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Pobres Criaturas: O que é a vida, se não um experimento?

Pobres Criaturas: O que é a vida, se não um experimento?

Yorgos Lanthimos já se consolidou como um dos cineastas mais provocativos do cinema contemporâneo. Seus filmes — de O Lagosta a A Favorita — transitam entre o absurdo, o desconforto e a ironia, sempre colocando em xeque as convenções que sustentam nossas relações sociais.

Em Pobres Criaturas (Poor Things), essa provocação atinge um nível ainda mais intenso: a partir da trajetória de Bella Baxter, acompanhamos uma jornada de libertação que é uma crítica feroz à forma como nossa sociedade organiza gênero, classe, sexualidade e até mesmo o que entendemos por humanidade e sanidade.

A seguir, explorarei três dimensões principais do filme: suas temáticas centrais e diálogos com questões sociais; sua capacidade de nos fazer questionar normas culturais e convenções humanas; e sua visão estética e narrativa, que a tornam uma obra singular no cinema atual.

Identidade, classe, gênero e sociedade: uma personagem que se inventa

Bella Baxter nasce como uma “tabula rasa”. Reanimada em condições nada convencionais, ela se descobre no mundo com uma curiosidade radical, sem as amarras das normas sociais que controlam a vida de quase todos.

Essa condição inicial a coloca em um lugar único: enquanto a maioria de nós cresce absorvendo regras de comportamento, hierarquias sociais e códigos de gênero de forma quase automática, Bella se recusa a aceitá-los como naturais. Para ela, tudo é experimentação e novidade.

No plano da identidade, essa abertura é fundamental. Bella não parte de um modelo preestabelecido de quem deve ser. Em vez disso, vai se construindo por meio da experiência direta: prova, erra, corrige, ousa, arrisca. Essa trajetória desmonta a ideia de identidade fixa, tão valorizada na cultura contemporânea, e nos lembra que ser humano é estar em constante reinvenção.

A dimensão de classe também atravessa sua jornada. Em diversos momentos, Bella entra em contato com realidades sociais distintas: do luxo e sofisticação burguesa às ruas de pobreza extrema. O contraste escancara não apenas a desigualdade material, mas também a do acesso à liberdade. Ao transitar por esses mundos, Bella revela que essa liberdade não é só uma questão de vontade ou coragem, mas também profundamente condicionada pela posição social que ocupamos.

Quando pensamos em gênero, o filme é ainda mais incisivo. Bella confronta as expectativas sociais impostas às mulheres: ser submissa, recatada, dedicada a um lar ou a um homem. Sua descoberta da sexualidade é livre, desinibida e sem culpa — uma afronta direta às narrativas moralistas que até hoje tentam controlar o desejo feminino. Bella se recusa a ser “propriedade” de alguém, seja de um amante sedutor, seja de um tutor científico. Sua autonomia se constrói justamente ao desafiar as tentativas de captura de sua subjetividade.

No campo mais amplo da sociedade, o filme expõe as engrenagens de controle que operam de forma quase invisível: convenções morais, hierarquias sociais, normas de comportamento. Ao colocar uma personagem que não reconhece essas engrenagens, Lanthimos nos faz enxergar o quanto estamos presos a elas. Nesse caminho, Bella funciona como um espelho distorcido: sua liberdade excessiva nos parece absurda justamente porque expõe o quanto a nossa vida cotidiana é cheia de barreiras e limitações.

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Questionar normas culturais: o olhar estrangeiro dentro de casa

Um dos maiores méritos de Pobres Criaturas é provocar o espectador a repensar aquilo que parece óbvio. Ao acompanhar Bella em sua descoberta do mundo, sentimos o estranhamento de perceber normas que, para nós, foram tão naturalizadas que raramente as questionamos.

Por que determinadas roupas são adequadas e outras não? Por que certos desejos são aceitos e outros censurados? Por que alguns podem transitar entre espaços sociais e outros estão condenados a permanecer onde nasceram? Bella encara cada uma dessas questões com ingenuidade e franqueza. Esse olhar estrangeiro, vindo de dentro, é o que dá potência crítica ao filme.

Ao mesmo tempo, Pobres Criaturas nos convida a refletir sobre a natureza das convenções sociais. Será que elas são, de fato, necessárias? Ou são formas de domesticar corpos e mentes específicas para garantir que a ordem social se mantenha intacta?

A resposta que o filme sugere é desconfortável: grande parte das convenções não é natural nem inevitável, mas construída para preservar relações de poder. Sua imagem, então, é criada sob o símbolo da periculosidade, de uma animalidade constituída justamente porque revela que outros modos de viver são possíveis.

A loucura e a sanidade em Bella são elementos costurados desde o início da narrativa. O suicídio da protagonista grávida ainda na primeira cena indica os caminhos pelos quais sua figura será tratada: não como um corpo com agência, mas como um enigma a ser domesticado.

Nesta nação cristã, suicídio é tratado como loucura ou crime”, afirma o Dr. Godwin Baxter — a quem Bella chama de God. Ora, não seria justamente essa figura criadora que, ao devolver a vida em uma forma que é, ao mesmo tempo, mãe e filho, desafia as convenções de identidade, gênero, sanidade e existência que estruturam a sociedade? É assim que Lanthimos transforma Bella em uma figura que embaralha as fronteiras entre razão e desrazão, mas sem esquecer que a loucura, então, aparece como metáfora: o rótulo usado por uma sociedade que teme o excesso de vida, e não de morte.

É nesse movimento que o filme nos instiga a pensar até que ponto nossas escolhas são realmente nossas, e até que ponto são respostas a expectativas sociais. Quantos de nossos desejos foram moldados para caber em normas que nem percebemos mais?

Cartaz Pobres Criaturas (2023). Fonte: IMDB

Estética e narrativa: o grotesco como espelho da humanidade

Se as temáticas de Pobres Criaturas já são provocativas, é na forma como o filme se apresenta que sua singularidade se intensifica. A estética do filme é marcada pelo exagero, pelo grotesco e pela fantasia.

Cidades distorcidas, cenários quase caricaturais, cores intensas e mudanças abruptas de estilo criam uma atmosfera de estranhamento constante.

Essa escolha estética traduz visualmente a condição de Bella e, por extensão, a condição humana. O mundo que ela enxerga é, de fato, distorcido, não porque ela o vê errado, mas porque o mundo é, em si, cheio de contradições, injustiças e absurdos que fomos forçados a naturalizar.

A narrativa também é construída de forma peculiar: em vez de seguir um arco clássico de início, meio e fim, acompanhamos a trajetória de Bella em episódios que funcionam quase como ensaios existenciais. Cada nova situação é uma oportunidade para explorar um aspecto da condição humana.

E assim, não seria a vida? Esse espaço de constante experimentação, cheio de encontros, erros, descobertas e contradições, cada vez mais distante de uma linearidade confortável. Lanthimos nos lembra que, assim como Bella, navegamos por mundos fragmentados, entre normas e absurdos, constrangimentos e liberdades, onde cada experiência redefine quem somos.

Por que Pobres Criaturas importa hoje?

O cinema tem o poder de nos colocar diante de nós mesmos de maneira inesperada. Pobres Criaturas faz exatamente isso: ao criar um mundo distorcido e uma personagem radicalmente livre, nos obriga a olhar para as prisões invisíveis que moldam nossa vida cotidiana.

Em tempos em que discursos conservadores tentam reforçar papéis de gênero rígidos, censurar debates sobre sexualidade e minimizar desigualdades sociais, o filme de Lanthimos é quase um manifesto. Ele nos lembra que a humanidade não é definida por obediência a normas, mas pela capacidade de imaginar e experimentar novas formas de viver. E muitas vezes, de se contradizer.

Mais do que uma crítica, o filme é também um convite à imaginação. Se Bella consegue inventar sua própria vida diante de tantas pressões, desafios e violências, por que nós não poderíamos ao menos questionar as regras que seguimos automaticamente? Pobres Criaturas é desconfortável porque abre essa possibilidade — e a possibilidade de mudança sempre assusta.

Esteticamente ousado, narrativamente fragmentado e tematicamente profundo, o filme confirma Yorgos Lanthimos como um dos grandes cineastas da atualidade. Mas, mais importante que isso, nos provoca a olhar para além da tela, ou seja, para nossas escolhas, nossas prisões e nossas possibilidades de liberdade.

Camila Fortes Franklin | Redatora

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Artigo escrito por
Camila Fortes
Pesquisadora. Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde do ICICT/FIOCRUZ/RJ.
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