Eu estava no Aeroporto de Recife, após uma semana de viagem de trabalho intensa, quando uma amiga me mandou uma mensagem para desabafar sobre um homem que ela está se envolvendo e que, em um impulso (palavras dela) na última conversa deles, ela disse que gostava dele.
Ele, meio sem graça, após os longos 5 minutos de declaração de afeto da parte dela, respondeu com um: “eu também gosto de você, viu?” (tapinha no braço). Uma resposta vazia, demorada, atrasada, frustrante para quem ouve. Eu escutei essa história e senti raiva. Minha amiga, uma das pessoas mais potentes que conheço, se conformando com uma resposta dessa e, inclusive, achando positiva.
Fiquei alguns minutos digerindo essa história, quando lembrei que dias antes, uma outra amiga havia me mandado uma mensagem para me perguntar se eu conhecia um sujeito acolá, e eu apenas esqueci de responder. Aproveitei a oportunidade de reflexão sobre relacionamentos em que eu me encontrava, e decidi ouvir seus áudios e respondê-la enquanto aguardava meu voo de volta para casa.
Naqueles 4 áudios de 3 minutos cada, ela me conta sobre como ela está tentando superar um término de um quase-algo, pois este homem em questão não a vê como alguém para ter do lado. Nas palavras dele, ele é muito “do mato”, e não saberia estar confortável com os amigos e familiares dela, e que por isso, não haveria perspectivas de um continuum.
Ela, uma mulher gorda, me conta que de todas as vezes que eles se encontraram, apenas uma vez foi publicamente. Mais uma vez, quando terminei de ouvir essa história de terror, senti raiva.
Para tentar tirar um pouco a cabeça dessas situações em que a minha única reação possível é respirar fundo e continuar acolhendo quem confiou a história a mim, decidi enviar uma mensagem à outra amiga e saber como ela estava.
Eu já estava em pé na fila para embarcar, quando ela me responde contando uma situação que vinha acontecendo com ela, e desabafando sobre como a confiança se torna outra coisa quando ela é quebrada, e contando sobre como é difícil reestabelecer essa confiança em quem escolhemos ter como parceiro(a/e) após episódios de grande decepção. Eu ouvi a história, li os prints, acompanhei os áudios e senti raiva.
Nesse momento, nada parecia tirar o gosto ruim da frustração alheia da minha boca. O estresse de uma semana caótica fora de casa, o cansaço físico e mental em que eu me encontrava, somada à fome, à falta de cafeína e a raiva que me consumia, me fez parar pra pensar em todas as vezes em que eu não escutei esse sentimento que diz tanto; em todas as vezes em que, para não deixar o outro com raiva, negociei o meu “não” para evitar gerar mal-estar; e em todas as vezes em que a minha raiva foi considerada exagero e reduzida a estresse profissional.
Se assim fosse, eu não teria raiva nas minhas férias, quando a incompetência de alguém me faz perder tempo consertando algo que a pessoa poderia ter resolvido se tivesse pesquisado na internet ou sido um pouco mais proativa.
Se assim fosse, eu não teria raiva quando estou indo ao supermercado fazer as compras da semana, e algum homem me assedia na rua. Se assim fosse, eu não teria raiva quando sinto que, mesmo sem querer, preciso ser o suporte emocional de algum homem do meu convívio que parece – mas não é! – não saber lidar com as próprias inseguranças e insatisfações, e despeja sua falsa incapacidade de assumir uma posição de protagonista sobre a própria vida, pois sabe que alguma mulher o fará. Se assim fosse, eu não sentiria tanta raiva quando percebo os olhares e os comentários xenofóbicos vindo de uma conversa despretensiosa em uma mesa de bar no Sudeste; ou não ficaria tão indignada quando me perguntam quando irei casar e ter filhos.
Quem dera a minha raiva estivesse limitada ao estresse no trabalho, pois fechar o computador me permitiria setorializar todas essas emoções e viver em um mar de bençãos em que após às 19 horas, só caberia satisfação, risada alta e um besteirol misândrico qualquer para me entreter. Mas não, não temos como guardar a raiva no bolso quando o nosso contexto nos adoece diariamente, e insiste em nos dizer que o mundo não foi feito para nós.
Ocultar essa raiva, além de adoecer, faz a gente engolir os não’s que gostaríamos de dar; faz a gente ceder quando não conseguimos corresponder ou quando simplesmente não queremos oferecer; e faz a gente se amargurar com a vida, pois uma vida sem estresse, dor, decepção e raiva é uma vida que não acontece. Como diz a frase célebre: “isso acontece nas melhores famílias”, e nenhum de nós está isento desse sentimento.
No entanto, para nós, mulheres, a raiva nunca foi apenas um sentimento de amargura ou decepção a partir das expectativas que criamos, pelo contrário, ela se tornou mobilizadora de vida desde que passamos a nos entender como sujeitas no mundo. Achar que deveríamos viver e agir integralmente satisfeitas e plenas é uma falácia masculina, branca e heteronormativa para nos explorar em sua totalidade, tal qual bezerros desgarrados implorando por um peito, sugando toda a nossa energia vital. Limitar exclusivamente a raiva que sentimos ao trabalho, a uma TPM, desregulação hormonal, a um signo, constelação familiar ou qualquer outro elemento astrológico, ou mesmo a um diagnóstico psiquiátrico, é dar um nome irreal para o que nos adoece diariamente, gota a gota.
Na obra “Olho no Olho: Mulheres negras, raiva e identidade” (2018), Audre Lorde descreve a sua raiva de mulher negra como um lago de lava dentro de si. Para ela, a raiva é um “fio elétrico entremeado em cada tapeçaria emocional, uma fonte quente e borbulhante capaz de entrar em erupção a qualquer momento, irrompendo a consciência como um incêndio na paisagem” (p. 50).
A escritora finaliza esse pensamento pontuando que adestrar a raiva havia sido uma das tarefas mais importantes da sua vida, e foi exatamente desse trecho que lembrei quando me vi com aquele gosto ruim na boca.
O gosto de quem ainda está aprendendo a domar uma fera bestializada que evoca, ao mesmo tempo, o melhor e o pior de mim; que me mobiliza para o próximo passo, porque não posso me dar o luxo de parar; e que transforma tudo que atinge a mim e aos meus, em um senso de justiça avassalador.
Assim, esse sentimento tão complexo que opera em nossas vidas de formas tão particulares, surge para nos dizer o que muitas vezes recusamos reconhecer, que é o de viver – em nossas micro e macro realidades – em um contexto explorador, violento, perturbador e, principalmente, feito para nos adoecer.
Isso significa dizer que, na maioria das vezes, a nossa raiva é mais uma reação do que uma ação e, que nada tem relação com o ódio, como destaca Lorde (2019). É justamente no caminho contrário: reagimos com raiva diante o ódio do outro sobre nós. Por isso, pode até ser ótimo viver sem sentir raiva, mas é sabendo que renunciar a ela seria equivalente a abrir mão de nós mesmas.
Em uma fração de tempo de 2 horas, ouvir três amigas que nem se conhecem compartilharem um sentimento de frustração comum entre elas, é um grito de socorro pela raiva.
Não por elas terem sido traídas, preteridas ou magoadas por alguém, porque isso também faz parte da vida, mas pelo direito de sentir raiva ter sido tão abafado a ponto de se tornar apenas uma faísca. Se para mim ela serve como fogo, uma chama em sua potência máxima de combustão, é nessa fúria que farei a minha morada diária, colocando à frente do meu passo um rastro de fogo-e-raiva que abre caminhos.
Então, se eu tiver que escolher entre a raiva do outro e a minha, eu escolho a minha, pois sempre haverá caminho para transformar esse fogo em ação, e organizar a raiva, no fim das contas, é um modo de sobrevivência.