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100 anos depois, a atualidade de Fanon

100 anos depois, a atualidade de Fanon

Há alguma coisa de insólito nas efemérides: comemorar um pensador pode ser equivalente a transformá-lo em instituição e contribuir ao cortejo fúnebre do seu pensamento. Mas, Fanon resiste a isso. Hoje, a disputa que se faz em torno dele marca a tensão entre um pensamento sendo capturado pelos porões da institucionalidade e resistente a ser monumento à instituição.

Essa resistência é aguda porque os problemas evocados pela crítica de Fanon ganham enlevo e atualidade na medida que aquilo pelo qual ele lutou ainda não fora alcançado; aquilo que denunciava permanece vivo, o que leva a implicar todos nós na sua luta.

O racismo e a naturalização da noção de raça não só continuaram como se tornaram hegemônicos. E era contra essa hegemonia que ele lutava.

Do caminho que vai de Pele negra, máscaras brancas até Os condenados da terra, a luta pela transformação e superação do colonialismo são marcas distintivas do seu esforço crítico.

Psiquiatra, crítico e militante revolucionário, esse eterno jovem morto aos 36 anos, nascido na Martinica, deixou obras que influenciariam as lutas antirracistas no mundo inteiro.

Suas contribuições atingiram vários campos do saber – saúde mental, filosofia, artes, etc., – e se afiguram como fundamentais ao pensamento contemporâneo.

Nesse pequeno texto, darei ênfase a duas contribuições que me soam como fundamentais: a relação da memória que consolida a relação dos racializados consigo e a inscrição da subjetividade negra a partir dessa negação.

Frantz Fanon, psiquiatra e pensador anticolonial
Frantz Fanon, psiquiatra e pensador anticolonial. Fonte: Wikimedia Commons

Para Fanon, a colônia foi lugar de perda da memória, que ocupa espaço no imaginário, organizando uma relação de formação subjetiva marcada pela racialização.

Quando isso se naturaliza, permeando o solo da modernidade, a raça, historicamente construída, passa a organizar os espaços sociais; desde acesso a direitos até a relação urbana com as cidades.

Então subjetividade não se separa da objetividade, para Fanon; é a inscrição das relações materiais que acabam por consolidar as formas subjetivas de atuação dos sujeitos implicados.

Se a raça, estruturada pelo colonialismo como forma de controle e naturalização da violência, se consolida como forma administrativa, os impactos na intersubjetividade serão determinantes, reforçando o caráter desumanizante da racialização aos indivíduos demarcados pela raça.

Quais os impactos desse processo? A estrutura colonial – formas administrativas necessárias à consolidação da colonização e legitimação da escravidão – produz o imaginário acerca do negro organizando relações intersubjetivas que circunstanciam os processos de identificações na construção do Eu marcado pela raça.

Para tanto, é preciso inviabilizar a memória desse que será racializado. E, assim, fornecida pela hegemonia do imaginário colonial branco, no interior dessa estrutura, o negro, compulsoriamente desmemoriado, subjetiva e intelectualmente se comporta como um branco.

Aparecendo no discurso colonial como um objeto de violência e expiação, o negro terá subjetivamente uma radical incongruência entre como se vê e como a sociedade o vê.

Nesse sentido, diferente do branco, que tem confirmada suas proposições imaginárias e narcísicas no seio da sociedade, o negro organiza seu processo de identificação a partir da negação de si.

O racismo colonial constrói efetivamente dois mundos e, portanto, se Fanon foi de mãos dadas com Freud, Adler, ou Lacan nas entrelinhas, soltará a mão de todos eles para demonstrar de maneira radical as especificidades das construções neuróticas daquele a quem é negado a identificação narcísica.

E por isso, para Fanon, é necessário que haja “substituição da dialética quando se passa da psicologia do branco para a do negro.

Há algo de novo nessa constatação: em 1952, Pele negra, máscaras brancas já demonstrava que a neurose, não sendo constitutiva da realidade humana (como algo natural e homogêneo), emerge de construções sociais e desdobramentos civilizacionais específicos.

A fonte de neuroses, para aqueles marcados pela racialização, está na situação sócio-cultural que promove um imaginário duplo, fruto de uma dupla referência, e da projeção do branco como ideal.

A grande questão envolta nisso é que a forma de identificação e consolidação de uma identidade imaginária para o racialização se vê tolhida já que tendo sua memória e sua imagem negadas se identificará com o que não é espelho.

Daí que para Fanon o pressuposto de desalienação do negro passa por recobrar sua forma de identificação como um primeiro passo para o tornar-se negro.

Claro que aqui há varias armadilhas como, por exemplo: tornar a identidade finalidade última da ação subjetiva e perder-se em narcisismos identificatórios que temem a relação com a diferença.

Prescindir da identidade, todavia, numa sociedade que identitarizou o racializado é torná-lo objeto do discurso hegemônico. Para entender a profundidade da posição fanoniana é preciso, portanto, levar em consideração que há uma tensão dialética entre um resgate fantasmagórico das formas identificatórias do racializado – daí o resgate da memória – e a construção de uma identidade negativa, aberta e cuja finalidade seja ultrapassar a si mesma como ação subjetiva.

Para Fanon, a própria formação da linguagem está numa relação circular com a estrutura sócio-econômica historicamente delimitada.

Processos imbricados, inseparáveis e incontornáveis que organizam os limites da organização subjetiva e, portanto, pressupõem o indivíduo, a comunidade excluída e a sua relação com o mundo. Por isso que além da filogênese e da ontogênese, Fanon propõe a sociogênese como forma estruturante da subjetividade.

É esse racializado, imbricado até a medula nos processos organizativos da modernidade, que, ao colocar em questão as formas de identificação em um mundo estruturado pela racialização, revela as raízes violentas do processo estruturante do mundo contemporâneo. Essa redefinição da identidade, buscada pelo negro, subverte os sentidos aplicados pela colonização que o considerava um animal.

Para Fanon o processo de desidentificação do negro não pode prescindir de uma reconstrução da identificação do racializado como tal.

Aqui está a dialética da formação subjetiva do racializado, algo ignorado tanto por Adler, Freud ou Lacan: o negro e o racializado de modo geral foram marcados identitariamente na formação moderna, e essa identidade pressuposta organizada pelo colonialismo visa a desumanização e objetificação deles. A recuperação de sua humanização passa por entender o que os significantes racializados indicam.

Essa busca por autodeclaração de identidade reestrutura o imaginário desse indivíduo: para o racializado, existir é assumir ser responsável por si mesmo, em vez de ser nomeado de fora como um objeto. Essa busca por si, por parte do negro, que caracteriza a busca por reconstituir sua humanidade, implica uma compreensão da realidade histórica e dos fundamentos da modernidade.

De fato, a compreensão de si não é uma qualidade desvinculada da realidade histórica: a declaração de identidade por parte do negro é sua maneira de re-existir e recuperar a ideia de humanidade universal.

Essas lições de Fanon, mais do que vivíssimas hoje, permanecem sendo o horizonte de perspectiva da maior parte da humanidade.

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