Na última sexta-feira, tive o privilégio de assistir à mesa O Brasil no Espelho, parte da programação oficial da Flip (Feira Literária de Paraty). A mesa foi uma conversa entre o jornalista Tiago Rogero e a historiadora Ynaê Lopes, com mediação da escritora Juliana Borges em torno dos respectivos trabalhos dos autores: projeto Querino: Um olhar afrocentrado sobre a história do Brasil (podcast produzido pela Rádio Novelo, 2022, e livro lançado pela Editora Fósforo, 2024), e Irmãs do Atlântico: Escravidão e Espaço Urbano no Rio de Janeiro e em Havana (editora Civilização Brasileira, 2025), lançado durante a própria Flip.
A certa altura, depois de um debate impecável sobre as tessituras que organizam o racismo e o mito da democracia racial no Brasil, os convidados foram perguntados sobre o perfil da plateia e da feira como um todo.
A pergunta era: a maioria branca aqui sentada, representa maior letramento e, portanto, maior aliança na luta antirracista, ou apenas aponta que os negros mais uma vez estão ausentes de espaços como este?
Ambos os autores pareceram concordar com as duas opções, embora saibamos - ou deveríamos saber - que ouvir debates e consumir conteúdos sobre o assunto não aponta em nada nossa aliança enquanto pessoas brancas.
Na mesa Ser Mulher na América Latina, que aconteceu no dia seguinte, a escritora mexicana Dahlia de la Cerca e a escritora argentina Dolores Reyes conversaram com a jornalista e crítica literária Gabriela Mayer sobre a matéria-prima de suas obras, respectivamente Cadelas de Aluguel (DBA, 2025) e Miséria (Moinhos, 2025): a violência contra a mulher.
Obras de ficção com inspiração na vida real, que não afagam nossas angústias e medos sobre os crimes passíveis de serem cometidos contra nós, mas que se utilizam da ficção para fazer justiça e honrar as vidas perdidas. Dessa vez, não houve pergunta sobre o perfil da plateia, mas creio que possam imaginar que o perfil feminino dominava o auditório e a tenda na praça da Matriz.
Certamente aconteceram outras mesas nas programações oficial e paralela que também discutiram aspectos sociais do nosso país e continente sem que os sujeitos debatidos estivessem presentes. Infelizmente, essa é a lógica que ainda predomina em tantos espaços da intelectualidade: mensagens que raramente alcançam seus destinatários, e distanciam o debate de quem mais deveria o compor.
É evidente que nós, pessoas brancas, deveríamos estar na mesa absolutamente necessária de Ynaê e Thiago, bem como em todas as possibilidades que nos gerem desconforto e autocrítica. O problema é que nossa supremacia nos espaços só reforça o entendimento de que o errado e racista é o outro. Se somos os únicos na sala, o problema são sempre os que estão do lado de fora.
Vejam o segundo exemplo. A conversa sobre violência de gênero deveria mesmo ser endereçada somente a quem a vive? Se já somos nós, mulheres cis e transgênero, que morremos e perdemos umas às outras, é justo que sejamos as únicas interessadas a ouvir e debater sobre o que nos acomete?
A luta é feita de espaços de fortalecimento interno, sim, e a presença de homens não garante nossa proteção. Mas não custa lembrar que conscientização em massa só acontece com participação também em massa. Por sinal, vale o lembrete de que estamos em pleno Agosto Lilás, momento oportuníssimo para essa conversa.
A circulação - de pessoas e, consequentemente, de ideias - é fundamental para que no espelho do Brasil vejamos outra imagem em um futuro longínquo. Se uma feira literária sediada em uma cidade construída por pessoas escravizadas é frequentada majoritariamente por pessoas brancas para debater cultura e letramento, os detentores de poder naquele espaço - seja ele financeiro, intelectual ou social - continuam os mesmos da época em que Paraty foi erguida.
Se não há homens em espaços constituídos por mulheres, que estejam genuinamente disponíveis para a escuta de pautas dos feminismos, sem menções à mimimi e à loucura, não há mudança que se sustente.
Circular por espaços diferentes dos nossos, com pessoas que não reflitam nossas imagens, é o maior exercício de cidadania e respeito à diversidade que podemos ter. É a possibilidade de olhar para o espelho e encontrar outra imagem que não a nossa.
Como nem tudo é crítica, há de se exaltar que a festa em torno da palavra se faz cada vez mais essencial, sobretudo em tempos de leitura escassa e escrita artificial. Mas se o papel da literatura - seja ela de ficção ou de não ficção - é, entre tantos os que lhe cabem, o de fazer transitar por outras realidades, que ela não nos sirva apenas de refúgio, mas de convocação, e nos empurre para lugares para além dos nossos.