assunto, de ideias ou de experiências de vida; pelo contrário, é justamente o excesso, a multiplicidade de ângulos e a imensa pressão que me paralisa.
A sensação que tenho é que preciso estar sempre alerta, sempre conectada e pronta não apenas para consumir, mas, de forma ainda mais impactante, para ser consumida. Não há em mim uma necessidade de me fazer ser cronicamente online, mas há em algum lugar das profundezas emocionais que me atravessam, um receio de que se eu não postar, eu não serei percebida como uma referência naquilo que me mobiliza, sobretudo, profissionalmente.
Essa necessidade premente de estar online o tempo todo, de postar incessantemente cada passo, cada pensamento, cada evento do nosso dia, de sinalizar de forma contínua que estamos vivas, ativas e "relevantes" no universo digital, cobra um preço altíssimo. E a conta, de forma assustadora, é frequentemente quitada com a nossa saúde mental.
A ansiedade que precede cada postagem, o medo paralisante de ser julgada pelos algoritmos e pelos usuários, a comparação incessante com padrões de vida e beleza que se mostram cada vez mais irreais, a distorção progressiva e insidiosa da nossa autoimagem.
Tudo isso se aglutina, formando um coquetel perigoso que se torna um fator significativo de adoecimento psíquico feminino. Nesse sentido, se cada like é uma moeda de aprovação e cada comentário um julgamento silencioso, será que estamos construindo nossa autoestima ou apenas hipotecando essa nossa paz mental?
Um estudo apresentado pela Forbes Mulher revelou que mulheres tendem a receber menos engajamento do que homens quando compartilham conteúdos sobre suas carreiras nas redes sociais. Isso não é um mero detalhe estatístico; é um sintoma.
Enquanto celebramos os avanços na representatividade e na visibilidade feminina, os algoritmos, muitas vezes de forma sutil, continuam a demonstrar que existem esferas onde a voz feminina ainda é menos ouvida, menos celebrada e, consequentemente, menos amplificada.
Podemos rotular isso como um viés inconsciente, mas a realidade é que o ambiente digital, em sua essência, apenas espelha – e, infelizmente, amplifica – as desigualdades históricas que moldam a sociedade.
A exposição digital, por mais que pareça libertadora, tem um custo pessoal imensurável. A mulher que se expressa com veemência demais é frequentemente atacada por sua assertividade; a que se expressa com menos intensidade é simplesmente ignorada. Aquela que decide expor seu corpo é imediatamente acusada de vulgaridade ou de busca por atenção barata; a que opta por cobri-lo é tachada de apagada, sem personalidade ou insegura. A mulher que se expõe em demasia é criticada por sua falta de limites; a que se esconde demais é simplesmente esquecida, marginalizada.
Seja com uma estética que beira o absurdo com elementos maximalistas e nada ergonômicos, ou com a rotina de um Get Ready With Me de uma mãe de quádruplos, não existe uma posição segura, um ponto de equilíbrio online que agrade a todos.
Não é curioso? As redes sociais nos cobram veementemente para sermos "de verdade", para sermos autênticas, mas apenas dentro de limites muito específicos, restritos àquilo que é considerado palatável, esteticamente agradável e, acima de tudo, consumível.
Lidar com a vida real dentro dessa arena é um exercício constante de negociação entre o que queremos mostrar e o que podemos mostrar sem sermos punidas ou atacadas. E é justamente essa negociação constante que muda a forma como nos relacionamos com as redes sociais, pois aprendemos a vigiar cada postagem, cada comentário, cada detalhe do que mostramos, antecipando reações, calculando riscos e ajustando imagens e palavras para minimizar críticas ou rejeição. E foi assim que passamos a operar dentro de uma lógica de sobrevivência digital.
A consequência é que nosso olhar sobre nós mesmas também muda. Começamos a medir nossas próprias experiências, emoções e comportamentos com base em como serão recebidos, aprovados ou consumidos.
Sentimos que precisamos performar não apenas para os outros, mas para o algoritmo, para os padrões implícitos de engajamento, para um público invisível que julga e categoriza desde a sua nova vaga de emprego até a sua playlist mais recente e o móvel da sua sala. Por isso é que a liberdade digital revela uma ilusão parcial: estar presente é inevitável, mas estar segura é quase impossível.
A pergunta que se impõe, então, não é apenas sobre como navegar nesse espaço digital, mas como preservar a nossa identidade e a saúde mental enquanto a gente se movimenta nele.
Se não há fórmula que garanta likes sem comprometer a integridade emocional, como podemos resgatar uma relação mais saudável e, acima de tudo, autêntica com esse universo digital que se tornou tão intrinsecamente ligado às nossas vidas?
É crucial reconhecer que a ideia de um "detox de internet" ou de redes sociais, embora sedutora e praticável para alguns, não é uma solução universalmente aplicável ou realista para a maioria.
Não podemos simplesmente desconectar e esperar que os problemas estruturais e psicológicos se dissipem, não para quem depende do online para trabalho, conexões, suporte, informação, engajamento.
Desconectar-se pode significar perda de oportunidades, afastamento de redes de apoio e de vozes importantes, então a solução não está em fugir, mas em tomar posse daquilo que podemos controlar, em decidir com discernimento, em estabelecer limites, em silenciar a comparação, em escolher o que consumir, o que postar, o que exibir e o que manter fora da mira.
A realidade curada é uma fantasia, sabemos. A vida real é feita de luz e sombra, vitórias e tropeços, conquistas e fracassos, e navegar entre exposição e proteção, visibilidade e intimidade, influência e autonomia não é simples, mas é uma oportunidade rara de resgatar nossa dimensão ética e psicológica, de recuperar autonomia, de criar espaço para autenticidade genuína, de transformar a presença digital em território de escolha e poder real.
Ninguém vai nos salvar da tela, pois não existe filtro milagroso e nem algoritmo que nos liberte. Assim, a questão que sobra, afiada e urgente, é esta: o que resta quando desligamos o ruído digital e o feed para de girar? O que irá sobrar quando o espelho das redes parar de refletir expectativas alheias e nos confrontar apenas com nós mesmas?
O que será que cada uma de nós irá encontrar?
Camila Fortes Franklin
Redatora | Casa do Saber