
Idealismo alemão é o nome dado ao movimento filosófico que, entre os séculos XVIII e XIX, redefiniu as bases do conhecimento, da subjetividade e da própria noção de realidade. Neste artigo, você encontrará um panorama completo desse desenvolvimento - de Kant a Hegel - passando pelas contribuições de Fichte, Schelling e pensadores menos conhecidos, mas decisivos para essa tradição.
Ao longo do texto, apresentamos conceitos centrais, diferenças entre os autores, tabelas comparativas, explicações acessíveis e referências para aprofundamento, oferecendo uma visão clara e estruturada desse período fundamental da história da filosofia.
O artigo abordará os seguintes tópicos:
O que é o idealismo alemão?
O idealismo alemão é uma corrente filosófica que se desenvolveu do fim do século XVIII até o fim da primeira metade do século XIX, caracterizada por um projeto filosófico comum de fundamentar o conhecimento e a ação humanas na razão e na liberdade.
Principais pensadores do idealismo alemão
Immanuel Kant (1724-1804) pode ser considerado o iniciador desta corrente filosófica. Sua filosofia inaugurou uma nova forma de pensar problemas clássicos da filosofia. No centro de sua proposta, está a razão como fonte de todo conhecimento seguro da realidade e como princípio da moralidade e liberdade humanas.
Para além de Kant, são considerados como principais expoentes do idealismo alemão Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Outras figuras menos conhecidas também foram fundamentais no seu desenvolvimento, como Karl Leonhard Reinhold (1757-1823) e Salomon Maimon (1753-1800).
Portanto, os principais nomes do idealismo alemão são:
- Immanuel Kant*
- Fichte
- Schelling
- Hegel
Apesar das muitas diferenças entre seus sistemas, os expoentes do idealismo alemão compartilham um projeto filosófico comum: fundamentar nosso conhecimento da realidade e nossa ação como agentes morais inteiramente na razão.
Para eles, a razão é uma faculdade capaz de determinar inteiramente a si mesma, sem se subordinar a forças ou influências exteriores, irracionais ou não-racionais.
* Embora, a depender do uso do termo, Kant possa ser visto não como parte do idealismo alemão, mas como figura que o inspirou, sua importância para o desenvolvimento dessa corrente é incontestável.
O uso mais disseminado do termo tende, por isso, a incluí-lo entre as principais figuras dessa tradição. Por isso, um termo mais específico para se referir aos membros do idealismo alemão depois de Kant é idealismo pós-kantiano.

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Principais ideias do idealismo alemão
O idealismo alemão parte da convicção de que a razão é o fundamento tanto do conhecimento quanto da liberdade humana.
Os filósofos dessa corrente procuraram explicar como a razão estrutura a realidade e como a ação moral pode se basear em princípios universais.
Principais ideias:
- A razão como princípio da realidade:
A realidade é inteligível porque segue leis racionais. O mundo é compreensível à medida que a razão o organiza. - A autonomia do sujeito:
O ser humano é livre quando age segundo leis que a própria razão reconhece como válidas, não por impulso ou autoridade externa. - Conhecimento a priori:
Certas verdades não vêm da experiência, mas das estruturas universais racionais que tornam a experiência possível. - Unidade entre razão teórica e prática:
Conhecer e agir são duas dimensões de uma mesma racionalidade - compreender o mundo e agir moralmente têm por base uma mesma razão. - A dialética como processo de desenvolvimento:
Em Hegel, a realidade e o pensamento se transformam por meio de contradições internas que levam ao autoconhecimento e à liberdade.
Por que idealismo?
Hoje, quando falamos de idealismo, muitas vezes, pensamos que se trata de um certo otimismo em relação às coisas ou uma idealização da realidade que não corresponderia àquilo que ela de fato é.
Entretanto, o sentido em que se fala de “idealismo” quando falamos de idealismo alemão é bastante diverso.
Quando se fala de idealismo aqui, se tem em mente sobretudo a compreensão desses autores de que não há separação ou oposição entre a razão e realidade, tal qual a conhecemos e na qual agimos.

A razão e realidade no idealismo alemão
A razão, entendida como um princípio que organiza o mundo segundo leis e determinações universais, não seria algo que estaria “apenas” na nossa cabeça e que o mundo, tal como o vivemos e conhecemos, não necessariamente seguiria.
Antes, ela seria diretamente responsável pelo fato de que o mundo em que vivemos é como é e que nós o experimentamos tal como o experimentamos. Ou seja, a nossa experiência pode ser explicada de maneira racional, pois o próprio mundo - ao menos, em nossa experiência dele - é organizado segundo princípios racionais.
Portanto, esses princípios não são meramente idealizações da realidade que não necessariamente corresponderiam a ela, mas são aquilo que explica verdadeiramente porque a nossa experiência da realidade é como ela é.
Convencionou-se chamar essa posição de “idealismo”, entre outras razões, pelo papel privilegiado que ela confere, em sua visão do mundo, a princípios racionais universais que tornariam a realidade inteligível ao sujeito. Assim, a forma que o mundo é corresponderia à maneira com que o sujeito o conheceria por meio de suas “ideias”.
É importante notar, porém, que o termo “idealismo” era bastante controverso já na época dos autores a que nos referimos ao falar de “idealismo alemão”, e por isso é necessário bastante cuidado para não tirar conclusões precipitadas a partir de seu uso. (como, por exemplo, a de que esses autores pensariam que o mundo só existe na consciência do sujeito que o representa, ou outras noções semelhantes que se mostram bastante inapropriadas para a compreensão do seu pensamento).
O idealismo alemão e o Iluminismo
Como afirma Pippin em seu livro Modernism as a Philosophical Problem, Kant pode ser visto como um dos principais expoentes do iluminismo alemão, que é caracterizado, entre outras coisas, pela busca por conciliar razão e religião.
Tal como os pensadores do iluminismo em geral, Kant busca estabelecer os fundamentos da vida humana na razão; daí que, famosamente, Kant tenha afirmado que o “Esclarecimento [ou seja, o Iluminismo] é a saída da humanidade da sua menoridade”, de modo que o ser humano passe a se orientar em sua vida pela sua própria razão.
Diferentemente, porém, de outros representantes do iluminismo, sobretudo de vertente francesa ou inglesa, Kant acredita ser possível e necessário conciliar a razão com a fé, e fazer essa conciliação, ela mesma, com base em princípios racionais.
“Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua menoridade, pela qual ele próprio é responsável. A menoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro.
É a si próprio que se deve atribuir essa menoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar seu entendimento sem a tutela de outro.
Sapere aude! Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é portanto a divisa do Esclarecimento.” (Kant, “O que é o Esclarecimento?”, Tradução de Luiz Paulo Rouanet)
É assim que, famosamente, em sua Crítica da Razão Pura, Kant afirma que “precisou suspender o conhecimento para dar lugar à fé”.
Com isso, Kant quer dizer que, para que seja possível ter um conhecimento plenamente racional e certo do mundo tal como o experimentamos, é necessário, por outro lado, reconhecer os limites desse conhecimento.
Em função desses limites, torna-se possível admitir uma dimensão da vida humana que, embora fundada na razão, não é passível de um conhecimento teórico, e, por isso, necessita do recurso à fé.
De forma semelhante, os seus sucessores buscarão mostrar como uma determinação clara da natureza do nosso conhecimento, muito antes de levar à refutação da religião e das verdades da fé, é inteiramente compatível com elas, uma vez que tanto a religião quanto nosso conhecimento teórico e científico do mundo estão fundados em uma e a mesma razão.
Sugestão de Leitura:
- Lucas Nascimento Machado, “Hegel e a relação entre ceticismo e filosofia: ceticismo e o problema da autodeterminação no idealismo alemão”. Editora Dialética, 2022.
- Will Dudley, “Idealismo Alemão”, tradução de Jacques A. Wainberg, Editora Vozes, 2013
Kant, a filosofia crítica e o idealismo transcendental

Síntese da seção:
- Para Kant, não podemos conhecer as coisas em si mesmas, mas apenas como aparecem para nós, como fenômenos.
- Dos fenômenos, porém, podemos ter um conhecimento inteiramente racional e universal, ou seja, a priori.
- A razão não apenas fornece os princípios universais pelos quais conhecemos os fenômenos, mas também o princípio que orienta a nossa ação como seres racionais e livres: o imperativo categórico.
A filosofia crítica, entendida como a filosofia que Kant apresenta pela primeira vez em sua Crítica da Razão Pura, é uma filosofia que se propõe a estabelecer os limites do conhecimento e da razão humana e determinar os seus princípios universais.
Segundo Kant, o resultado do exame crítico de nosso conhecimento seria a posição caracterizada por ele como um idealismo transcendental.
O idealismo transcendental é a posição segundo a qual as condições da nossa experiência do mundo não nos permitem dizer nada sobre o que as coisas são em si mesmas, mas, ao mesmo tempo, valem como condições universais da nossa percepção do mundo e dos objetos no mundo, sem as quais não seria possível termos uma experiência dele.
Kant escreve famosamente, em seu Prolegômenos a toda metafísica futura, que teria sido Hume que teria o despertado de seu sono dogmático.
Para Kant, isso significava que teria sido Hume que teria o feito compreender que, por meio de nossos conceitos, não podemos conhecer as coisas tais como elas são em si mesmas, mas sim tal como aparecem para nós. É daí que surge uma das distinções mais fundamentais da filosofia kantiana: a distinção entre coisa em si e fenômeno.
Entendendo a distinção entre coisa em si x fenômeno

Para explicar essa distinção para meus alunos, frequentemente faço uso da seguinte imagem: Imagine que, durante toda a sua vida, você tivesse usado lentes vermelhas nos seus olhos.
Para você, todas as coisas teriam uma espécie de tonalidade vermelha, e, como você sempre viu o mundo a partir dessas lentes, você imaginaria que essa vermelhidão é uma característica das próprias coisas, daquilo que elas são em si mesmas, e não do modo com que aparecem para você.
Na verdade, porém, não são as coisas que são em si mesmas vermelhas, mas sim elas só aparecem para você como vermelhas, porque é assim que seu modo de as perceber faz com que elas apareçam.
Para Kant, as lentes com as quais percebemos o mundo, porém, diferentemente de uma lente vermelha nos olhos, são lentes que não podemos tirar, pois, sem elas, não seria possível termos nenhuma experiência do mundo.
Essas lentes, segundo Kant, são as nossas formas puras da intuição – o espaço e o tempo – e as formas puras do entendimento – os conceitos mais fundamentais, as categorias por meio das quais pensamos aquilo que aparece para nós no espaço e no tempo.
Tal como o vermelho da lente, porém, não é uma propriedade da própria coisa, mas do nosso modo de percebê-la, para Kant, espaço e tempo não são propriedades das coisas em si mesmas, mas sim são apenas o modo pelo qual percebemos as coisas, de maneira a termos consciência delas.
O conhecimento a priori dos fenômenos
Pode-se pensar, então, que Kant defenda uma espécie de relativismo, em que nunca podemos atingir verdades universais porque “cada um veria as coisas da sua própria maneira”. Nada, porém, mais longe da verdade.
Voltemos ao exemplo da lente vermelha: é verdade que, por se tratar de uma lente, a forma com que ela faz com que as coisas apareçam para nós não nos diz algo sobre as coisas em si mesmas; porém, se você olha as coisas com lentes vermelhas, então, é universalmente válido, para tudo que você vê, que tudo que você vê, ou as coisas tais como elas aparecem para você, serão sempre vermelhas.
A lente, então, fornece uma condição da minha experiência do mundo, não tal como é em si mesmo, mas como ele aparece para mim. Se não posso ter conhecimentos de validade universal sobre o mundo tal como ele é em si mesmo a partir dessa condição, posso, porém, ter um conhecimento de validade universal sobre o mundo tal como ele aparece para mim.
É por isso que, segundo Kant, é possível termos um conhecimento inteiramente racional e universal dos objetos da experiência - em termos de Kant, um conhecimento a priori, e, mais especificamente, sintético a priori, pois nos ensina algo dos objetos da experiência que não resulta apenas da análise dos conceitos que usamos para nos referir a eles.
Se podemos ter esse conhecimento a priori, é porque esse conhecimento não depende das coisas em si mesmas, mas das condições, leis e princípios universais que determinam como os objetos aparecem para nós - aquilo que eles são, não em si mesmos, mas como fenômenos.
O idealismo transcendental, assim, ao mesmo tempo em que barra o conhecimento das coisas em si mesmas, fornece a garantia de que o mundo, tal como o experimentamos, pode ser conhecido de modo inteiramente racional e segundo princípios inteiramente racionais, pois as condições para que ele apareça como aparece para nós se encontram em nós mesmos, e não nas coisas lá fora.
Da razão teórica à razão prática
Assim como a razão fornece os princípios universais do nosso conhecimento teórico dos objetos da experiência, ela também forneceria, segundo Kant, os princípios universais que determinam aquilo em que consiste a ação moral e como devemos agir para agirmos moralmente.
A ação moral, segundo Kant, é aquela em que somos determinados a agir por puro respeito ao princípio universal que nossa razão imporia à nossa ação, o imperativo categórico: aja de modo que possa querer que a máxima de sua ação valha como lei universal.
Consideremos um exemplo: digamos que eu queira mentir para uma pessoa, dizendo que aquilo que quero vender para ela é muito mais valioso do que de fato é, pois, assim, eu me beneficiaria.
Para Kant, essa ação não é moral, pois não obedece ao imperativo categórico: afinal, por mais que possa querer mentir para meu próprio benefício, não posso querer que todos ajam segundo a máxima “devo mentir quando isso me beneficiar”, pois não apenas isso me prejudicaria, mas também tornaria toda ordem social insustentável.
Só quando o ser humano age não apenas em conformidade à lei moral, ao imperativo categórico, mas por respeito à lei moral, que ele é verdadeiramente livre, pois age seguindo a lei da sua própria razão, e não por motivações que venham de fora dela, motivações sensíveis como a busca pelo prazer.
É assim que Kant pode ser visto como fundador da liberdade entendida como autonomia ou seja, não como liberdade negativa, de não fazer algo, mas sim como liberdade positiva, de agir segundo uma lei que você mesmo estabelece para si próprio.
Segundo uma anedota, os habitantes da cidade de Kant ajustariam os seus relógios quando ele passava na rua, pois, por manter uma rotina rigorosa, ele sempre fazia a sua caminhada ao fim da tarde exatamente no mesmo horário.
A única vez em que teria se atrasado em sua caminhada, segundo a anedota, seria no dia da queda da Bastilha. Apesar de não ser uma história comprovada, a anedota se tornou famosa por ser associada à visão rigorosa que Kant teria sobre a moral, acreditando que ser livre é seguir firmemente as regras que impomos a nós mesmos.
Algumas das obras importantes de Kant
A tabela abaixo resume algumas das principais obras de Kant, destacando seu papel na construção da filosofia crítica e no estabelecimento dos limites e condições do conhecimento humano.
| Obra | Data de Publicação | Tema |
|---|---|---|
| Crítica da Razão Pura | 1781 | Determinação os limites do conhecimento humano |
| Crítica da Razão Prática | 1788 | Determinação dos princípios da ação moral |
| Crítica da Faculdade do Juízo | 1790 | Determinação dos fundamentos do juízo estético |
Sugestão de Leitura:
- Do autor: “O que é o Esclarecimento?”, tradução de Estevão C. de Rezende Martins, Companhia das Letras e Penguin, 2022. Também disponível em tradução de Luiz Paulo Rouanet no site Crítica da Rede.
- Sobre o autor: Introdução à Filosofia Crítica de Kant, Joãosinho Beckenckamp, Editora UFMG, 2017.
Recepção e Críticas ao idealismo transcendental de Kant

A Crítica da Razão Pura, de Kant, suscitou amplo debate, sendo abraçada fervorosamente por alguns, e rigorosamente criticada por outros. Do lado dos defensores, uma das figuras mais relevantes foi Karl Leonard Reinhold (1757-1823), que buscou contribuir para a fundamentação da filosofia crítica de Kant, por meio de uma discussão acerca dos primeiros princípios da consciência.
Foi isso que o levou a formular, em sua Filosofia dos Elementos, o princípio da consciência, segundo o qual, “na consciência, a representação é distinguida pelo sujeito tanto do objeto quanto do sujeito e referida a ambos”.
Seria a partir desse princípio, segundo Reinhold (ao menos, no período da sua Filosofia dos Elementos), que se poderia derivar o todo do conhecimento, tal como Kant haveria o apresentado para nós. As contribuições de Reinhold para a filosofia crítica foram decisivas para o desenvolvimento posterior do idealismo alemão e influenciaram muito particularmente Maimon e Fichte.
Por outro lado, a filosofia kantiana também foi alvo de severas críticas. Friedrich Heinrich Jacobi (1743-1819) é famoso por ter sido um dos primeiros a criticar a distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si, afirmando que “não se pode entrar na filosofia kantiana sem a coisa em si, e não se pode permanecer nela com ela”.
Com isso, Jacobi queria dizer que haveria uma contradição implícita na compreensão de Kant sobre a questão: afinal, se não podemos conhecer nada sobre a coisa em si, como podemos saber que não podemos conhecê-la?
Embora diferentes seguidores de Kant, sobretudo Reinhold, tenham buscado responder a essas objeções, elas encontraram grande ressonância, sendo aprofundadas por autores céticos como Schulze e Maimon, sendo este último particularmente importante para o desenvolvimento do idealismo alemão.
Sugestão de Leitura:
- Entre Kant e Hegel (org. Joãosinho Beckenckamp), Editora EDIPUCRS, 2004.
- Ivanilde Aparecida Vieira Cardoso Fracalossi. “Reinhold e a filosofia pós-kantiana”. KANT E-PRINTS (ONLINE), v. 19, 2024.
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Maimon e a revisão do conceito de coisa em si

Síntese da seção:
- Para Maimon, Kant acertou na necessidade de estabelecermos o limite de nosso conhecimento, mas não foi longe o diante nesse projeto.
- Para sermos consequentes com a proposta da filosofia crítica, devemos aceitar que não há a coisa em si, se com isso queremos dizer algo que o objeto é fora da consciência e independentemente dela. Todo objeto é objeto para a consciência.
- Na medida que todo objeto depende da consciência, podemos conhecê-lo racionalmente, ao conhecer as leis de nossa consciência segundo as quais esse objeto é construído para ela.
Segundo Solomon Maimon, Kant, ao mostrar que o mundo tal como experimentamos não é algo que as coisas seriam em si mesmas, mas sim aquilo que elas são para a nossa consciência, teria dado um passo indispensável para a fundamentação de nosso conhecimento do mundo.
Para ser consequente com esse passo, porém, seria necessário descartar ou, ao menos, revisar de maneira fundamental a nossa compreensão da noção de “coisa em si”. Segundo Maimon, não existe algo que as coisas sejam, independentemente do que são para a nossa consciência.
Voltemos ao exemplo da lente vermelha: certamente, posso imaginar que eu possa ver as coisas sem que elas sejam todas vermelhas; mas, posso, porém, imaginar o que as coisas seriam, sem que, o que quer que eu imagine assim, seja algo de que sou consciente?
Para Maimon, a resposta é necessariamente negativa, porque é uma contradição de termos: todo objeto é sempre, enquanto objeto, Gegenstand, termo alemão para “objeto” que significa literalmente “estar de frente”.
O objeto é, assim, algo que se põe em frente a alguém, algo que é para uma consciência, e que, por isso mesmo, pode ser conhecido apropriadamente, desde que tenhamos acesso às leis a partir das quais esse objeto foi construído pela e para a consciência.
Se temos acesso a essas leis, então, temos um conhecimento a priori, universal e necessário desse objeto. Se não temos acesso a essas leis e, portanto, só somos conscientes do objeto, mas não de como ele é produzido pela consciência, então, temos apenas um conhecimento a posteriori do objeto, que não é nem universal, nem necessário.
Daí que Maimon, diferentemente de Kant, não acredite ser possível nenhum conhecimento universal e necessário dos objetos da experiência e, por isso, considere-se um cético.
“Meu ceticismo, pelo contrário, muito antes de dizer algo a favor do dogmatismo, se opõe a ele ainda mais do que a filosofia crítica o faz. Ele assume como fato da consciência dois tipos de cognição, a saber, conhecimento a priori e a posteriori; ele encontra as características de necessidade e universalidade no primeiro, mas não no segundo.” (Maimon, Cartas de Filaletes a Enesidemo)
Apesar de ainda ser relativamente pouco estudado, acredito que as contribuições de Maimon para o desenvolvimento do idealismo alemão são fundamentais e ainda não receberam o reconhecimento adequado.
De fato o próprio Fichte foi o primeiro a insistir na relevância de seu pensamento e estudiosos contemporâneos estejam cada vez mais apontando a importância de Maimon, não apenas como precursor de figuras do idealismo alemão mais conhecidas, mas também como pensador próprio e original (segundo Manfred Frank, o “último dos grandes pensadores a ser descoberto”).
Algumas Obras Importantes de Maimon
A seguir, apresentamos algumas das principais obras de Maimon citadas no texto, evidenciando como seu pensamento revisa aspectos fundamentais da filosofia kantiana, especialmente a noção de coisa em si.
| Obra | Data de Publicação | Tema |
|---|---|---|
| Ensaio Sobre a Filosofia Transcendental | 1790 | Revisão da filosofia transcendental de Kant |
| Autobiografia | 1793 | História de vida de Maimon e a sua ligação com a sua filosofia |
| Ensaio de uma nova lógica ou teoria do pensamento | 1794 | Desenvolvimento de uma teoria sobre as bases do conhecimento e da construção dos objetos para a consciência |
Sugestão de Leitura:
- Do autor: The Autobiography of Solomon Maimon: The Complete Translation, traduzido por Paul Reiter, Ed. por Yitzhak Y Melamed e Abraham Socher, Editora Princeton University Press, 2020.
- Sobre o autor: Diogo Ferrer, “O Ceticismo, entre Maimon, Fichte e Hegel”, in Problemata: International Journal of Philosophy, 11. n. 4 (2020), pp. 10-29.
Fichte e o Eu Absoluto

Síntese da seção:
- Para Fichte, o Eu Absoluto é o princípio fundamental da realidade - aquilo que é por si mesmo e para si mesmo.
- Todo objeto só é compreensível em relação a uma consciência: não há “coisas em si”, pois todo objeto só é objeto para uma consciência.
- O Eu Absoluto não é o eu individual, mas a estrutura universal da subjetividade que torna o conhecimento possível.
- O ser humano age movido pela razão para superar a oposição entre o Eu e o Não-Eu - entre sujeito e objeto.
- Essa superação é um processo infinito: a liberdade é sempre buscada, nunca plenamente alcançada.
Profundamente influenciado pelas críticas de Schulze a Kant e pelas revisões que Maimon propõem à filosofia kantiana, Fichte pensa que, para fundamentar de maneira definitiva a filosofia crítica, é preciso estabelecer aquele que seria o princípio primeiro a partir do qual se poderia explicar o nosso conhecimento do mundo e nossa ação sobre ele: o Eu Absoluto.
O Eu Absoluto deve ser compreendido como o fundamento de toda a realidade que é inteiramente para si mesmo, e não para outro.
Pensemos como alguém que quer buscar o princípio primeiro a partir do qual tudo seria: esse primeiro princípio, por ser o fundamento de todas as coisas, não pode depender de outras coisas, mas precisa ser por si mesmo.
Para Fichte, porém, nenhum objeto é por si mesmo, afinal, seguindo Maimon, Fichte considera que todo objeto só é o que é para uma consciência, e, portanto, depende da consciência para ser o que é.
O fundamento último da realidade não pode estar, portanto, em um objeto, que é apenas para a consciência e em dependência dela, mas têm de estar em algo que é o que é unicamente em função de si mesmo e para si mesmo. É isso, então, que Fichte chama de “Eu Absoluto”.

Eu Absoluto, Objeto e Consciência
Esse Eu Absoluto, embora seja condição de nossa consciência de nós mesmos (na medida em que é condição de toda a realidade), não pode ser identificado com ela, muito menos ser objeto dela.
Não pode ser identificado com a nossa consciência de nós mesmos, porque ela depende da consciência que temos dos objetos. Nunca tenho uma consciência “pura” de mim mesmo, mas apenas uma consciência de mim mesmo estando consciente de algo (como do meu computador em que digito esse texto, por exemplo).
Não pode ser objeto da minha consciência, por outro lado, porque isso seria, justamente, uma contradição de termos (aquilo que é inteiramente para si mesmo não pode ser objeto, que, por definição, é o que é para um outro).
Ao mesmo tempo, porém, é preciso admitir que esse Eu Absoluto seja o fundamento de toda a realidade e de toda minha experiência da realidade: afinal, se todo objeto é para um outro, é preciso que exista aquilo para que o objeto é.
Esse “aquilo”, porém, não pode ser a nossa consciência individual, pois ela mesma é algo que só aparece para nós por meio da sua relação com um outro, ou seja, com o objeto de que ela é consciente (não seria consciente de mim mesmo agora se não fosse consciente do computador em que digito, do copo em que bebo etc.).
Para além da nossa consciência individual, empírica dos objetos, e dos próprios objetos, portanto, é preciso existir algo que seja para si mesmo que torne possível a existência daquilo que é pelo fato de ser para outro. E é isso que Fichte chama, por fim, de Eu Absoluto.
Imagino que todos que se deparam com esse conceito de Fichte experimentam uma grande perplexidade em um primeiro momento. Afinal, ao falar de “Eu Absoluto”, Fichte parece querer sugerir justamente aquilo que dissemos antes não ser verdadeiro dos autores do idealismo alemão: que é o nosso eu que cria a realidade, e que, por isso, ele é “absoluto”.
Não é bem isso, porém, que Fichte tem em vista com esse conceito. Para compreender melhor, podemos fazer uma analogia com o espelho: no espelho, todas as coisas se refletem, menos uma: o próprio espelho.Todas as coisas que se refletem no espelho são “nele” e aparecem nele, “para ele”; o próprio espelho, porém, não.
Com o conceito de Eu Absoluto, poderíamos dizer que Fichte pensa a realidade como um grande espelho: tudo que é, só é na medida em que é espelhado nele (em que, é, portanto, para ele), a não ser o próprio espelho: o espelho é “para si” mesmo, porque ele, em vez de aparecer para alguém, é aquilo em que e para que todas as coisas aparecem.

Eu Absoluto e revisão da ideia de “coisa em si”
A concepção de Fichte de Eu Absoluto dá continuidade, então, à revisão do conceito de coisa em si em Kant: se podemos conhecer a realidade de modo inteiramente racional e agir de modo racional nela, isso se deve ao fato de que é uma mesma e única racionalidade que estrutura a realidade tal como ela é e a minha consciência dela – o Eu Absoluto.
Assim, não faria sentido imaginar que há um mundo de objetos lá fora que seriam “em si mesmos” independentemente do fato de serem para alguém.
A realidade é fundada não em coisas que são em si mesmas, mas sim em algo que é para si mesmo e para o qual todas as outras coisas são – o Eu Absoluto.
O Eu Absoluto, portanto, não é qualquer sujeito particular, não é eu ou você, mas sim a subjetividade como estrutura fundamental da realidade.
“É para o eu que o eu é o que ele é, e é porque ele é. O nosso conhecimento não pode avançar para além dessa proposição.” (Fichte, Resenha do Enesidemo)
A Filosofia Prática de Fichte
Segundo Fichte, a razão nos determina a agir no mundo, precisamente porque, por meio dessa ação, devemos buscar superar a oposição entre o Eu e o Não-Eu, entre a minha consciência de mim mesmo e o objeto que aparece para mim nela, uma vez que, só superando essa oposição que podemos ser livres (ou seja, não dependermos da nossa relação a um outro).
Esse esforço, porém, seria infinito, já que toda superação de que somos capazes é apenas uma superação relativa, e não absoluta (apenas o Eu Absoluto é inteiramente livre). Ainda assim, pela nossa própria natureza enquanto seres racionais dotados de consciência, somos determinados a agir tendo por nosso dever a busca dessa superação.
Algumas das obras importantes de Fichte
A tabela abaixo reúne algumas das obras de Fichte, oferecendo um panorama do desenvolvimento de sua concepção do Eu Absoluto e da fundamentação científica da filosofia.
| Obra | Data de Publicação | Tema |
|---|---|---|
| Doutrina da Ciência (primeira versão) | 1794 | Os fundamentos de todo conhecimento científico do mundo com base no Eu Absoluto |
| O Destino do Erudito | 1794 | A função do erudito e o seu papel de agir a partir de seu conhecimento |
| Fundamento do Direito Natural | 1796 | Os fundamentos do direito estabelecidos a partir dos princípios científicos da filosofia de Fichte |
Sugestão de Leitura:
- Do autor: “O Destino do Erudito”, Tradução de Ricardo Barbosa, Editora Hedra, 2014.
- Sobre o autor: “A Resenha do Enesidemo de Fichte e a Transformação do Idealismo Alemão”, de Daniel Breazeale, traduzido por Lucas Nascimento Machado, Revista Sképsis, ano VII, n. 11, 2014.
Schelling: a Razão e o Absoluto

Síntese da seção:
- Para Schelling, o Absoluto ou a Razão não deve ser compreendida como sendo subjetiva ou objetiva, mas sim como a identidade originária do sujeito e do objeto, sua fonte comum.
- Sujeito e objeto ofereceriam duas perspectivas a partir das quais compreender a mesma realidade fundamental, quer observando como o sujeito surgiria a partir do objeto, quer observando como o objeto aparece para a consciência do sujeito e se conforma a ela.
Em sua filosofia chamada pelos intérpretes de filosofia de identidade, Schelling defende que o princípio que devemos considerar como estando no fundamento de toda a realidade não pode nem ser um puro objeto, uma “coisa em si”, nem um puro sujeito, entendido como um Eu que é inteiramente para si mesmo, mas sim a Razão, pensada como a identidade originária entre sujeito e objeto.
Embora inicialmente Schelling seja profundamente influenciado por Fichte, e adote o seu termo do Eu absoluto para pensar o fundamento racional de toda a realidade e da forma com que a experimentamos, Schelling logo começa a se distanciar dele e desenvolver os princípios de sua própria filosofia e da sua própria reformulação da filosofia kantiana.
O Absoluto a partir de dois pontos de vista
Segundo Schelling, tanto o “Eu” quanto a “coisa”, tanto o “sujeito” quanto o “objeto” não podem ser absolutos, uma vez que são definidos por meio da sua relação ao outro: o sujeito é o que não é o objeto, o objeto é o que não é o sujeito.
Por isso mesmo, nem sujeito, nem objeto podem ser o fundamento absoluto da realidade e da maneira com que a experimentamos, porque, afinal, são relativos um ao outro.
É por isso que, para Schelling, o fundamento absoluto da realidade, o Absoluto como tal, teria de ser não o sujeito, na medida em que ele depende da sua relação com o objeto, nem o objeto, na medida em que ele depende da sua relação com o sujeito, mas sim a Razão, entendida como o que tornaria possível a própria relação entre sujeito e objeto, o fundo comum a partir do qual ambos poderiam se desenvolver em sua relação recíproca.
É por isso que, segundo Schelling, podemos compreender a nossa experiência do mundo a partir de dois pontos de partida distintos.
Um deles é o ponto de partida do objeto, segundo o qual tomamos o sujeito consciente como surgindo a partir da natureza e de seus processos de desenvolvimento interno.
O outro é o ponto de partida do sujeito, segundo o qual tomamos a natureza ela mesma como sendo explicada a partir dos modos do sujeito percebê-la e conhecê-la.
Da perspectiva de Schelling, ambos os pontos de partida são válidos, pois seriam pontos de vista distintos acerca de uma mesma realidade fundamental: a Razão ou o Absoluto, entendido como nada mais senão essa realidade que pode ser apreendida tanto de um ponto de vista objetivo quanto de um ponto de vista subjetivo e na qual, por fim, ambos os pontos de vista coincidem.
A distinção entre sujeito e objeto não é, portanto, absoluta, mas sim relativa, já que ambos são apenas formas de manifestação de uma e a mesma Razão.
“Entre sujeito e objeto não é possível nenhuma diferença senão uma diferença quantitativa.” (Schelling, Esboço do Meu Sistema)
Algumas Obras Importantes de Schelling
A seguir, estão organizadas algumas obras de Schelling, permitindo visualizar como seu pensamento evolui da crítica ao dogmatismo para a formulação do princípio da identidade entre sujeito e objeto.
| Obra | Data de Publicação | Tema |
|---|---|---|
| Cartas filosóficas sobre dogmatismo e criticismo | 1795 | As duas vias possíveis da filosofia: partir do objeto como absoluto (dogmatismo), ou do sujeito como absoluto (criticismo) |
| Ideias para uma filosofia da natureza | 1796 | A natureza, pensada como um princípio a partir do qual os seres se desenvolvem e seres conscientes (seres humanos) surgem |
| Sistema do idealismo transcendental | 1800 | O nosso conhecimento do mundo, tomando-se a forma como ele seria construído pelo sujeito e a partir da consciência do sujeito |
Sugestão de leitura:
- Do autor: “Cartas sobre o dogmatismo e o criticismo”, tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho em: Os Pensadores, Editora Abril, 1989.
- Sobre o autor: “Schelling”, de Leonardo Alves Vieira, Editora Zahar, 2007.
Hegel: o Absoluto, a Razão e o Espírito
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Síntese da seção:
- Para o Hegel de maturidade, o Absoluto não deve ser compreendido como uma realidade estática, mas sim como um processo dinâmico que se consuma na forma do Espírito, da história da tomada de consciência progressiva, por parte dos seres humanos, de sua própria liberdade.
- O modo de desenvolvimento próprio a esse processo dinâmico é a dialética, um processo de autonegação pelo qual todas as coisas passam a fim de superar formas imperfeitas de si mesmas e se tornarem plena e verdadeiramente aquilo que deveriam ser.
Para Hegel, o Absoluto, como fundamento de toda realidade, assim como de nosso conhecimento dela e nossa ação nela, deve ser compreendido, em sua forma consumada, como Espírito.
O Espírito, para Hegel, é a Razão ou o Absoluto, na medida em que este é apreendido não como uma realidade puramente inteligível fora do nosso mundo que a fundamentaria, ou como uma natureza objetiva e desprovida de consciência, mas sim como o próprio desenvolvimento histórico e dinâmico da liberdade por meio da tomada progressiva de consciência, por parte dos seres humanos, de sua própria liberdade.
Distanciamento de Schelling
Assim como Schelling foi profundamente influenciado por Fichte em sua juventude, mas se afastou progressivamente dele com o tempo, também, Hegel, embora tenha sido muito influenciado em sua juventude por Schelling e por sua filosofia da identidade, afasta-se progressivamente de seu pensamento, rompendo, por fim, de forma definitiva com seu antigo amigo com a publicação da Fenomenologia do Espírito.
Um dos principais motivos da ruptura de Hegel com Schelling está na forma com que ele passa a compreender o Absoluto ou a Razão, não mais aos moldes da filosofia schellingiana de uma identidade estática entre sujeito e objeto, mas como um processo dinâmico que determinaria a si mesmo e que, nessa autodeterminação, constituiria a realidade como um todo, consumando-se sob a forma do Espírito.
A concepção de Absoluto de Hegel
Segundo Hegel, o Absoluto deve ser entendido como aquilo que não depende de nada exterior a si próprio, e que, por isso mesmo, é o fundamento de toda a realidade e de nosso conhecimento dela.
Para Hegel, isso implica, porém, que, não podemos pensar que, de alguma forma, o desenvolvimento dos seres humanos e o desdobramento da história da humanidade seja algo indiferente ao absoluto, algo que se encontraria, de alguma forma, “fora” dele.
Antes, esse desenvolvimento é um desdobramento necessário do próprio Absoluto, enquanto expressão última da liberdade que seria definidora daquilo que o próprio Absoluto é.
Por isso, a Razão que seria a condição de toda realidade e que seria responsável por ela ser o que é não pode ser capaz apenas de explicar a “identidade originária” entre sujeito e objeto, aos moldes de Schelling.
Ela deve também explicar o processo pelo qual o ser humano se torna progressivamente consciente de si mesmo e da própria Razão como sendo o fundamento da sua existência e da sua liberdade.
A dialética e o processo histórico de tomada de consciência de si

Esse processo de tomada de consciência de sua própria liberdade, que também é o processo de tomada de consciência da Razão como fundamento da realidade e da existência humana, se dá, segundo Hegel, de modo fundamentalmente dialético.
A dialética é, para Hegel, o processo dinâmico segundo o qual, por meio de uma autonegação, algo que se torna, por fim, aquilo que verdadeiramente é, ou a forma mais bem acabada daquilo que é.
Certamente, a concepção de Hegel de dialética é um dos conceitos mais desafiadores e difíceis da história da filosofia. Eu mesmo, quando li a Fenomenologia do Espírito pela primeira vez, me senti profundamente desesperado por não conseguir entender quase nenhuma frase do texto (não à toa, Hegel descreve o percurso da fenomenologia, apropriadamente, como caminho do desespero).
Porém, o que Hegel quer dizer ao falar do processo dialético talvez encontre uma das explicações mais claras na metáfora do botão da flor que ele utiliza no prefácio da Fenomenologia:
“O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como verdade em lugar da flor: essas formas não apenas se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluída faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todas são igualmente necessárias” (Hegel, Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Menezes)
Ou seja, se pensamos no desenvolvimento de uma planta, que leva do botão da flor até o fruto, vemos que, para a flor surgir, o botão deve desaparecer.
Ao mesmo tempo, porém, é do botão que vem a flor, de modo que se pode dizer que é o botão que nega a si mesmo para tornar-se uma outra coisa, a flor, assim como a flor nega a si mesma para se tornar fruto.
Esse processo, porém, é ao mesmo tempo, o processo em que o botão se torna aquilo que ele verdadeiramente deveria ser, assim como a flor se torna o que ela verdadeiramente deveria ser.
Para Hegel, portanto, a dialética nada mais é do que o processo em que, por meio das contradições internas das próprias coisas (ou seja, pelo fato de elas não corresponderem àquilo que elas deveriam ser), elas negam a si mesmas para poderem, por fim, corresponderem ao que deveriam ser (ao seu conceito, em termos hegelianos).
É assim que, na história da humanidade, formas imperfeitas de consciência da liberdade humana e de realização dessa liberdade vão dando lugar a formas mais desenvolvidas, até que essa consciência se torne plena e a Razão ou o Absoluto se efetive completamente como Espírito, ou seja, como liberdade em si e para si, como liberdade não apenas potencial ou em conceito, mas efetivamente atualizada no mundo e consciente de si.

Hegel viu Napoleão em 14 de outubro de 1806, em Jena, a cidade em que vivia à época, após a sua vitória na Batalha de Jena-Auerstedt. Apesar desse encontro ter feito Hegel ter que fugir às pressas - carregando consigo, inclusive, o manuscrito de sua Fenomenologia do Espírito -, ele afirmaria posteriormente, em relação a esse encontro, ter visto “o espírito do mundo cavalgando pela cidade”.
Apesar desta afirmação ter sido por vezes objeto de deboche, Hegel queria dizer com isso que Napoleão, enquanto indivíduo, desempenhava um papel central para o desenvolvimento do Espírito e, portanto, da consciência da liberdade no ser humano.
Algumas Obras Importantes de Hegel
A tabela abaixo apresenta as principais obras de Hegel, destacando como cada uma contribui para a compreensão do desenvolvimento do Espírito e da efetivação histórica da Razão.
| Obra | Data de Publicação | Tema |
|---|---|---|
| Fenomenologia do Espírito | 1807 | O processo pelo qual a consciência alcança, passando por várias formas imperfeitas de saber, o saber absoluto (o saber que corresponde completamente ao seu objeto) |
| Enciclopédia das Ciências Filosóficas | 1817 | O conjunto dos saberes filosóficos, separado em três volumes que representam, cada um, um momento específico do Absoluto: ideia, natureza e espírito |
| Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito | 1821 | Os fundamentos do direito estabelecidos a partir dos princípios científicos da filosofia de Hegel |
Sugestão de Leitura:
- Do autor: “Quem pensa abstratamente?” Tradução de Charles Feitosa, Revista Sintese Nova Fase, Vol. 22, n. 69, 1995.
- Sobre o autor: 10 Lições Sobre Hegel, de Marloren Lopes. Editora Vozes, 2024.
Para facilitar a compreensão das diferenças entre esses filósofos, o quadro a seguir organiza, de forma comparativa, os fundamentos do conhecimento propostos por Kant, Fichte, Schelling e Hegel.
| Filósofo | Fundamento do Conhecimento |
|---|---|
| Kant | Sujeito Transcendental (formas puras da intuição e do entendimento a priori) |
| Fichte | Eu Absoluto |
| Schelling | Identidade Absoluta (entre o sujeito e o objeto) |
| Hegel | Espírito (efetivação da Razão no desenvolvimento histórico da humanidade) |
Recepção, Críticas e Impacto do Idealismo Alemão
Síntese da seção:
Os autores do idealismo alemão foram recebidos sempre de formas múltiplas e ambivalentes:
- acusados de ateísmo por um lado e de dogmatismo por outro
- elogiados pela sua defesa da razão e criticados pelas suas visões eurocêntricas de mundo
Essas tensões são constitutivas das suas filosofias e são fundamentais para que se possa compreendê-las em toda a sua complexidade.
A recepção dos autores do idealismo alemão foi sempre marcada por ambivalências e polêmicas.
Por um lado, a “revolução copernicana” que Kant haveria proposto na filosofia mudou irreversivelmente a compreensão que temos da natureza do conhecimento e do lugar do sujeito nele, uma revolução que foi aprofundada pelos seus sucessores.
Igualmente, a maneira com que esses autores conceberem a liberdade humana desempenhou um papel central na forma com que se veio a compreender a liberdade individual e coletiva hoje, assim como o entendimento que temos da modernidade como tal.
Por outro lado, essas mudanças no pensamento filosófico nem sempre foram vistas como positivas por parte de seus receptores.
Acusações de Ateísmo
Embora Kant defendesse que a sua filosofia era compatível com a fé, e mesmo necessária para fundamentar a religião racionalmente, foi famosamente chamado por Moses Mendelssohn de “o demole-tudo”, e acusado por Jacobi, no contexto da chamada “Querela do Panteísmo”, de ateísmo, uma vez que sua filosofia colocaria o fundamento de nossa experiência do mundo no sujeito, e não em Deus.
De fato, todas as grandes figuras do idealismo alemão tiveram que lidar com o risco da acusação de ateísmo ou de espinosismo, de formas que tiveram consequências muito reais em alguns dos casos (como a própria demissão de Fichte da Universidade de Berlim).
Acusações de dogmatismo
De outro lado, porém, os autores do idealismo alemão foram acusados de não terem sido completamente consequentes em sua defesa da razão, se submetendo a autoridades externas a ela, como a da religião ou do Estado.
É assim, por exemplo, que Schopenhauer famosamente critica as revisões que Kant teria feito na segunda edição da Crítica da Razão Pura, para, a seu ver, salvaguardar a visão, mais conforme à religião, da existência de um mundo fora do sujeito e independente dele.
É assim também que vemos Hegel ser fortemente criticado por autores como Karl Popper, no século XX, como uma espécie de teórico do Estado totalitário (uma crítica que, porém, se mostra enviesada e ignora que Hegel sempre foi um admirador da Revolução Francesa e de seus ideais políticos).
Influências posteriores
As filosofias do idealismo alemão foram recebidas por muitos como uma revolução radical na nossa forma de compreender o mundo, e influenciou de forma decisiva grande parte do debate epistemológico, metafísico e moral feito posteriormente a eles.
Isso seria verdade tanto no que diz respeito à importância de considerar o papel do sujeito, da sociedade e da história na construção do conhecimento, como na compreensão do que definiria a liberdade do sujeito e sua relação com a sociedade em que ele está inserido.
É assim que o idealismo alemão influenciou de maneira decisiva grandes figuras da filosofia moderna e contemporânea como Karl Marx, Theodor Adorno, Jürgen Habermas, Michel Foucault, Martin Heidegger, Charles Peirce e William James, para citar apenas alguns.
Por outro lado, a sua pretensão de fundamentar de maneira absolutamente certa e segura o nosso conhecimento e nossa relação com o mundo com base na pura razão foi objeto de severas críticas, tanto no séc. XIX quanto nos séculos seguintes. Também a crença na liberdade puramente racional e autônoma do sujeito foi frequentemente colocada em cheque.
Essas críticas se deram por autores como Nietzsche, Kierkeegard, Bertrand Russel, e até mesmo o próprio Schelling no período final de seu pensamento, mas também por autores que reconheciam seu débito a eles, mas pensavam ser necessário abandonar a pretensão de uma razão total ou de uma liberdade puramente racional e incondicionada (como o próprio Adorno ou Foucault).
Para além disso, é importante notar que, embora tenham sido lidos frequentemente como defensores da liberdade e da igualdade entre todos os seres humanos, suas ideias não raro eram acompanhadas de pressupostos que podemos avaliar hoje como racistas, eurocêntricos e colonialistas, pois afirmavam a superioridade da cultura europeia e do homem branco em relação a outras culturas e povos.
Assim, enquanto alguns autores ressaltam o legado dos filósofos do idealismo alemão como “pensadores da liberdade”, outros reforçam que, por trás da pretensa liberdade e conhecimento universal proposto por eles, estava, na verdade, a imposição de valores e formas de conhecimento particulares à cultura europeia para todas as demais culturas.
Um pensamento marcado pelas suas tensões
De minha parte, creio que muitas das contradições e tensões na recepção dos autores do idealismo alemão são fruto das contradições e tensões inerentes ao seu próprio pensamento em sua relação com o contexto histórico em que estava inserido. Algumas dessas tensões incluem:
- a demanda de uma legitimação racional do conhecimento e da moral em sua tensão com a necessidade cultural e histórica de não contradizer os artigos de fé;
- a afirmação da liberdade e igualdade humana em tensão com o papel colonial da Europa em seu contexto histórico e a necessidade de legitimar esse papel.
Essas tensões, a meu ver, não podem ser consideradas apenas elementos extrínsecos ao seu pensamento, mas são constitutivas da forma mesmo com que esses autores compreenderam e desenvolveram seus conceitos, como os de liberdade e razão.
Seja como for, o idealismo alemão exerceu um impacto irreversível na maneira com que pensamos, hoje, a natureza do conhecimento, a constituição do sujeito, a natureza e a história, e os modos de realização da liberdade humana no mundo.

Referências Bibliográficas:
MACHADO, L. N. Hegel a relação entre ceticismo e filosofia: ceticismo e o problema da autodeterminação racional no idealismo alemão. São Paulo: Editora Dialética, 2022.
PIPPIN, R. B. Modernism as a Philosophical Problem: on the dissatisfactions of European high culture. Oxfordshire: Blackwell Publishers Inc., 1999.

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