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Terceiros Turnos | Cá entre nós

Terceiros Turnos | Cá entre nós

De vez em quando eu me lembrava que minha mãe não era só minha mãe. Lá pelos sete ou oito anos era praticamente impossível reconhecer que naquela mulher existiam outras vidas que não dedicadas a cuidar de mim e das minhas irmãs, mas de vez em quando uns lampejos me ajudavam, como na vez em que fui deixada à espera dentro do carro enquanto num pulo ela resolveria a incógnita do jantar no mercado da esquina. Nem tive escolha, não lembro de ter ficado indignada com o trancafio - cena normal de qualquer criança dos anos 90 -, mas sim com a agora inédita mulher que sabia correr pra escapar da chuva e voltar logo ao carro:

- Você sabe correr!?

Ela riu e deve ter respondido alguma coisa como “e você achou que eu fazia o que?” enquanto cumpria a promessa do pulo e jogava as sacolas no banco de trás. Eu já sabia que trabalhava, que cuidava das filhas, que era irmã e filha presente, sabia até que tinha boas amizades e as encontrava em momentos só de adultos, mas não que podia correr. Que usava seu corpo, que saía na chuva, que se molhava, que se virava e corria como as crianças, que já foi criança. Um dos muitos momentos em que viveria o luto de saber que minha mãe não era só uma mãe.

Descobrir que elas não exercem só um papel é também lidar com suas existências mais profundas e mundanas, como mulheres que também têm desejos, amores platônicos, medos, sonhos. Mas é, ainda, atestar que muito do que fazem não tem origem só no que escolheram, mas naquilo que foi preciso - muitas vezes imposto - fazer.

É claro que escrever sobre mulheres e para mulheres faz conectar com aquelas que são a origem de tudo, especialmente se a premissa do texto é falar sobre as jornadas triplas que acometem a vida de tantas de nós. Poderia falar da eterna tríade de cuidados entre filhos-casa-trabalho, ou das dedicações entre trabalho1-trabalho2-trabalho3, ou filhos-casa-pais, casamento-filhos-casa e um etcétera generoso de tantas outras combinações que colocam tudo no balaio do serviço. São muitos os turnos que exigem nossa atenção e responsabilidade e, apesar de sabida a relação direta com nossas histórias sociais e coletivas, no fim são as experiências individuais que vão ditar quais são os pontos que vamos bater.

Hoje o terceiro turno da minha mãe é a trabalheira que tem com o câncer. Não contra, mas com. Administra sua vida para domar as células exigentes enquanto trabalha, cria um filho temporão, põe o feijão de molho, é avó de duas nenéns, tem opinião sobre as coisas, tia-mãe de quinze, leva multa, irmã-mãe de oito, esquece de tirar a roupa da máquina, faz exercício físico e fala umas besteiras que às vezes rio, às vezes tenho vergonha. Sou filha, afinal.

E, como boa filha, me valho ao direito de vez ou outra ainda enxergá-la com as lentes infantis da minha existência. “Tá tudo bem, filha", “Não preciso de nada”, “Faz suas coisas”. Como também sou cuidadora, não é sempre que caio nessa armadilha. A bem da verdade é que me falta sossego. Mas às vezes preciso, ao menos por algumas horas, lembrar que esse não é o meu único papel, nem a doença o único dela. De repente recebo sua foto num samba, cinema, aniversário, dando um trato na casa. Tudo pra me tranquilizar e estimular a encarar meus outros turnos, assim como ela.

Insisto no que disse sobre aquilo que nos escolhe em detrimento àquilo que escolhemos. Poderíamos ter um turno e voltar pra casa e, em casa, descansar. Janta pronta, cozinha limpa, crianças de lição feita. Dividir os cuidados, receber melhor, não silenciar a dor, compartilhar a solidão. Não romantizemos as triplas jornadas, ninguém quer batalha constante, nem travar guerra entre o bem e o mal, homens versus mulheres, quem tem mais tarefa contra quem tem menos. Trata-se de encontrar esteio e estrutura para enfrentar o que precisa ser enfrentado e, ao mesmo tempo, viver aquilo o que queremos. Ser também - e sobretudo - o que não nos é imperativo. Como diria Gabriela, grande amiga da infância, “não tem Bianca pra cuidar se não tem Bianca". Substituam por seus nomes e verão a mágica.

Como disse, ainda não me livrei das miragens da mãe imaculada que completa com sucesso a jornada da heroína. Normal, eu acho. Talvez nunca nos livremos. A diferença é que agora sei que pode correr, não só como quem precisa resolver o jantar, mas como eterna criança que brinca e aproveita a chuva. Eu vou junto.

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