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Entre símbolos, sonhos e arquétipos: 150 anos de Jung

Entre símbolos, sonhos e arquétipos: 150 anos de Jung

Caríssimo Dr. Jung,

Recebi a incumbência de escrever um texto em comemoração aos 150 anos do seu nascimento em 26 de julho. Mas, quando me lancei à tarefa, tive uma vontade irresistível de lhe escrever para dar notícias de como as coisas estão desde que você partiu em 6 de junho de 1961.

Me perdoe o tom mais íntimo. Tomei a liberdade porque, afinal, o conheço desde os meus 14 anos, e depois de ler sua autobiografia incontáveis vezes, não há como não nos sentirmos próximos. Falo por mim e por muitos amigos, colegas e admiradores seus.

Aliás, dá para compreender o motivo pelo qual só autorizou a publicação desse livro após a sua partida. Sabia muito bem que iria causar certa comoção. Mas achei muito elegante escolher não falar tanto da vida alheia e sim da sua vida profunda, o título Memórias, Sonhos e Reflexões é bem adequado. Meus capítulos preferidos são: “Infância”, “Sobre a vida após a morte” e “Últimos pensamentos”.

Caso ainda não saiba, escreveram outras biografias suas, todas as vezes que as li imaginei o que você pensaria a respeito, algumas são bem duvidosas e se não te conhecesse bem ficaria com uma impressão bem errada. A minha preferida é a de Deirdre Bair, mas olha, ela fala de tudo viu, até do que você preferia deixar quieto... Vida de celebridade é isso, falar de você hoje em dia vende bem viu.

Quem diria que tantas pessoas um dia iriam querer saber os mínimos detalhes da vida de um menino nascido de uma família simples no interior da Suíça em 1875! De certa forma imagino até que não ache isso de todo ruim. Já o vejo sorrindo de canto, mesmo sem o cachimbo, que obviamente não pôde levar. O lado bom é que finalmente parou de fumar, hoje em dia todo mundo sabe o mal que faz.

Quero aproveitar a oportunidade para agradecer por outro livro, esse derradeiro empreendimento dedicado ao público em geral tem auxiliado bastante. Quando alguém quer começar a estudar seu legado, dizemos logo: "Leia ‘O Homem e seus Símbolos’"! Na verdade, também indicamos muito as Conferências de Tavistock, palestras ótimas e bem fluidas, tanto que foi publicada como um livrinho de nome Fundamentos de psicologia analítica.

Dá para perceber o quanto estava francamente preocupado com a pouca capacidade dos seus colegas médicos de compreenderem o que você pensava essa sempre foi uma constante, afinal. Mas convenhamos que a sua erudição era para poucos. Às vezes me pergunto por que você não escrevia sempre como falava...

Entendo que a riqueza do seu método mandálico de circum-ambulação tanto na escrita quanto na interpretação de sonhos faz todo o sentido, porém precisa concordar que é preciso já o conhecer um pouco melhor para ler com mais desenvoltura as Obras completas.

Nós, ao redor do globo, que te estudamos para valer, e assumimos a tarefa de também ensinar, estamos fazendo o possível para deixar seus pensamentos mais acessíveis sem perder a profundidade. Meus alunos conhecem bem meu lema: Acessível sempre, raso nunca. Acho que você apoiaria.

Falando da sua vasta produção, tenho uma pergunta muito franca, que não é só minha: Você dormia quantas horas? Olha, meu dia não parece ser tão longo quanto eram os seus, e falo isso ciente do enorme suporte que D. Emma dava, fazendo tudo funcionar. Estou estudando há mais de 35 anos e não para de aparecer livro novo de sua autoria! Toda hora alguma coisa salta das recônditas e empoeiradas escrivaninhas de seus mais fiéis seguidores, que anotaram com esmero suas conferências e palestras. Sonu Shamdasani não deixa passar nem guardanapo com anotações da época. Impressionante.

Aliás, espero que não tenha se chateado muito por andarem mexendo tanto nas suas coisas, confesso que adoramos ler algumas das suas cartas. Mas principalmente espero que não esteja muito aborrecido por publicarem os Livros Vermelhos e os Livros Negros. Sabemos que são assuntos muito íntimos, do seu processo de individuação, e que você preferiu deixar reservados apenas aos mais próximos.

Mas veja bem, estávamos precisando deles. Foi um elo importantíssimo para que compreendêssemos, afinal de contas, sua jornada interior e as bases da construção do seu pensamento. Sei que um dos motivos de não querer divulgar o Liber Novus, além da intimidade, era o risco de ser classificado como artista, esvaziando o foco do valor psicológico experimental do empreendimento. Mas com todo respeito, nós achamos as imagens lindíssimas! E não falo só pelos estudiosos da psicologia analítica. Porém não se preocupe, hoje as pessoas têm mais condições de entender o que está nele, e nós procuramos explicar da melhor maneira possível.

Você ficaria surpreso se soubesse o quanto os termos que definiu e lutou tanto para explicar agora são populares. É difícil alguém que não tenha ouvido falar de inconsciente coletivo, introversão, extroversão, arquétipo, etc. E, pasme! O interesse pela alquimia também se alastrou como pólvora.

Infelizmente, tenho que dizer que, em grande parte, é um interesse superficial, de gente que sequer leu seus livros e sai falando o que dá na telha com mais curiosidade que interesse genuíno. Sei que não é fácil ouvir isso, melhor se sentar, mas tem gente “ensinando” a chamar arquétipo para incorporar como se fosse entidade, enquanto alguns dizem que são apenas 12, uma lástima!

Você justo disse que a gênese dos arquétipos é serem incontáveis e dominarem a psique ao invés de serem chamados. Outro conceito bem popular é Tipos psicológicos. O pessoal anda classificando todo mundo com questionários simplórios, cujo resultado é enquadrado em suas categorias de modo muito duvidoso com a garantia de ser a máxima definição de uma personalidade.

Eu sei que você disse o oposto, mas essa é a situação atual, as pessoas querem autoconhecimento ultraprocessado pronto para consumo. Lembro muito de sua citação de Bismarck a respeito desses "apoiadores": "Deus me ajude com meus amigos, que dos meus inimigos posso dar conta sozinho." Me permita uma dica: se quiser alguém para conversar a respeito desse assunto, chame o Zygmunt Bauman; isso acontece muito com ele também. Mas, se serve de ânimo, o que diz respeito a símbolos, mitos e sonhos, as coisas andam mais animadoras.

Falando em Zygmunt, lembrei do Sigmund. Como está o Dr. Freud? Voltaram a se falar? Assim espero! Por conta das pendências que deixaram, freudianos e junguianos ainda não se entenderam muito bem, às vezes parecem torcida organizada de time de futebol. Mas nem todos são assim. Eu particularmente não gosto dessa situação e faço questão de ter amigos freudianos que por sua vez também gostam de junguianos.

Se as pessoas entendessem que a diferença que nos diz respeito é paradigmática, e que não deveríamos levar para o pessoal da forma que vocês dois fizeram, auxiliaria bastante. Bom, já que estamos falando da situação, preciso dizer em que pé está a questão de algumas pessoas ainda se referirem a você como o aluno rebelde de Freud.

As coisas já melhoraram muito, mas ainda tem gente que por desconhecimento, ou birra, entende seu trabalho como apenas uma derivação da psicanálise clássica. Essas coisas não são fáceis de esclarecer. Faço todo o possível para, sem diminuir a relevância dos anos que passaram juntos, mostrar que afinal você viveu 85 anos e Freud 83. Foram apenas 6 anos de parceria e as pessoas só lembram disso!

Explico sempre que você já tinha uma imensa bagagem filosófica e médica a respeito do inconsciente e até do inconsciente coletivo, que é inspirado em C. G. Carus e Eduard von Hartmann, dentre outros, e que sua clínica foi muito influenciada por Bleuler durante os anos que passou no hospital psiquiátrico Burghölzli, para só então entrar em contato com a obra de Freud.

Não sei quanto tempo mais eu vou precisar repetir isso e ainda citar os outros filósofos que você leu intensamente, além do seu interesse por mitologia e história antiga desde a adolescência. Enfim, não entenda como uma reclamação, mas sempre penso que vocês dois podiam ter facilitado as coisas. Talvez fosse pedir muito para um taurino e um leonino da magnitude de ambos.

Uma vez pedi para comparar os mapas natais de vocês, e olha, eram muito semelhantes! Mas disso você já sabia, claro. Até hoje tem gente que não gosta de falar do seu interesse por astrologia, I Ching, e fenômenos paranormais, na verdade você mesmo mantinha isso tudo reservado. A vida já não era fácil, imagino como deve ter sido difícil ser classificado ao mesmo tempo como ateu herege por uns e místico crente por outros, e em nenhum dos casos eram elogios... Admiro a sua coragem de não deixar de investigar qualquer coisa que dissesse respeito a fenômenos da psique sem negá-los, mesmo que ainda fossem inexplicáveis.

A carta está ficando longa, e não posso deixar de ser grata em nome de todos nós por você não ter ido embora em 1944. Sei que não foi fácil nascer de novo, mas os seus escritos a partir dessa data são, sem sombra de dúvida, os mais valiosos para mim, principalmente a respeito da alquimia.

E quero me desculpar em nome de todos nós por usarmos a designação "junguianos". Sabemos que você não queria que uma teoria rígida se fechasse à sua volta criando discípulos presos, mas precisávamos de um nome, uma identidade de grupo, aí não teve jeito, junguianos foi a melhor alternativa.

E olha que depois que você se foi até subgrupos já foram criados dentro das mais diversas, e até divergentes, compreensões do que você deixou. No que diz respeito aos meus, mantivemos os seus fundamentos originais como base e bússola com as quais contamos para desbravar novos cantos da psique e expandir os horizontes. Em reconhecimento a esse mesmo espírito, estenda também minha gratidão a Emma Jung, Marie-Louise von Franz, C. A. Meier, Barbara Hannah, Aniela Jaffé, e ao querido Edward Edinger.

Ah! Um dia desses passei na sua casa em Zurique, ela virou museu. Deixaram tudo direitinho como você pediu! Inclusive um chapéu e uma mala de couro. Imagino muito você pegando seu chapéu e sua mala, dizendo para nós que ficamos ou que estávamos chegando: "Vocês que lutem, já fiz o que pude, até breve." Justo, muito justo.Mas, se uma noite dessas puder nos visitar em nossos sonhos, ficaremos muito felizes!

Deixamos aos analistas entender se foi você ou uma projeção simbólica quem o conhece sabe bem do que estou falando, pois o que você mais dizia era que o ser humano não nascia tábula rasa, que a psique, ou melhor, a Seele (alma, como gostava de dizer) é eterna e independe do corpo, e que a vida possui um sentido. Esse é seu grande recado e legado: a profundidade e a substância da alma. Por isso as pessoas cada vez mais querem e precisam ouvi-lo. Nosso homem das mandalas!

Com eterna gratidão, Tatiana Paranaguá.

Este texto foi escrito pela Tatiana Paranaguá, psicóloga clínica e diretora do Centro Junguiando Clínica e Estudo de Psicologia Analítica e professora da Casa do Saber.

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