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Quantas toneladas pesa um “Não” de uma mulher?

Quantas toneladas pesa um “Não” de uma mulher?
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Eu costumo fazer aula de conversação em inglês durante o meu intervalo de almoço, e hoje não foi diferente. Não havia nada em específico que eu quisesse compartilhar com Nathália, minha professora, mas ela entrou na sala virtual muito animada, e disse: “eu tenho um vídeo para te mostrar, e depois a gente conversa sobre ele”. O título do vídeo era: “Como proteger o meu tempo?”.

Quando eu vi, confesso que pensei o que aquela mulher estava querendo me dizer com tantos rodeios, a ponto de quase automaticamente eu lembrar da minha psicanalista que dava voltas e voltas para concluir um pensamento. De toda forma, resolvi baixar a guarda e aceitar o exercício de reflexão na minha segunda língua.

O vídeo contava sobre como precisamos encontrar formas de criar novas culturas de respeito ao tempo. Conta, também, que deveríamos marcar nos calendários os nossos compromissos pessoais e não apenas profissionais, como, por exemplo, “Domingo, 9h30: ir à praia” ou “Sexta, 21h: Assistir filme e fazer unhas no sofá”.

Na tentativa de incorporar essa perspectiva na minha vida, pensei sobre como eu protejo meu tempo. Após longos anos, aprendi a hora de fechar o computador, de soltar o celular ao deitar na cama ou durante as refeições, de não pegar no tablet assim que acordo, entre tantos outros caminhos que funcionaram para mim. Porém, percebi que o que mais salva o meu tempo é quando coloco em prática a minha capacidade de falar “não”.

Não posso negar: eu amo dizer “sim” para as coisas, especialmente quando se trata de propostas de trabalho. Para quem já viveu na escassez em algum momento da vida, negar trabalho é quase um crime hediondo. Parece que se você recusa, está desperdiçando oportunidades ou até sendo desleal com quem confiou em você.

O problema é que tenho sentido o impacto dessas sequências de “sim” no meu dia a dia, nas minhas relações e no meu corpo. Quando eu dizia esses “sim’s” desenfreados, parecia que um trator passava por cima de mim todos os dias, sem que houvesse sono reparador que desse conta.

Depois de um tempo, precisei refazer a rota e filtrar o que realmente me interessava e o que cabia ainda — ou não — nos meus propósitos de vida. Passei a observar os meus padrões de comportamento quando digo um “sim” sem vontade e a tentar não me sentir mal com eles.

Sabe aquela situação em que alguém pede algo de nós, seja no trabalho, na família, entre amigos, e a resposta que vem quase automática é um “claro, pode deixar”? Parece que engolimos o “não” que queríamos tanto soltar, como quem engole uma pedra, pesado, áspero, sabendo que vai incomodar depois. Mas ainda assim ele fica preso, porque aprendemos cedo demais que recusar é arriscado, que dizer “não” pode ser lido como falha, como ingratidão, como desapontamento.

Muitas vezes, o medo que nos cala não é apenas de desagradar o outro, mas de perder algo que achamos indispensável: aprovação. Existe uma fome silenciosa de sermos vistas como competentes, confiáveis, indispensáveis. E essa fome não nasceu do nada, foi plantada em nós em pequenos gestos, em elogios condicionados à obediência, em olhares de reprovação quando ousávamos escolher diferente.

Crescemos acreditando que o “sim” era um passe para sermos amadas e reconhecidas, e que o “não” poderia nos colocar na gaveta das pessoas difíceis, amargas, ou daquelas que “não dão conta”. É assim que se instala uma confusão profunda: em vez de enxergarmos o “não” como limite saudável e como resposta pronta, passamos a associá-lo a inadequação, quase como se recusar fosse admitir fracasso.

O resultado é um esforço constante para atender a tudo e a todos, mesmo quando isso significa ultrapassar nossos próprios limites e adoecer. O perfeccionismo entra sorrateiro, travestido de virtude, nos convencendo de que só seremos dignas se formos impecáveis. Impecáveis no trabalho, na casa, no cuidado com os outros, na postura, no humor, na disponibilidade.

Nesse mesmo caminho, há uma cobrança invisível, mas incessante, para que sejamos sempre mais: mais produtivas, mais presentes, mais generosas, mais fortes, mais bonitas, mais simpáticas, mais silenciosas, mais amáveis, mais dóceis e por aí vai.

Geralmente essa cobrança vem de fora, mas pode acontecer, com uma certa frequência, de ser uma voz interna que fala mais alto, ecoando como um juiz impiedoso, lembrando-nos do que não fizemos, do que poderíamos ter feito melhor, do que não foi suficiente.

Essa autocobrança exagerada cria um terreno fértil para ansiedade, culpa e esgotamento. Porque nunca basta e parece que nunca bastará. Mesmo quando cumprimos tudo que estava na lista, ainda sobra a sensação de que poderíamos ter feito mais, de que deixamos algo escapar, de que decepcionamos alguém.

É um jogo cruel, porque a meta se move o tempo todo, e a perfeição que buscamos não existe. Mas ainda assim insistimos, porque desacelerar, parar ou recusar parece arriscado demais. Parece egoísmo e parece também que você pode perder tudo a qualquer momento. É uma bomba-relógio. A catástrofe está dentro da nossa cabeça o tempo inteiro, prestes a implodir enquanto sorrimos no 1:1 com o chefe.

E aqui entra um ponto delicado: a culpa. Ela é quase como uma sombra que nos acompanha de perto, pronta para aparecer sempre que ousamos dizer “não”. Quando alguém diz que “ela é tão prestativa, está sempre lá para todos”, raramente questionamos o custo desse elogio.

Mas quando uma mulher decide colocar um limite, quando afirma que não pode ou não quer, a reação costuma vir carregada de espanto: “mas como assim ela não pode? E porquê não pode?”. Essa reação revela como a culpa é também uma ferramenta social, um mecanismo que nos mantém em papéis de doação infinita, em posições de disponibilidade sem fim.

Não é à toa que tantas de nós sentimos quase uma obrigação de justificar cada “não” que ousamos dizer. É como se precisássemos apresentar um atestado válido para provar que nossa recusa não é falta de amor, não é preguiça, não é indiferença. Como se o simples fato de estarmos cansadas, sobrecarregadas ou apenas sem vontade não fosse suficiente, esquecendo que o “não” é uma resposta completa. Esse movimento constante de explicar e justificar mina nossa energia, porque nos coloca sempre na defensiva, como se estivéssemos devendo algo ao mundo por simplesmente termos limites.

O que raramente nos lembram é que limites não são muros de afastamento, mas fronteiras de cuidado. Essa também é uma forma de zelar pelas nossas relações com o outro e consigo mesmo, pois são linhas que desenhamos para não nos perdermos de nós mesmas. Quando dizemos “não”, estamos apenas reconhecendo que também temos necessidades, que também precisamos de espaço para respirar, descansar, existir. E aprender a dizer “não” é um caminho sem volta, é impressionante.

Descobrimos que o mundo não desmorona porque recusamos um convite, que as pessoas continuam a nos amar mesmo quando não estamos sempre disponíveis (ou pelo menos, deveriam!), que o trabalho não deixa de reconhecer nosso valor porque estabelecemos prioridades.

Descobrimos também que os vínculos que realmente importam se fortalecem, porque passam a ser alimentados por presença verdadeira, e não por obrigação. Existe um alívio em perceber que não precisamos estar em todos os lugares, em todas as horas, para sermos dignas de amor ou respeito. E existe uma paz em simplesmente aceitar que não vai dar ou que eu só não quero.

Quando penso nisso, lembro de tantas vezes em que meu corpo me avisou antes da minha mente: a exaustão que me derrubava, o sono que não vinha, a irritação que crescia sem motivo aparente. Eram sinais visíveis de que eu havia dito “sim” vezes demais, de que estava esgotando reservas que não tinha. E hoje percebo que, se tivesse aprendido mais cedo a respeitar meus limites, teria poupado muito desgaste e… tempo.

Quando dizemos “não” para coisas que não nos cabem mais, estamos dizendo “sim” para o que queremos pra nós. Reconhecer isso é um passo rumo à gentileza e ao amor próprio, porque nos devolve a possibilidade de olhar para si como prioridade.

Sei que não é simples, e que por vezes ainda vamos escorregar, ainda vamos aceitar mais do que podemos, ainda vamos nos culpar por dizer “não”. Mas vale lembrar que cada vez que ousamos nos escutar antes de responder, cada vez que escolhemos nossa verdade em vez da expectativa alheia, abrimos espaço para uma vida mais leve e mais honesta.

E talvez seja justamente isso que precisamos lembrar, cá entre nós: não existe amor verdadeiro sem a leveza de um “não”, assim como não existe cuidado genuíno sem limites. Não existe presença inteira sem espaço para respirar.

O “não” que tanto tememos é, na verdade, um caminho de preservação, de integridade, de respeito. Um caminho que nos permite continuar, não como salvadora do mundo, mas como mulheres inteiras, capazes de dizer “sim” quando quisermos, e não quando precisarmos.

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Camila Fortes Franklin

Redatora | Casa do Saber

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