Às vezes, o comportamento mais recatado pode esconder um desejo intenso. A gentileza exagerada, uma raiva contida. Para a psicanálise, essas inversões não são por acaso: fazem parte de um mecanismo chamado formação reativa.
Neste artigo, você vai entender o que é esse conceito desenvolvido por Freud, como ele atua como defesa contra desejos inconscientes e por que, muitas vezes, somos exatamente o oposto do que parecemos ser.
O artigo abordará os seguintes tópicos:

O que é formação reativa?
Segundo a psicanálise, a formação reativa é um mecanismo de defesa que leva um sujeito a comportar-se da maneira oposta à que ele realmente é. Através da formação reativa alguém pode, por exemplo, defender-se de todo o ódio que sente pelos outros comportando-se socialmente de maneira exageradamente bondosa. Ou então, defender-se de seus intensos desejos sexuais comportando-se de forma extremamente pudica ou recatada.
Para Freud, este é um mecanismo de defesa que todos nós utilizamos para nos proteger de alguns desejos inconscientes e, portanto, inaceitáveis.
A formação reativa em Freud
De acordo com Freud (1909), todos nós possuímos desejos ou tendências inconscientes. Em geral, estes são desejos sexuais ou agressivos e, portanto, contrários à moral que governa a nossa sociedade. E é em obediência a tais padrões morais que somos obrigados a recalcá-los, ou seja, tornar esses desejos inconscientes.
No entanto, para a teoria freudiana, o recalque de um desejo não significa exatamente a sua extinção. Significa apenas fazer com que ele se torne inconsciente, ou seja, desconhecido para nós. Porém, mesmo inconsciente, o desejo continua vivo e sempre à espreita de alguma situação para realizar-se.
Deste modo, o desejo inconsciente impõe uma pressão constante em nosso psiquismo, algo que gera em nós um conflito imenso. Por isso temos que nos defender dele de alguma maneira, sendo a formação reativa um destes possíveis mecanismos de defesa. Através da formação reativa, substituímos este desejo sexual ou agressivo pelo seu exato oposto e, assim, nos tornamos o contrário daquilo que verdadeiramente somos (Freud, 1926).
A psicanálise e os mecanismos de defesa do ego
Segundo a teoria freudiana, a formação reativa é um dos possíveis mecanismos de defesa, mas não o único. As outras defesas que frequentemente utilizamos contra os nossos desejos sexuais ou agressivos são o recalque, a negação, o isolamento, a anulação retroativa e a projeção, apenas para citar os mais conhecidos.
Exemplos de formação reativa
São muitos os exemplos de formação reativa que guardo comigo. Em geral, eles costumam ajudar meus alunos na compreensão de todo este mecanismo. E o melhor de tudo: são exemplos retirados da minha própria vida cotidiana, da simples observação do comportamento de pessoas próximas.
Acredito que vocês, ao lerem estes exemplos, poderão também percebê-los em pessoas de seus convívios, de repente em seus núcleos familiares ou de amizade mais chegados. Pode ser até que consigam visualizá-los em vocês mesmos...
Exemplo 1: Quando o desejo sexual se transforma em pudor

O primeiro exemplo é de uma senhora com quem convivi por alguns anos. Tratava-se de uma mulher respeitadíssima, ultra religiosa e sempre preocupada com a sexualidade dos outros. Vale frisar: ela era preocupada apenas com a sexualidade dos outros, já que insistia em dizer que nunca teve desejos sexuais... No máximo, assumia que esforçara-se para ter alguma vontade nas ocasiões em que engravidou.
Fato é que esta mesma senhora que insistia em negar seus desejos sexuais tinha um comportamento um tanto estranho: todo dia, ao sair do banho, enrolava-se na toalha e ia vestir-se em seu quarto... Porém, acidentalmente, sempre esquecia a cortina aberta. E o problema é que ela morava no andar térreo de um prédio e, colada a sua janela, ficava uma vila repleta de casas.
E ela era a alegria da vila! Os púberes que por lá moravam chegavam mesmo a compor uma imensa e feliz plateia para assistir ao espetáculo. E ela nem se tocava...
Quem se tocou fui eu! Certo dia, informei-lhe que a vila inteira já tinha visto ela peladona. Como era de se esperar, ela ficou estupefata, morreu de vergonha e prometeu a si própria que, a partir de então, passaria a cuidar para que a cortina ficasse bem fechada.
No entanto, como todos sabem, estas promessas não valem lá muita coisa... E, assim, após alguns dias de intenso zelo, a senhora voltou a acidentalmente esquecer a cortina aberta. Tornou-se novamente a despudorada do andar térreo, sempre a postos para satisfazer a alegria da meninada. E eu como não sou muito fã de confusão pra cima de mim, deixei quieto!
Ora, assim percebemos o quanto um sujeito detentor de desejos sexuais super intensos é capaz de, através de uma formação reativa, tornar-se extremamente pudico e recatado. De fato, graças a uma formação reativa, esta senhora se transformou no exato oposto do que ela verdadeiramente era... E quem a conheceu sabe que sua pudicícia era extremamente exagerada, fazendo dela uma pessoa até mesmo chata pelo tanto de pudor que preconizava por aí.
Só que é aí que mora o perigo: a formação reativa é um mecanismo de defesa sempre falho. Ora, Freud salienta que a verdade do desejo inconsciente não consegue ser escondida por tanto tempo. E, assim, cedo ou tarde, ela acaba sempre aparecendo, fazendo-nos defrontar com aquilo que consideramos mais inaceitável em nós.
Como no exemplo acima, por mais que esta senhora empregasse sucessivas formações reativas no intento de livrar-se da sexualidade que efetivamente possuía, todos os seus esforços eram em vão... Às vezes estas formações reativas até que funcionavam e, de fato, ela conseguia fazer com que todos acreditassem piamente em seu recato (inclusive ela própria...). No entanto, volta e meia estas formações reativas vinham a falhar fazendo com que ela se tornasse a peladona da rua.
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Exemplo 2: Quando o amor se transforma em ódio

Há também o exemplo de um casal da minha própria família. Sem qualquer exagero da minha parte, posso afirmar que nunca os vi sem brigar um com outro... Nunca! Foi sempre muita briga, muita briga, muita briga... E como se não bastasse tanta briga, elas ainda brigavam em alemão!
Bastava ele falar uma coisa que ela retrucava. Bastava ela dar opinião em algo que ele implicava. Bastava ele querer ver o futebol que ela desandava a falar sem parar. Bastava ela dizer que queria jantar às 19hs que ele dizia preferir às 19:15hs...
E assim eles eram casados, muitas vezes começando a brigar quando acordavam e só deixando as brigas na hora de dormir! Todo santo dia prometiam o divórcio, todo santo dia juravam as maiores ameaças um pro outro e todo santo dia era a maior berraria. A princípio, se odiavam...
E, no entanto, se amavam! Efetivamente, quem os conhecia, sabe que um não conseguia viver sem o outro. Era muito amor que estava em jogo, tanto amor, mas tanto amor, que os dois nunca se largavam: acordavam juntos, tomavam café juntos, trabalhavam juntos, almoçavam juntos, voltavam pra casa juntos e realmente só se separavam na hora do Jornal Nacional que coincidia com a hora da novela do SBT.
Enfim, o que acontece é que, às vezes, a formação reativa faz com que um grande amor só consiga se manifestar na forma de um aparente ódio. Mas todo mundo sabia que, no fundo, eles se amavam! Menos eles que juravam que não...rs
Exemplo 3: Quando a agressividade se transforma em bondade

Certo dia, estava eu na fila de um buffet a quilo e, na minha frente, estava uma moça pronta para pegar a comida. Assim que entrei na fila, ela virou sorrindo pra trás e me indagou: “O senhor quer passar na minha frente”? Eu agradeci e respondi que não. Estranhei bastante aquela pergunta...
Passaram alguns segundos e ela virou novamente para trás com o mesmo sorriso doce: “Olha, se o senhor desejar pegar a comida na minha frente, pode tá? Eu tô sem pressa alguma...”. Estranhei de novo o comportamento dela, mas agradeci. Ela voltou-se para frente ainda com o sorriso doce.
Daí pegou a comida dela, eu peguei a minha, e na hora de pesar, ela começou a falar sorrindo para a funcionária que cuidava da balança: “Muito obrigado pelo serviço de vocês. É sempre um prazer almoçar aqui. Minhas lembranças ao seu marido e à sua família”. E virou-se de novo para mim com o mesmo sorriso: “Bom apetite!”
Agradeci e pensei comigo mesmo: “Caramba, essa mulher deve ser uma bruxa!” E fui comer bem longe dela...
Ora, quem conhece o conceito de formação reativa sabe que devemos desconfiar destas pessoas muito boazinhas, muito legais, muito prestativas e muito zelosas com os outros. De acordo com a lógica da formação reativa, tamanha bondade, por muitas vezes, só serve para esconder uma imensa agressividade! E, neste caso, talvez possamos afirmar que enquanto esta moça sorria para mim oferecendo-me a frente da fila, ela provavelmente estava se corroendo por dentro de tanto ódio...
Vale a pena determo-nos um pouco na explicação deste processo.
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Formação reativa, pulsão de morte e superego
De fato, a psicanálise considera a transformação da agressividade em uma imensa bondade o exemplo paradigmático de formação reativa.
Podemos dizer que, para a teoria freudiana, o exemplo paradigmático de formação reativa é o da transformação da agressividade em bondade.
Segundo Freud (1923), todos nós somos dotados de uma série de impulsos agressivos, impulsos estes representados pelo conceito de pulsão de morte. Trata-se, propriamente, do conceito que explica porque somos constantemente tomados por uma série de desejos violentos e cruéis com os outros. E, com efeito, por muitas vezes, é absolutamente comum que nos peguemos desejando o mal a uma série de pessoas do nosso convívio.
No entanto, por questões estritamente morais, nossos impulsos agressivos não podem ser satisfeitos. Caso contrário, estaríamos todos presos... (Imaginem vocês se pudéssemos matar todo mundo que a gente odeia?). Deste modo, para evitar tamanho caos, Freud (1923) coloca que cada sujeito deve erigir em si uma instância psíquica chamada “superego” (“supereu”). Este teria como função, dentre outras tantas coisas, impor os mais severos limites aos nossos impulsos agressivos.
E, assim, graças à atuação do superego, nos tornamos estas pessoas extremamente bondosas e moralizadas que somos! Alguns menos, outros mais e outros ao ponto de por duas vezes oferecer a um estranho seu lugar na fila de uma comida a quilo...
É, portanto, o superego que promove este tipo de formação reativa. Graças a esta transformação da nossa agressividade na mais pura bondade, tornamo-nos sujeitos aparentemente incapazes de desejar mal aos outros. Mas isso até a página dois!
Ou seja, como foi acima ressaltado, para a teoria freudiana, a formação reativa é um mecanismo de defesa fundamentalmente falho. O que quer dizer que jamais o superego consegue transformar em bondade a totalidade dos nossos impulsos agressivos.
Um tanto de agressividade sempre continua vivo em nós. Às vezes, ela consegue forçar a passagem e se dirigir aos outros. Porém, às vezes, ela permanece retraída e toma a nós mesmos como seu objeto... O que pode ser igualmente perigoso, visto as tantas situações de autoagressão e de autoculpabilização que costumamos vivenciar.
“As perigosas pulsões de morte são tratadas no indivíduo de diversas maneiras: (... ) em parte são desviadas para o mundo externo sob a forma de agressividade; enquanto que em grande parte continuam, sem dúvida, seu trabalho interno sem estorvo” - (Freud, 1923/1996 - “O ego e o id”, p. 66)
Este é, portanto, o conceito de formação reativa. Um mecanismo de defesa bastante comum e de suma importância na clínica. De fato, a cada paciente que atendemos e a cada história que ouvimos em nossos consultórios, é frequente que nos deparemos com uma série imensa de formações reativas. E se fizermos o exercício de olharmos para nossas próprias características e comportamentos, com certeza, vamos perceber uma série delas em nós mesmos!
Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
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Referências:
Freud, Sigmund. (1909). Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 165-186.
_____. (1923). O eu e o isso. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 13-80.
_____. (1926). Inibições, sintomas e angústia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 20. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 79-171.