Dia 15 de outubro, aeroporto de Brasília. Após 3 dias de trabalho em outra cidade e uma sequência de articulações na agenda, estou a caminho da minha cidade natal para comemorar o aniversário de 97 anos da minha avó materna.
Depois que você muda de cidade, os natais ou qualquer data comemorativa aumentam 3kg a mais na bagagem: a saudade, a culpa e o susto. A primeira, aparentemente faz parte de qualquer movimento que você faça para além do raio do diâmetro da casa dos seus pais; a segunda, surge a partir do que falta ou das coisas que “se perdem” quando você já não está mais lá para ver, ao vivo, a vida acontecendo; e a terceira, é incorporada a partir do momento em que você reacessa esse espaço nesses instantes de reencontro, e se depara com um monstro de sete cabeças: o envelhecimento do outro.
Um parêntese aqui na história:
A rotina de voos não me impede de estar atenta a tudo que acontece à minha volta. Fico olhando para as pessoas que estão dividindo aquele espaço comigo, pensando para onde esse povo todo está indo, e para fazer o quê. Será uma viagem de trabalho? Um congresso? Um show? Uma consulta médica? Quando sento no avião, penso por que essa pessoa do meu lado está jogando Candy Crush ou relendo todas essas mensagens mesmo sem internet, e fico tentando decidir se abro o computador, se pego meu livro ou se tento tirar um cochilo. Todos esses pensamentos acontecem ao mesmo tempo, e me impedem de relaxar. Mas claro que hoje ia ser diferente, porque nenhuma história boa nasce do acaso.
Entre o 20A e o 20C, há um vão enorme. Daqui até lá, encontrei espaço o suficiente entre essas poltronas para perceber que nela, está sentada uma senhora que cuidadosamente me alertou de não botar o cinto de segurança enquanto eles estiverem abastecendo o avião – “orientação deles”, disse ela. Meio saudosista e ansiosa com a chegada em Teresina, noto em seu corpo os sinais da idade e me lembro de como preciso melhorar minha postura quando eu estiver sentada.
Comecei a reparar nos seus cabelos pintados de castanho escuro, no sapato usaflex que ela tirou dos pés para facilitar a circulação, até que olho para as suas mãos e vejo exatamente as mãos da minha avó paterna. A aliança folgada no anelar esquerdo, as unhas com um cintilante descascando, as pontas dos dedos grossinhas e um relógio extremamente grande e folgado em seu pulso fino. Até o jeito de olhar e tocar nos objetos parecia minha avó, e eu vejo daqui a pele seca da palma da sua mão, igualzinho à textura que herdei da mãe de meu pai. Estaria eu vendo o que eu queria ver? A materialização de uma saudade justo no momento em que atravesso fronteiras para celebrar a vida da outra matriarca?
Dia 16 de outubro, Teresina. Não preciso perguntar, o café da tarde com bolo de sal e cuscuz de arroz já está garantido na casa da minha avó.
A idade passa não é só pra gente, mas também para os nossos. Olho para minha avó, e vejo que seu cabelo ficou mais fino e certamente mais acinzentado, o passo que já não é mais tão rápido, a pergunta que se repete, a alimentação que já não é mais tão livre, a rotina médica que passa a ser mais frequente, as bolsas de ar embaixo dos olhos que se tornaram maiores, um sono que aparece cada vez mais cedo de noite, uma audição que passa a ser seletiva, uma oração pelo tempo de vida que passa a ser mais frequente; tudo isso se mistura no momento em que me percebo naquele lugar, que é diferente, mas não é novo, porque ali eu cresci; mas também não é velho, porque tudo mudou.
Ela fala dos irmãos dela, das notícias da televisão, do padre famoso, das lembranças que se misturam; às vezes até confunde um nome ou uma data, e mesmo que eu diga que tudo bem, que isso acontece com todos nós, ela detesta quando esquece. Fica constrangida, e se pergunta como pôde esquecer o nome do vizinho de 50 anos atrás. Sabemos que muito embora haja uma ternura infinita em aceitar as falhas da memória – como quem entende que a vida sempre se organiza em camadas de esquecimento e permanência –, notar a si mesmo envelhecer é uma outra percepção sobre si. Não me refiro apenas a um corpo que vai perdendo a mobilidade ao passar dos anos, ou de uma memória que vai se desfazendo na medida em que as sinapses neuronais vão deixando de existir, mas sim de uma consciência silenciosa que não nos deixa esquecer que essa vida é finita.
E junto com essa consciência, carregamos esses 3kg de bagagem extra que se desdobram em muitas camadas: primeiro vem o susto. O susto de ver o envelhecimento acontecendo diante dos nossos olhos, de perceber que aquela mulher que parecia inabalável agora precisa de ajuda para levantar da cadeira. O susto de entender que o tempo passou mesmo e que ele não volta. É um choque de realidade que dói porque é concreto. O envelhecimento, quando é dos outros, nos lembra da nossa própria passagem, na medida em que o corpo delas vira espelho do que também seremos, um lembrete de que a vida é um fio que se afina, mesmo quando a gente não quer ver.
Depois vem a culpa de não estar mais tão perto, de ter deixado para depois aquela ligação, de não saber direito em que dia ela começou a andar mais devagar ou esquecer as coisas com mais frequência. É uma culpa que não é racional, é afetiva, ancestral até. Como se, ao viver a própria vida, estivéssemos traindo o tempo que elas gastaram cuidando da nossa. A gente tenta se convencer de que faz parte do ciclo, mas quando volta para casa e encontra aquele corpo mais debilitado, aquela voz mais baixa, aquela insistência em repetir a mesma história já contada duas vezes, a culpa escorre de novo.
E, por fim, vem a saudade, essa danada que nunca se dissolve por completo. A saudade do que dividimos no cotidiano, do cheiro da cozinha no fim da tarde, das conversas que duravam horas, do riso alto vindo do quintal, das histórias sobre o filho-de-não-sei-quem. Mas também a saudade do que está se perdendo agora, aos poucos, enquanto elas ainda estão aqui. E isso é porque há uma saudade que nasce no presente, a saudade do que já começou a ir embora, mesmo sem ter partido.
Essas três sensações se misturam no peito se um jeito avassalador, como se fizessem parte do mesmo aprendizado. Juntas, elas nos ensinam que o envelhecer das nossas mulheres é também o nosso espelho mais íntimo: nos confronta com o amor que recebemos e com o medo de não saber retribuí-lo a tempo. Mesmo sabendo que essa compensação nunca será possível, a vida nos ensina a ver beleza no envelhecer e a entender que o tempo, ainda que implacável, é também uma forma de amor.
O envelhecimento das nossas mulheres nos ensina que o tempo é testemunha, que acompanha lado a lado com o passo delas, e o meu também, pelo mundo afora. Esse envelhecimento nos diz que cuidar é um verbo que muda de direção, mas não de sentido, e que retribuir o cuidado – da forma que der, na presença possível –, é também uma forma de agradecer pelo caminho aberto antes de nós.


