Psicanálise

Psicanálise é pseudociência? Entenda o debate

Psicanálise é pseudociência? Entenda o debate

A pergunta “a psicanálise é pseudociência?” atravessa mais de um século de debates entre cientistas, filósofos e clínicos. Desde Sigmund Freud, que se via como um homem da ciência, até críticas contemporâneas como as de Karl Popper, Natália Pasternak e Carlos Orsi, a discussão nunca deixou de provocar controvérsia.

De um lado, estão aqueles que questionam a cientificidade da psicanálise, apontando a falta de comprovação experimental e a dificuldade de testar suas hipóteses. De outro, defensores ressaltam sua relevância clínica, cultural e filosófica, com impacto profundo na forma como compreendemos o inconsciente, os afetos e a sociedade.

Neste artigo, vamos explorar os principais argumentos que cercam esse dilema: afinal, a psicanálise deve ser entendida como ciência, pseudociência ou como um saber de outra natureza?



Por que essa pergunta ainda aparece?

Desde a sua fundação em inícios do século XX, a psicanálise se debate com a questão de sua cientificidade. Sabemos que Freud sempre se considerou um “homem da ciência” e que esta problemática em muito o afetava.

De lá pra cá, foram muitos os estudos que atestaram ou não a cientificidade da psicanálise, muitas as teses que se adentraram por este campo e inúmeras as respostas elaboradas pelos psicanalistas quando o status científico de seus estudos era negado.

Eu mesmo lembro que durante os anos em que cursei meu Mestrado e meu Doutorado, este tema era o mais corriqueiro entre aqueles que escreviam dissertações e teses em psicanálise. E mesmo assim, apesar destes tantos estudos, a questão ainda permanece em aberto e suscitando outras inúmeras dissertações e teses.

Recentemente, a discussão voltou à tona nos mais variados meios de comunicação a partir da publicação do livro “Que bobagem!” da respeitável Natália Pasternak em parceria com Carlos Orsi.

Mediante argumentos um tanto quanto polêmicos, os dois vieram a considerar a psicanálise como uma pseudociência.

E o sangue ferveu! A galera não gostou, se sentiu incisivamente agredida e é sobre isso que eu vou escrever hoje para vocês.

Natália Pasternak e Carlos Orsi, críticos contemporâneos da psicanálise
Natália Pasternak e Carlos Orsi

A psicanálise não é uma ciência. O que também não significa que seja uma pseudociência. Mais relevante é compreender o papel crítico que ela desempenha em relação ao conhecimento científico, expondo seus limites.

A psicanálise é ou precisa ser ciência?

A principal crítica à psicanálise feita por Pasternak e Orsi é a de não considerá-la uma ciência, justamente, por ela carecer de comprovação empírica.

Segundo os autores, a psicanálise efetivamente coleciona os maiores sucessos, algo que todos nós conseguimos observar em nosso núcleo familiar ou de amizades mais próximas: sempre conhecemos alguém que obteve uma grande melhora ao procurar um analista e submeter-se à psicanálise. E isto é inegável!

No entanto, devidamente baseados em estudos científicos, Pasternak e Orsi argumentam que, por tantas vezes, esta melhora no quadro dos pacientes se dá pela boa relação que eles estabeleceram com seus analistas, e não pelo emprego do método psicanalítico em si.

Em outros termos, o tratamento nestes casos veio a lograr pela empatia que existiu entre psicanalista e analisando, mas jamais pelo que o psicanalista fez ou deixou de fazer... E é óbvio que isto não basta para fazer da psicanálise uma ciência.

Nesta perspectiva, de acordo com Pasternak e Orsi, para que determinada terapêutica seja considerada científica ela precisa apoiar-se em evidências, além de fazer-se através do mais rigoroso método científico.

O método em questão deveria consistir em selecionar duas amostras grandes de pessoas e somente em uma delas aplicar o tratamento adequado. Já ao outro grupo seria aplicado um falso tratamento, espécie de placebo.

Ao final do processo, as duas amostras seriam comparadas e caso o primeiro grupo tenha realmente apresentado certa melhora, ao contrário do segundo, o método em questão seria considerado devidamente científico.

Karl Popper, filósofo da ciência que criticou a psicanálise
Karl Popper foi autor de uma das principais críticas à psicanálise, vindo, como outros, a considerá-la uma pseudociência

E como qualquer um de nós pode observar, tudo isto soa muito estranho à psicanálise... E eu, sinceramente, não consigo decidir sobre o que é mais bizarro: o fato de a psicanálise ser tão questionável para tais pressupostos científicos ou esses pressupostos científicos serem tão distantes do que se faz dentro de um consultório de psicanálise.

Seja como for, sempre que esta questão retorna em sala de aula, eu respondo que, se tivermos em mente apenas este modelo normativo de se fazer ciência, é óbvio que a psicanálise jamais será uma ciência propriamente dita.

E não apenas ela, mas também a economia, a sociologia, os estudos literários e linguísticos, a psicologia, a antropologia, a ciência política, assim como tantas outras...

E, neste sentido, devemos indagar o porquê destas tantas e tantas críticas à cientificidade da psicanálise, enquanto que, em relação a estes outros saberes, a questão quase nunca se coloca.

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Mas o que torna a psicanálise válida?

Segundo Freud (1917), a psicanálise incomoda tanto os ditos cientistas – e muito mais do que estes outros saberes – justamente, por denunciar os próprios limites do conhecimento científico.

De fato, a galera cientificista mais hard ficou uma arara quando a psicanálise trouxe consigo a postulação de um inconsciente e, com ele, a denúncia de que o sujeito não pode se conhecer totalmente.

Ora, de acordo com a teoria de Freud, existe um domínio completamente desconhecido a nós mesmos, o que torna impossível a pretensão de qualquer conhecimento pleno a respeito de quem efetivamente somos. E, nesta medida, se o conhecimento de si é sumariamente impossível, imagina o conhecimento dos outros e da realidade que nos cerca?

Deste modo, Freud promoveu uma verdadeira revolução nos paradigmas sob os quais se assentava a ciência de sua época, denunciando a própria impossibilidade de se fazer ciência. Por isto as tantas resistências à psicanálise.

Sigmund Freud, fundador da psicanálise, em fotografia clássica
Segundo Freud (1917), “o eu não é mais senhor de sua própria morada”, ou seja, o bem mais íntimo que possuímos – o nosso “eu” é completamente subjugado por tendências que jamais temos consciência

Por este viés, a questão talvez não seja saber se a psicanálise é ou não uma ciência, mas sim, a de situar o lugar que ela ocupa em relação ao conhecimento científico, ou seja, o de demonstrar todas as suas limitações.

E eu completo o meu argumento dizendo que, mesmo envolta nestas questões que dizem respeito à sua cientificidade, faz-se necessário marcar que, enquanto prática clínica, a psicanálise é em muito válida... E talvez ninguém consiga discordar disso! Aqueles que procuram um tratamento psicanalítico conseguem efetivamente transformar-se, passando a representar-se de forma diferente e, inclusive, diminuindo o sentimento de angústia que tanto os assolava.

Óbvio que um tratamento psicanalítico não vai conseguir tornar ninguém plenamente feliz (e sabemos que a psicanálise jamais se dispôs a isso), mas todos que a ela se entregam conseguem construir certo posicionamento diferente em relação àquilo que os incomodavam. Com isto, o sofrimento do qual tanto se queixavam passa a ser relativamente apaziguado à medida que eles vão elaborando as suas questões.



Mas qual é, então, o método da psicanálise? (se é que em relação a ela podemos utilizar o termo “método”...)

O método da psicanálise é propriamente clínico: convidar o paciente a associar livremente com o intuito de fazê-lo perceber os fundamentos inconscientes de todo o seu mal-estar. Diante deste paciente estará um psicanalista escutando-o e pontuando o seu discurso.

Assim, ao longo de todo este trabalho, o sujeito em análise encontrará a oportunidade de repensar-se e elaborar uma forma diferente de falar sobre si e sobre sua história. E, neste sentido, há sempre a aposta desta nova história ser diferente daquela que tanto sofrimento lhe causava.

Não se trata efetivamente de um método científico... trata-se de algo que passa à margem do que comumente se chama “comprovação empírica”, bem como de todos os outros pressupostos da ciência moderna. Daí as tantas críticas à psicanálise oriundas do campo da epistemologia...

E, de fato, a psicanálise não é uma ciência. Talvez ela corresponda mais a uma prática ou a um método de investigação do inconsciente. Eu, enquanto psicanalista, prefiro designá-la como uma arte. E não apenas qualquer arte, mas sim, a arte da escuta ou a de tentar fazer algo frente ao sofrimento subjetivo. E sob este ponto de vista, sim, a psicanálise é muito válida!

Diferença entre psicanálise, psicologia científica e psiquiatria

A bem da verdade, todos os saberes “psis” vivem mergulhados na questão de suas cientificidades. E isto porque psicanálise, psicologia e psiquiatria operam, justamente, com aquilo que escapa a todo e qualquer domínio da ciência: a subjetividade.

E este é um dos meus temas preferidos! A subjetividade pode ser definida como uma espécie de “existência interior”, intimidade ou interioridade a qual tanto nos remetemos e que tanto nos promove sofrimento.

Óbvio que esta realidade ou vida interior não existe no plano efetivo ou observável, dizendo mais respeito a uma realidade discursiva e que, por isto, se constitui como “o outro” de todo e qualquer saber que se pretenda científico. Divã original de Sigmund Freud, coberto por tapete Qashqa'i Shekarlu, exposto no Museu Freud em Londres

Por que insistimos em pedir comprovações objetivas de algo que lida com o que há de mais subjetivo?

Por isto a questão de suas cientificidades é tão complicada para estes três saberes. Em outros termos, se, de acordo com os moldes positivistas, fazer ciência implica em

  • o saber em questão possuir como objeto de estudo algo que seja observável;
  • tratar de questões que podem ser reproduzidas em laboratórios;
  • descobrir as leis universais que regem seu objeto de estudo;
  • conseguir prever resultados dos seus estudos,

Constatamos então que nada disso é familiar à psicanálise, à psicologia e mesmo à psiquiatria.

Daí as múltiplas tentativas já feitas no campo da psicologia com o intuito de transformá-la em uma ciência propriamente dita. A mais famosa foi a fundação do Behaviorismo por Watson, psicologia científica que pretendeu eliminar a subjetividade de seu campo de estudo, prendendo-se apenas àquilo que no domínio do ser humano pode ser observável, ou seja, seu comportamento.

Neste mesmo contexto não podemos deixar de mencionar os mais diversos estudos cognitivistas ou aqueles atravessados pelas neurociências que pretenderam igualmente reduzir as variáveis subjetivas ao domínio do cérebro e de suas inervações.

No que diz respeito ao saber psiquiátrico, podemos também mencionar os múltiplos embates “psiquiatria x psicanálise” que já se fizeram ao longo da história. Neste sentido, vale também lembrar as mais variadas teorias surgidas no âmbito da psiquiatria que pretenderam buscar os processos químicos, anatômicos, fisiológicos e/ou neuronais que pudessem explicar o sofrimento subjetivo.

Psicanálise, psicologia e psiquiatria operam, justamente, com aquilo que escapa a todo e qualquer domínio da ciência: a subjetividade.

Como identificar um bom psicanalista?

Conforme destacamos, grande parte da crítica de Pasternak e Orsi à psicanálise centrou-se na hipótese de que, como método clínico, ela é propriamente falha. E isto porque, segundo os autores, os mais variados estudos comprovam que as poucas melhoras observadas nos pacientes remetem muito mais ao fato de eles terem construído uma relação amistosa com seus psicanalistas do que propriamente com o método que lhes foi aplicado.

Deste modo, não haveria diferença alguma entre procurar um psicanalista ou simplesmente encontrar um amigo para conversar. Ambos lograriam na função de, a partir de uma boa relação, fazer com que aquele que sofre conseguisse elaborar seu mal-estar.

Com toda a sinceridade do mundo, eu acho esse argumento uó! Fazer equivaler o que se passa dentro de um consultório de psicanálise com o que pode se suceder em uma mesa de bar é um argumento que, para mim, não merece nem resposta...

E, em relação a isso, considero ter sido graças ao bom Deus que eles não expandiram suas comparações de psicanalistas com pessoas como a Márcia Sensitiva, o Walter Mercado ou aquela outra que vai nos programas vespertinos do SBT para conversar com anjos!

Ora, é óbvio que um bom psicanalista tem muito mais a oferecer a seus pacientes do que uma simples relação terapêutica amistosa.

Um bom psicanalista é, em primeiro lugar, aquele que já se submeteu a uma análise: ele aprendeu a escutar deitado em um divã, associando livremente e deixando-se surpreender por suas mais diversas manifestações do inconsciente.

Ele também frequenta uma boa instituição de psicanálise, de vez em quando faz supervisão de seus atendimentos e jamais deixa de estudar para cada vez mais se questionar sobre sua prática.

Deste modo, existe o chamado “tripé da psicanálise” (análise, supervisão e conhecimento teórico) a ser devidamente cumprido por todos os que pretendem fazer uma formação em psicanálise. E isto é algo a ser devidamente ressaltado, sobretudo, nestes tempos tenebrosos nos quais se debate se a psicanálise deve ser reconhecida pelo MEC e cada vez mais se assiste à formação de psicanalistas em instituições religiosas completamente esculhambadas.

Mas então é verdade que a psicanálise é pseudociência? Por que esta questão ainda incomoda tanto?

Segundo o meu entender, a psicanálise não é uma ciência. Tampouco uma pseudociência... De acordo com os argumentos que coloquei ao longo do texto, entendo que a questão tem sido frequentemente mal colocada, o que acaba por conduzir a debates cada vez mais controvertidos... Já tá chato, tá incomodando mesmo...

Perguntas frequentes sobre psicanálise e pseudociência

A psicanálise é ciência ou não?

Não, a psicanálise não é uma ciência. O que também não significa que seja uma pseudociência. Mais interessante do que julgá-la a partir de critérios epistemológicos que lhe são estranhos é compreender o papel de questionamento que a psicanálise ocupa em relação ao conhecimento científico, revelando seus limites.


Por que dizem que a psicanálise é uma pseudociência?

A psicanálise recebe o rótulo de pseudociência quando é avaliada em conformidade com teorias epistemológicas normativas, que não consideram a especificidade de seu objeto de estudo: a subjetividade e o inconsciente. Por isso, reduzi-la a esse termo é desconsiderar sua singularidade enquanto saber clínico e interpretativo.


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Referências:

Freud, S. (1917). Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 17. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 143-153.

Pasternak, N. & Orsi, C. Que bobagem! São Paulo: Contexto, 2003.

Artigo escrito por
Ricardo Salztrager
Psicanalista e professor associado da UNIRIO e na Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
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