Psicanálise

Repetição na psicanálise: o conceito nas ideias de Freud

Repetição na psicanálise: o conceito nas ideias de Freud

Por que será que repetimos padrões que nos fazem sofrer - nos relacionamentos, no trabalho, nas escolhas mais íntimas? Para a psicanálise, essa repetição não é acaso, nem falta de força de vontade: é uma expressão do inconsciente.

Neste artigo, vamos entender o que Freud dizia sobre a repetição, como ela se relaciona com a transferência, o trauma e a pulsão de morte, e por que, mesmo sem perceber, somos levados a reviver aquilo que gostaríamos de esquecer.



O que é repetição para a psicanálise?

Para a psicanálise, a repetição é definida como a tendência que os sujeitos possuem de reproduzir e reviver, de maneira inconsciente, algumas experiências de seus passados.

Soa estranho que, por muitas vezes, esta repetição seja de vivências dolorosas, como se todos nós estivéssemos presos a uma força que insistisse em fazer retornar algo que, no fundo, gostaríamos de esquecer ou silenciar.

Em psicanálise, a repetição não é um simples hábito: é uma tentativa inconsciente de lidar com algo do passado que ainda não foi elaborado.

Repetição e inconsciente

Por que sempre repetimos os mesmos padrões amorosos? Por que, meio que à nossa revelia, recorrentemente nos pegamos apaixonados pelo mesmo tipo de pessoa, por mais que saibamos que um relacionamento deste tipo vai acabar inevitavelmente flopando?

Por que sempre nos pegamos brigando com um dos nossos parentes, e sempre pelo mesmo motivo, por mais que tenhamos jurado de pés juntos que nunca mais arranjaríamos qualquer confusão deste tipo? Por que brigas assim se repetem apesar de todos os nossos esforços e tentativas de autocontrole e autodisciplina?

Por que sempre acabamos fracassando em uma prova da faculdade, em uma entrevista de emprego ou mesmo em nossos projetos profissionais por mais que nos dediquemos arduamente para fazer tudo certinho e perfeito?

Seguimos o script direitinho, estudamos, nos preparamos e, no entanto, acabamos derrotados por nós mesmos... Trata-se, aqui, de um elo entre repetição e autossabotagem?

Cena do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, mostrando o casal deitado sobre o gelo, simbolizando memória e repetição.
O filme “O brilho eterno de uma mente sem lembranças” ilustra bem essa nossa tendência à repetição” - Divulgação

Ora, enquanto psicanalista, sempre escuto queixas deste tipo... Tamanha repetição de situações desagradáveis acaba por denunciar que nós não somos sujeitos plenamente conscientes dos nossos atos...

Tampouco temos domínio ou controle sobre tudo o que se passa conosco, muito pelo contrário. E a questão que se coloca é: o que a psicanálise tem a dizer a respeito desta nossa tendência a repetir estas vivências tão desprazerosas?

O conceito de repetição em Freud

Sempre que dou uma aula a respeito do conceito de repetição na psicanálise, eu começo destacando um estranho paradoxo: ora, desde o início de sua prática, Freud se deparava com pacientes repetindo as mesmas tendências e situações... e a todo instante, com cada caso que ele atendia e inúmeras vezes a cada atendimento!

No entanto, a repetição só foi adquirir certa importância e consistência teórica muito tardiamente em seu pensamento. Tal fato se deu somente com as publicações de “A dinâmica da transferência” no ano de 1912 e, sobretudo, de “Recordar, repetir e elaborar” no ano de 1914.

Neles são discutidas as relações entre repetição e sintoma. Já em “Além do princípio de prazer”, de 1920, o tema volta à tona e Freud discute as relações entre repetição, trauma e pulsão de morte.

banner aprenda psicanalise

Como a repetição acontece na clínica?

Existe uma coisa que todo psicanalista, mesmo o mais principiante, consegue inevitavelmente perceber em seus atendimentos: é muito comum que a repetição apareça atrelada ao campo da transferência.

Mas, então, o que vem a ser a transferência?

Em linhas gerais, a transferência é definida como o processo que se instaura quando o sujeito em análise desloca ou transporta determinadas tendências suas para a figura do analista.

Deste modo, um ódio que ele nutre por alguns de seu convívio pode ser facilmente deslocado ao analista. Assim como um amor desmesurado... e o mesmo podendo acontecer com os seus mais intensos ciúmes que, em análise, passarão a ter o analista como alvo.

A transferência, portanto, se instaura quando o paciente passa a repetir com o analista alguns dos seus padrões de comportamento. Daí a articulação entre repetição e transferência.

De fato, os sujeitos são capazes de transferir ao analista uma série infindável de sentimentos, além das mais diversas maneiras de se relacionar.

No que tange a estas últimas, podemos mencionar os pacientes que, diante do analista, passam a sentir-se inferiorizados tal qual se sentem em relação aos demais com os quais se relacionam.

Ou aqueles que, inversamente, se colocam em análise como os que tudo sabem – e, portanto, tentam destituir o analista de seu lugar – tal como se comportam em suas atividades cotidianas.

E inclusive aqueles dispostos a brigar e competir com o analista do mesmo modo que se dispõem a fazer com seus familiares, amigos ou colegas de trabalho.

Óbvio que toda esta repetição causa um imenso sofrimento nestes pacientes...

O manejo clínico da repetição

Conforme destaquei acima, foi a partir de “Recordar, repetir e elaborar” que Freud (1914) concedeu maior importância ao fenômeno da repetição. E isto em meio às mais diversas reformulações que, por estes anos, atingia a sua maneira de trabalhar.

Do método catártico à impossibilidade da lembrança total

Ora, sabemos que logo após o abandono do método catártico, Freud lançou como proposta clínica conduzir o paciente a um árduo trabalho de rememoração de seu passado.

Tal trabalho teria por função conduzir à consciência seus desejos e tendências infantis e recalcadas. Com isto, os sintomas seriam relativamente apaziguados e a neurose devidamente explicada!

No entanto, o que se modifica a partir de meados da década de 1910, foi a descoberta da impossibilidade de tamanha empreitada.

Ora, o projeto de conduzir o paciente a uma total rememoração de seu passado demonstrou-se impossível! Algo muito óbvio e que, no entanto, Freud levou este tempo todo para descobrir...

Da lembrança à atuação

Todavia, não houve motivos para maiores pânicos... Ou seja, se por um lado, Freud descobriu que era impossível conduzir à consciência a totalidade do material recalcado de seus pacientes, por outro lado, ele também descobriu ser desnecessário forçar tamanho trabalho... E isto porque o que se buscava, por muitas vezes, estava manifesto e repetido no próprio presente! Mais exatamente pela via da transferência!

Assim, Freud veio a problematizar a impossível tarefa de plena rememoração da parte de seus pacientes, para reconhecer que, na maioria das vezes,

o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e recalcou, mas expressa-o pela atuação ou atua-o. (...) Repete-o, sem, naturalmente saber o que está repetindo” (FREUD, 1914, p. 165).

Neste contexto, suas ilustrações são bem elucidativas. Ele conta, por exemplo, o caso de um paciente que não conseguia recordar-se do quanto costumava ser crítico e desafiador em relação aos pais, mas que, ao invés de se lembrar, passou a comportar-se exatamente desta maneira com o analista.

Houve também o caso do sujeito que resistia em lembrar-se do quanto fracassou na infância, mas que, em análise, repetiu tal tendência, produzindo associações confusas e fazendo com que o tratamento não tivesse êxito.

Finalmente, diz ele ter atendido um paciente que não se recordava do quanto se envergonhara de suas atividades sexuais infantis. No entanto, agora demonstrava vergonha de estar em análise, inclusive, escondendo dos outros que encontrava-se sob tratamento.

Neurose de transferência

Portanto, ao que tudo indicava, as repetições do sujeito em análise eram tantas que Freud (1914) postulou ser inevitável que, durante o tratamento analítico, fosse estabelecida uma espécie de “neurose de transferência”.

Por tal nomenclatura ele designou o campo próprio de atualização dos conflitos, inibições e sofrimentos do paciente, agora, dirigidos à figura do analista.

Segundo Freud, o sujeito não se lembra do que esqueceu - ele repete. É na repetição que o inconsciente mostra aquilo que ainda não foi compreendido.

A função da análise: transformar a repetição em elaboração

De acordo com Freud, estabelecida a neurose de transferência, o paciente teria, portanto, a oportunidade de encarar seu sofrimento frente a frente.

Assim, passaria a combatê-lo com todas as forças, empreendendo uma incisiva luta para livrar-se do que tanto lhe incomodava. Com efeito,

quando tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia” (FREUD, 1912, p. 119)

E com isto Freud simplesmente almejou dizer que não podemos vencer um inimigo ausente ou fora de nosso alcance. Em outros termos, seria apenas com o conflito presentificado que se daria todo o combate em jogo na análise.

O papel do analista no manejo da repetição

Mas então, qual deve ser o manejo do psicanalista diante de toda esta repetição? Há algum meio razoável de se manejar esta situação?

Ora, sempre que me fazem perguntas deste tipo, eu costumo responder, em primeiro lugar, que elas permitem uma série de encaminhamentos possíveis, a depender da maneira de cada psicanalista atuar...

Quanto a mim, posso dizer que, diante de tantas situações como estas e com as quais me deparo a todo instante, cabe ao psicanalista trabalhar para fazer com que o paciente fale mais a respeito destas tantas repetições.

Neste sentido, a meu ver, diante destas tantas repetições, o psicanalista deve sempre fazer algumas perguntas e, a partir destas questões levantadas, estimular o trabalho de associação livre do sujeito em análise.

Assim, mediante as associações livres, passa a ser possível ao paciente elaborar estes tantos comportamentos que, mesmo que à sua revelia, insistem em se repetir.

Da repetição à elaboração

O sujeito em análise irá falar, por exemplo, de seus amores, desejos, ódios, ciúmes, invejas, dentre tudo o que ainda lhe é fonte de conflito e que, portanto, influencia seus comportamentos repetitivos.

Em meio a tantas associações, ele também será capaz de deparar-se com uma série de tendências até então inconscientes, mas que, a partir de agora, podem ser reconhecidas com maior ou menor dificuldade.

Deste modo, fica marcado que o trabalho de produzir um discurso sobre o que é inconsciente – associando livremente a respeito do que antes ficava relegado ao silêncio – conduz a uma elaboração. Com isto, uma série de mudanças pode ser observada no quadro do paciente.

Na análise, o passado não é revivido como lembrança, mas atualizado como experiência viva - é aí que nasce a possibilidade de mudança.

Compulsão à repetição e pulsão de morte

Por fim, vale também lembrar que todas estas questões voltam a ser analisadas em “Além do princípio de prazer”, quando Freud (1920) vai conduzir o fenômeno da compulsão à repetição à sua radicalidade.

O foco agora são as tantas repetições que ocorrem na transferência e que remetem a tendências bastante desagradáveis, sem trazer qualquer espécie de prazer ao sujeito em análise.

Quanto a este ponto, Freud é bastante enfático ao afirmar que os comportamentos ou eventos repetidos em época alguma podem ter provocado prazer a seus pacientes, mesmo quando se deu suas primeiras ocorrências.

Tampouco era-lhe possível vislumbrar certa satisfação inconsciente associada a tais repetições.

Em geral, tratava-se de situações que frustraram o sujeito de maneira contundente, instaurando uma grande cicatriz narcísica, mas que, paradoxalmente, ele não cessava de repetir.

Fica, portanto, difícil explicar o porquê disso, permanecendo a impressão de haver um grande mistério em torno deste fenômeno.

Cartaz do filme O Efeito Borboleta, com rostos dos protagonistas em close, remetendo às consequências de reviver o passado.
O filme “Efeito borboleta” também ilustra essa nossa capacidade de repetir determinadas situações que jamais promoveram quaisquer espécies de prazer - Fonte: Divulgação.

Exemplos de repetições desprazerosas

Neste contexto, Freud fornece algumas interessantes ilustrações de como a repetição destas tendências por demais desprazerosas se manifesta na clínica.

Por exemplo, há o caso do sujeito que quando criança fora sumariamente humilhado pela família ou colegas e que, como se estivesse tomado por uma espécie de destino maligno, passasse o resto da vida sofrendo os mais diversos rebaixamentos.

Nesta mesma perspectiva, há o caso do sujeito que foi vítima de um fracasso intelectual na infância, ficando presa de uma frustração bem incisiva e que, ao longo dos anos, repetiu esta situação, jamais obtendo sucesso na vida ou conseguindo realizar coisa alguma.

Finalmente, há aquele que suportara os maiores castigos e as mais duras palavras na infância, coisas que, como se à sua revelia, insistissem em se repetir em cada relação que ele estabeleceu ao longo da vida.

Ora, o mais importante a ser destacado de todos estes exemplos é que, em nenhum deles, houve a promoção de qualquer tipo de prazer, seja no passado, seja em suas repetições.

Todavia, as situações em questão se repetiam de forma insistente. Por isso, Freud declarou estar seguro de que por detrás desta compulsão à repetição parecia haver uma força que ele qualificou de “demoníaca” (Freud, 1920, p. 47).

Tamanha seria a intensidade desta força que, inclusive, ficaria impossível domesticá-la, amansá-la ou mesmo submetê-la.

De acordo com Freud, esta força por demais imperativa e impetuosa é a pulsão de morte: é ela o que impele o sujeito a reproduzir suas diversas tendências desprazerosas, por mais que ele lute incisivamente contra.

Aí está, portanto, a repetição tomada em sua radicalidade: somos todos tomados por forças em muito desconhecidas, indomáveis e que nos levam a reproduzir determinadas tendências desagradáveis em todos os campos das nossas vidas. Diante de todo este quadro, muito pouco podemos fazer...

Cursos para se aprofundar no tema da repetição na psicanálise

  • Os Mistérios do Inconsciente - Ricardo Salztrager
    Uma imersão na obra A Interpretação de Sonhos, de Freud, que revolucionou a compreensão do inconsciente. O curso desvenda como os sonhos são formados, o papel dos mecanismos psíquicos e o que os pesadelos revelam sobre os desejos e conflitos reprimidos.

  • Freud e o Amor - Ricardo Salztrager
    Analisa como nossas escolhas amorosas e afetivas são atravessadas por repetições inconscientes. O curso explora a busca de completude no outro e os padrões que reproduzimos nas relações, aproximando teoria e autoconhecimento.

  • Freud e os Fundamentos da Psicanálise - Ricardo Salztrager
    Apresenta as bases conceituais da psicanálise, abordando temas como inconsciente, transferência, pulsão e trauma. Ideal para compreender o pensamento freudiano em sua totalidade, incluindo o papel da repetição e da elaboração na clínica.

  • Transferência e Resistência na Clínica Psicanalítica - Renata Wirthmann
    Investiga dois conceitos centrais da prática analítica: a transferência, em que o sujeito repete vínculos inconscientes na relação com o analista, e a resistência, que impede o acesso ao conteúdo reprimido. Um estudo profundo sobre manejo e escuta clínica.

  • Freud Fundamental: As Ideias e as Obras - Pedro de Santi
    Uma introdução clara e envolvente às principais ideias de Freud, da teoria dos sonhos ao conceito de inconsciente. O curso mostra como suas descobertas transformaram para sempre o modo de compreender o sofrimento humano e a repetição de padrões psíquicos.


Perguntas frequentes

O que significa repetição na psicanálise?

Em psicanálise, a repetição é definida como a tendência que o sujeito possui de, inconscientemente, reviver e reproduzir algumas tendências e comportamentos de seu passado, sobretudo aquelas mais desprazerosas.


Por que repito sempre os mesmos erros?

Freud considera que nós repetimos sempre os mesmos erros por estarmos submetidos a uma espécie de força que ele qualificou de indomável e de “demoníaca” chamada “pulsão de morte”.


Como a psicanálise lida com a repetição de padrões?

A psicanálise trabalha no sentido de fazer com que, através do processo de associação livre, o paciente consiga elaborar suas tendências repetitivas.


A repetição tem cura?

A psicanálise parte do pressuposto de que, a partir de um trabalho de elaboração das tendências inconscientes, o paciente consiga, de certa maneira, fazer algo diante de seus comportamentos repetitivos.


banner cursos fremmium casa do saber




Referências:

Freud, S. (1912). A dinâmica da transferência. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 107-119.

_____. (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 159-171.

_____. (1920). Além do princípio de prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-75.

Artigo escrito por
Ricardo Salztrager
Psicanalista e professor associado da UNIRIO e na Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.