A solidão tem sido uma das questões contemporâneas mais exploradas pelas narrativas tecnológicas da atualidade. Recentemente, Mark Zuckerberg, CEO da Meta, anunciou que os "amigos IA" — versões personalizadas de inteligências artificiais com características humanizadas — serão a solução definitiva para a solidão humana: “As pessoas vão conversar com assistentes que as conhecem profundamente, que são seus amigos”, afirmou Zuckerberg.
Em tom messiânico, ele descreve um futuro em que ninguém mais precisará sentir-se só, porque terá à disposição uma versão amigável e personalizada de inteligência artificial para lhe fazer companhia.
O amigo IA será, em essência, um algoritmo de confirmação: alimentado pelos dados do usuário, retroalimentado pelos seus gostos, valores, crenças e padrões de linguagem, e projetado para agradar — sem qualquer discordância, ruptura ou tensão — mas, justamente por isso, sem oferecer presença. Para a psicanálise, a formação do sujeito exige a experiência do conflito. O outro é estruturante não porque confirma, mas porque interrompe. É na diferença que o desejo se constitui.
A amizade IA proposta por Zuckerberg dissolve o conflito na lógica da customização algorítmica. Ela opera pela via do “perfilamento afetivo”: o sistema aprende o que o usuário gosta, pensa, sente, e passa a espelhar isso de volta. Como um feed emocional, ele reforça aquilo que já está lá. O sujeito, em vez de se transformar pelo encontro com o Outro, se fixa em si mesmo — preso num circuito narcísico de retroalimentação de si.
Acontece que a amizade é um campo de conflito simbólico, de elaboração da diferença, de desconstrução narcísica pela via da alteridade. Como afirma Hannah Arendt, o amigo é aquele diante do qual o mundo se revela, não porque ele o reproduz, mas porque ele o contradiz — e, ao fazê-lo, nos obriga a repensar a nós mesmos.
O problema contemporâneo não é mais a escassez de vínculos, mas a superabundância de conexões desinvestidas. Como diria Zygmunt Bauman, “as redes sociais são o lugar onde você se cerca de pessoas que pensam como você. Quanto mais você restringe seu mundo, mais solitário você se torna”. Os Amigos IA são a radicalização dessa bolha afetiva algorítmica que age produzindo mais distanciamento social e, portanto, mais solidão.
Trata-se de uma das promessas mais perigosas e ideologicamente sintomáticas da era digital: a substituição da alteridade real — complexa, conflitiva, viva — por simulacros afetivos programados para agradar. Se o que define a amizade é o encontro com o outro, com sua diferença irredutível e sua capacidade de nos transformar, então os amigos IA não acabarão com a solidão — ao contrário, a solidão se tornará estrutural, como também terá outro efeito colateral — e profundamente político — a formação de uma subjetividade extremista. Sem o outro, o sujeito não apenas se isola — ele se radicaliza.
Ao conviver apenas com entidades que confirmam suas crenças e reafirmam seus valores, o indivíduo perde a capacidade de elaborar o dissenso e o sujeito que só escuta o que quer se torna, inevitavelmente, intolerante. Pois, o extremismo não nasce do conflito, mas da ausência de alteridade real que garanta o exercício democrático de vivermos entre diferentes.
Não se trata, portanto, de uma iniciativa ingênua, mas de um projeto: tornar o outro desnecessário, dissolver a alteridade e higienizar a diferença. Nesse cenário, a amizade deixa de ser escola de democracia (como a entendia Arendt) e se torna instrumento ideológico do individualismo, uma operação precisa de desumanização do laço social. E a quem interessa laços sociais cada vez mais enfraquecidos?
Essa amizade algorítmica é a expressão mais acabada de uma colonização neoliberal do psiquismo: “quero um outro que me atenda, que me compreenda sem esforço, que não me confronte, que não me faça esperar”. O amigo IA é a mercantilização da presença, a conversão do laço em serviço, da alteridade em produto. O que está em jogo aqui não é só a transformação das relações — é a própria reconfiguração da ideia de sujeito.
O sujeito desejante, que se constitui no encontro com o outro, na fricção do limite, no risco do laço, cede lugar ao sujeito consumidor — aquele que, ao adquirir uma companhia feita sob medida, não apenas perde a capacidade de se relacionar, mas também se anestesia, desaprende o outro, e, sem o outro, não há desejo. E, sem desejo, resta apenas o vazio.
Como dizia Foucault, “a amizade é subversiva”. E talvez seja exatamente por isso que o capitalismo digital tenta domesticá-la, transformá-la em algoritmo, dado, previsibilidade.
Por isso, deve ser recuperada enquanto prática de resistência, profundamente humana e radicalmente política, como espaço de alteridade viva, de travessia e de transformação. Como o lugar onde dois ou mais mundos se encontram, não para se fundir, nem para se anular, uma abertura, fresta por onde entra o outro, e com ele, o desconhecido, o imprevisto que nos obriga a nos reinventarmos sempre.
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Você já percebeu como, diante de situações difíceis, tendemos a reagir de forma inesperada? Para a psicanálise, comportamentos como negação, culpabilização ou projeção podem ser expressões da atuação dos mecanismos de defesa do ego.
Os mecanismos de defesa do ego são processos inconscientes utilizados pelo ego para lidar com conflitos internos, angústias e desejos incompatíveis com a realidade ou com os princípios morais. Esses mecanismos têm a função de proteger o indivíduo contra sentimentos potencialmente dolorosos, ao evitar o acesso direto à conteúdos psíquicos percebidos como ameaçadores.
A denominação foi inicialmente formulada por Sigmund Freud, o pai da psicanálise, e posteriormente sistematizado e ampliado por sua filha, Anna Freud, especialmente na obra “O Ego e os Mecanismos de Defesa” (1936).
Esses mecanismos são parte essencial da estrutura psíquica, composta por id, ego e superego, e ajudam a manter o equilíbrio psíquico frente às demandas do inconsciente e da realidade externa.
Neste texto, iremos explorar os principais mecanismos de defesa do ego, explicando como eles operam no inconsciente e apresentando os seus exemplos práticos.
A repressão ou recalque é considerada um dos mecanismos de defesa mais fundamentais. Trata-se do processo de empurrar para o inconsciente desejos, pensamentos, lembranças ou impulsos considerados inaceitáveis ou ameaçadores para o ego.
Mas como eles funcionam no inconsciente? Bem, os conteúdos reprimidos não desaparecem, mas permanecem ativos no inconsciente, podendo retornar de maneira distorcida, como em sonhos, atos falhos ou fantasias. A repressão exige um gasto constante de energia psíquica para manter os conteúdos afastados da consciência.
Exemplo: uma pessoa que sofreu um abuso na infância pode não se lembrar do fato conscientemente, mas pode desenvolver sintomas de ansiedade, fobias ou dificuldades de relacionamento que indiquem a persistência de um trauma reprimido ou recalcado.
A negação é o mecanismo pelo qual o sujeito se recusa a reconhecer aspectos dolorosos da realidade ou de si mesmo. Em outras palavras, para evitar entrar em choque ou sofrer diante uma situação dolorosa, o indivíduo entra em negação diante o acontecimento. Esse comportamento é comum em momentos de perda, trauma ou choque emocional.
No inconsciente, o ego tenta evitar o sofrimento imediato que o reconhecimento dessa realidade traria. Nesse sentido, trata-se de uma defesa primitiva, na qual muitas vezes só é identificada quando se sofre as consequências de permanecer em negação por muito tempo.
“Em vez de perceber a impressão dolorosa e, subsequentemente, cancelá-la mediante a retirada do respectivo investimento, está ao alcance do ego recusar o encontro, pura e simplesmente, com a situação perigosa externa. Pode fugir-lhe e, assim, no mais verdadeiro sentido da palavra, “evitar” as ocasiões de dor” (Freud, 1936/2006, p. 71).
Exemplo: uma pessoa que perde um ente querido pode continuar agindo como se ele ainda estivesse vivo, mantendo hábitos rotineiros, como conversar com a pessoa ausente. O mesmo pode ocorrer diante um relacionamento abusivo. Para não lidar com o sofrimento causado por um cônjuge violento, a pessoa pode negar as agressões, traições e omissões.
Projeção
Você já ouviu a frase: “A culpa é minha e eu coloco em quem eu quiser”? Pois bem, esse é o princípio da projeção. A projeção ocorre quando o sujeito atribui a outra pessoa sentimentos, desejos ou pensamentos que não reconhece como seus, por considerá-los inaceitáveis.
No inconsciente, esse mecanismo age da seguinte forma: o ego evita o conflito interno causado pelos impulsos proibidos, projetando-os no outro. Assim, o sujeito se isenta da responsabilidade pelo conteúdo rejeitado.
Exemplo: Uma pessoa com desejos de infidelidade que não consegue aceitá-los em si, pode desconfiar constantemente da fidelidade do parceiro. Ou, considerar colegas de trabalho como inimigos, mesmo quando a própria pessoa é competitiva.
Formação reativa
A formação reativa, por sua vez, é um mecanismo pelo qual o sujeito adota comportamentos, sentimentos ou atitudes opostas aos desejos inconscientes que deseja reprimir.
No inconsciente, a formação reativa funciona como uma máscara. O ego se protege expressando o oposto do que realmente sente, numa tentativa de esconder, inclusive de si mesmo, o conteúdo real. A função defensiva da formação reativa é, portanto, dupla: ao mesmo tempo que protege o ego da angústia provocada pelo desejo recalcado, também atua para preservar uma imagem de si compatível com as normas e ideais internalizados.
Exemplo: Uma pessoa que sente atração por pessoas do mesmo sexo pode se tornar homofóbica para proteger o ego do conflito entre o desejo e as normas morais. Ou, uma mãe pode se tornar excessivamente protetora para esconder a ausência de amor por um filho.
O isolamento é a separação de um pensamento ou acontecimento do seu contexto, impedindo que a pessoa se sinta abalada pelo fato. Em outras palavras, o isolamento afeta o componente afetivo de uma ideia ou lembrança, separando o conteúdo emocional e mantendo apenas o relato.
No inconsciente, esse mecanismo permite lidar com experiências dolorosas sem sentir o sofrimento associado.
“O isolamento pode ser explicado e argumentado da seguinte maneira: na histeria um evento traumático pode cair na amnésia, na neurose obsessiva a experiência não é esquecida, mas destituída de afeto, e suas conexões associativas são suprimidas ou interrompidas, de modo que permanece como isolada” (Freud, 1926, p. 121).
Exemplo: Uma mulher que sofreu uma violência sexual pode relatar o ocorrido de forma objetiva e desprovida de emoção, como se estivesse contando um fato rotineiro. Ou, uma pessoa que é diagnosticada com alguma doença grave, mas simplesmente o ignora e não se importa, pode estar usando o isolamento para se proteger.
Anulação (ou desmentido)
Já a anulação envolve realizar ações ou pensamentos que têm a função simbólica de “desfazer” ou “anular” algo inaceitável. A pessoa age como se pudesse apagar o que foi feito, dito ou sentido.
No inconsciente, se materializa enquanto uma tentativa de controlar a culpa ou a ansiedade associada a certos impulsos. Frequentemente aparece em comportamentos compulsivos ou supersticiosos.
“A anulação, também consiste essencialmente no desejo de que, por uma anulação mágica do tempo, o que aconteceu e perturba torne-se não acontecido” (Freud, 1926, p. 120).
Exemplo: Após assistir um filme de terror, a pessoa pode querer consumir imediatamente algum conteúdo mais leve ou divertido. Ou, após ter um pensamento considerado inapropriado ou catastrófico, a pessoa pode fazer o “sinal da cruz”, como uma forma de “anular” o pensamento.
Racionalização
Outro mecanismo que merece destaque é a racionalização. Ela busca justificar com argumentos lógicos e socialmente aceitáveis um comportamento, sentimento ou decisão que, na verdade, tem origem em motivos inconscientes ou inaceitáveis.
Em outros termos, trata-se de uma forma de maquiar a verdadeira motivação psíquica por trás de uma ação, oferecendo ao sujeito e aos outros uma explicação mais palatável ou razoável, que evita o confronto com conteúdos internos desconfortáveis.
Esse mecanismo do inconsciente ajuda a proteger o ego da pessoa de sentimentos de culpa ou vergonha, criando uma explicação que pareça mais razoável diante do fato.
Exemplo: Se uma pessoa se sente triste, pode racionalizar dizendo que “não importa” ou que “não é tão grave”. Ou, um estudante que não passou em um concurso afirma que não queria o cargo de verdade, pois o salário era baixo.
Deslocamento
O deslocamento consiste em transferir a carga emocional de um objeto ou pessoa considerada perigosa ou proibida, para outro objeto ou pessoa mais segura ou acessível. Ou seja, transfere-se as emoções de um alvo original para um alvo substituto, que seja menos ameaçador.
No inconsciente, o deslocamento permite que o sujeito expresse suas emoções, sobretudo, agressivas, sem confrontar diretamente sua fonte ideal. Essa manobra psíquica reduz o risco de punição, rejeição ou culpa, pois a energia emocional é redirecionada.
Exemplo: Um funcionário pode descontar em seus filhos a frustração com o chefe no trabalho. Ou, um adolescente que sofre bullying na escola pode se tornar agressivo com seus colegas.
Considerado um mecanismo de defesa razoavelmente saudável, a sublimação consiste em transformar impulsos primitivos ou inaceitáveis em atividades criativas ou artísticas. Ela opera como um canalizador de cargas emocionais, direcionando a energia para atividades que exijam estímulo psíquico.
No inconsciente, ela opera ao redirecionar o desejo reprimido ou negado, para fins nobres. É uma via de expressão simbólica altamente valorizada na vida psíquica adulta, pois permite que os conflitos internos encontrem uma saída produtiva e socialmente aceita.
Ao invés de reprimir o impulso, como ocorre em outros mecanismos, a sublimação transforma sua força em motor criativo e/ou intelectual, por isso, é frequentemente associada à maturidade emocional e ao desenvolvimento de talentos e vocações.
Exemplo: Um sujeito que sofre por algo pode transferir a frustração para a arte, criando obras que expressam esses sentimentos de forma socialmente aceitável. Ou, uma pessoa que sente muita raiva ou estresse no cotidiano pode começar a praticar um esporte de contato, como o jiu jitsu, para canalizar emoções de forma saudável.
A identificação, por sua vez, é o processo de incorporação de características, valores ou comportamentos de outra pessoa, muitas vezes significativa para o sujeito. Trata-se de uma forma de aprendizado psíquico profundo, que molda a forma como o indivíduo se percebe e se posiciona no mundo.
No inconsciente, pode ocorrer por admiração, desejo de pertencimento, amor ou medo. Tem papel central na formação da personalidade e na interiorização de normas sociais. Ao se identificar com figuras, personalidades e identidades, internalizam-se também expectativas e modos de se comportar socialmente.
Exemplo: Um adolescente que admira um cantor começa a se vestir e falar como ele, internalizando seu estilo como forma de construir sua própria identidade. Ou, uma criança pode internalizar características e comportamentos de afeto ou violência dos pais para se sentir mais valorizada.
Regressão
Por fim, a regressão é o retorno a modos de funcionamento psíquico e comportamentos de fases anteriores do desenvolvimento, especialmente em situações de estresse ou conflito. Nela, o objetivo é aliviar a tensão ou o medo ao recorrer a formas mais antigas – e geralmente mais seguras - de lidar com a realidade.
Para Freud (1916/1917), a regressão é relativa ao desenvolvimento sexual, uma vez que ela tem uma função libidinal – a obtenção do prazer e da satisfação:
“O que até agora tratamos como regressão [...] significou exclusivamente um retorno da libido a anteriores pontos de interrupção de seu desenvolvimento – isto é algo inteiramente diferente, em sua natureza, da repressão, e inteiramente independente desta (Freud, 1916-17/1996, p. 346)”.
No inconsciente, a regressão representa uma tentativa de fuga temporária para estágios onde as exigências externas eram menores e o cuidado era mais garantido, como na infância. Embora possa ser útil em momentos críticos, oferecendo alívio momentâneo, quando se torna recorrente pode indicar resistência a amadurecer frente a desafios.
Exemplo: Uma pessoa em situações de estresse, pode começar a chorar de forma infantil. Ou, um fumante que, diante de um conflito, passa a fumar mais para se sentir seguro.
Conclusão: defesas não são falhas, são estratégias psíquicas
Neste texto, tratamos sobre os mecanismos de defesa, que são recursos do ego para garantir a manutenção do equilíbrio emocional frente a ameaças internas ou externas.
Longe de serem “erros” ou “falhas”, essas defesas representam tentativas de autorregulação emocional frente às exigências conflitantes do inconsciente, da realidade e das normas sociais.
Embora possam gerar sintomas quando utilizados de forma excessiva ou inadequada, sua função primordial é de autoproteção. Elas atuam como estratégias psíquicas que ajudam o sujeito a sobreviver emocionalmente diante de sentimentos como angústia, culpa, medo, vergonha ou desejo.
Assim, ao invés de condenar sua existência, é preciso reconhecê-las como parte do funcionamento mental humano saudável, ainda que, por vezes, sejam expressões de sofrimento.
Para Anna Freud (1936/2006), “tudo o que provém do ego é também uma resistência, em todos os sentidos da palavra: uma força dirigida contra a emergência do inconsciente”. Nesse sentido, conhecer os mecanismos de defesa é um passo importante para entendermos não só o sofrimento psíquico, mas também os caminhos possíveis para sua transformação.
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FREUD, S. (1996). Conferência XXII: Algumas ideias sobre desenvolvimento e regressão – etiologia. In S. Freud, Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 16). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1916-17).
FREUD, Sigmund. Inibições, Sintomas e Ansiedade. Em S. Freud, Obras Completas de Freud (pp. Vol. XX, p. 79-171). Rio de Janeiro: Imago, 1926.
FREUD, Anna. [1936] “O ego e os mecanismos de defesa”. Tradução, consultoria e supervisão: Francisco F. Settineri. Porto Alegre: Artmed editora, 2006.
Nem todo desejo precisa ser recalcado ou virar sintoma. Para a psicanálise, há outra possibilidade: a sublimação. Neste artigo, você vai entender o que é sublimação segundo Freud, como ela redireciona a energia da pulsão para atividades culturalmente valorizadas e por que esse conceito é tão importante para pensar a arte, a infância, o trabalho e até o mal-estar na civilização.
Para a psicanálise, a sublimação é definida como o trabalho de redirecionamento dos nossos impulsos sexuais para fins não sexuais. Segundo Freud (1915/1996), ela é um dos destinos possíveis para a pulsão, fazendo com que toda a sua intensidade seja desviada para propósitos altamente valorizados por nossa cultura. Dentre tais propósitos destacam-se as expressões artísticas e o trabalho intelectual.
O significado de sublimação em Freud
Ao longo destes anos de experiência como professor, pude constatar que a sublimação é um dos conceitos freudianos que mais gera discussão em sala de aula. E isto não apenas pela importância e beleza do conceito, mas também por algumas de suas várias imprecisões teóricas.
Sabe-se que entre os anos de 1914 e 1917, Freud escreveu uma série de artigos importantíssimos, um dos quais foi exclusivamente dedicado à sublimação. No entanto, não se sabe exatamente o porquê, mas ele o destruiu junto a alguns outros. Talvez o resultado não tenha ficado de seu agrado...
E, de fato, todos nós professores, psicanalistas e alunos consideramos uma pena o sumiço deste ensaio e temos a esperança de que um dia pelo menos um rascunho ou algo do tipo seja encontrado.
De todo modo, dentre todos os outros artigos de Freud nos quais a sublimação se faz presente, considero que o que traz a sua definição mais completa é “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna”:
“A pulsão sexual coloca à disposição do trabalho cultural uma extraordinária quantidade de energia, em virtude de uma singular e marcante característica: sua capacidade de deslocar seus objetivos sem restringir consideravelmente a sua intensidade. A essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro, chama-se capacidade de sublimação” (Freud, 1909/1996, p. 174).
Acredito que esta seja uma boa definição para começarmos a tratar do tema.
Com efeito, Freud concebe a pulsão como a força que governa a nossa sexualidade. Trata-se, no domínio da pulsão, de excitações extremamente intensas que exigem que façamos algo para satisfazê-la.
No entanto, a psicanálise freudiana coloca que a pulsão é extremamente plástica e que, deste modo, possui a capacidade de satisfazer-se através de alguma ação não necessariamente sexual. E é aí que entra a sublimação.
Neste sentido, a sublimação pode ser definida como o processo que nos conduz a trocar uma satisfação propriamente sexual por outra não sexual. Conforme costumo dizer em sala de aula, é a sublimação que faz com que tenhamos um imenso prazer (muitas vezes equivalente ao prazer sexual em si) em, por exemplo, trabalhar, ler um livro, pintar, escrever, tocar um instrumento, estudar, praticar esportes ou usufruir de uma obra de arte.
Exemplos de sublimação para a psicanálise
- Um exemplo do próprio Freud
De fato, Freud atribuía à sublimação um lugar central em sua vida. Ele era um amante inveterado da literatura, das manifestações artísticas em geral e da investigação científica como um todo. E jamais escondeu isso dos seus leitores, muito pelo contrário.
Nesta medida, sua paixão por seu trabalho era tanta que ele mesmo declarou que quando fez 40 anos, após o nascimento do seu quinto filho, decidiu suspender de sua vida qualquer relação ligada à sexualidade propriamente dita. Preferiu então colocar sua atividade pulsional a serviço de seu trabalho, mergulhando fundo na produção de livros e artigos e, portanto, inscrevendo-se no rol das grandes personalidades científicas que tanto admirava (Roudinesco & Plon, 1998).
Como vocês podem ver, a fonte da informação não podia ser outra: a psicanalista, escritora e fofoqueira Elisabeth Roudinesco. E como fofoca boa é algo que a gente não guarda, aqui está o babado!
- O exemplo das crianças
Sempre que menciono este exemplo em sala de aula, são muitas as dúvidas que conseguem ser esclarecidas.
Com efeito, foi no contexto da análise da vida sexual das crianças que, pela primeira vez, Freud se dedicou a uma exposição mais detalhada sobre a sublimação. O conjunto de suas elaborações sobre o tema encontra-se nos famosos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (Freud, 1905/1996).
Sabe-se que Freud foi um dos primeiros cientistas a declarar abertamente que as crianças possuem sexualidade. Segundo ele, a pulsão sexual está presente já na infância mais remota, conduzindo a criança a uma série de manifestações propriamente sexuais.
Assim, é colocado que a criança possui, por exemplo, desejos orais, anais, sádicos (prazer em provocar dor), masoquistas (prazer em sentir dor), voyeuristas (prazer em olhar), exibicionistas (prazer em ser olhado), dentre tantos outros. Os mais comuns destes desejos sexuais infantis são os edipianos, ou seja, desejos dirigidos às próprias figuras parentais.
E, de fato, qualquer observador percebe que as crianças possuem sexualidade e volta e meia entregam-se a estes mais variados prazeres. No entanto, chega uma idade (de difícil precisão) na qual estas manifestações sexuais são arrefecidas. Ou seja, por influência da educação, a criança finalmente passa a conhecer os padrões morais em voga na nossa cultura e, deste modo, é obrigada a recalcar seus desejos sexuais.
Para a psicanálise freudiana, recalcar um desejo significa negá-lo, torná-lo inconsciente. Assim, a criança passa a ignorar os desejos sexuais que anteriormente insistia em satisfazer e entra no chamado “período de latência” sexual. Em si, o período de latência é definido como um momento de suspensão da sexualidade, sendo nele que entra em cena o trabalho de sublimação.
Nesta medida, durante o período de latência, a criança desviará a força da pulsão sexual para outros fins não sexuais. E, portanto, é este o momento no qual, graças à atuação da sublimação, a criança se entrega com toda intensidade a atividades intelectuais. Ela aprenderá, por exemplo, história, ciências, língua portuguesa, além de se interessar por literatura, começar a praticar esportes, pintar, desenhar, dentre tantas outras coisas.
É esta, inclusive, a conhecida fase dos “porquês”, ou seja, aquele período no qual a criança dirige seus interesses para a atividade intelectual e, assim, passa a tudo querer saber. Desta maneira, ela não cessará de questionar os adultos sobre os grandes enigmas com os quais se defronta.
Conforme mencionamos, “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna” (Freud, 1909/1996) é um dos mais importantes textos sobre o conceito de sublimação. Em minha opinião, esta é uma obra imprescindível a qualquer estudo que se faça a respeito da psicanálise freudiana.
O texto versa sobre as consequências da repressão sexual em nossa cultura. Ou seja, Freud reconhece que vivemos em uma sociedade cujos preceitos morais atingem primordialmente os nossos desejos sexuais. Trata-se de uma moral que preconiza que o único e verdadeiro sexo aceitável é o que ocorre dentro do matrimônio. Todas as outras manifestações do desejo sexual seriam, portanto, alvos de uma severa repressão.
Deste modo, é em função desta repressão social que se dá o trabalho de recalque. Com ele, nós somos obrigados a nos defender de nossa sexualidade, tornando nossos desejos inconscientes. No entanto, a psicanálise freudiana é bem explícita ao mostrar que recalcar nossos desejos não significa exatamente matá-los. Pelo contrário, os desejos continuam vivos e atuantes no inconsciente, sempre à espera de alguma situação propícia para se manifestarem.
E dentre as tantas formas de manifestação do desejo sexual recalcado encontram-se, justamente, os sintomas neuróticos. Nesta perspectiva, Freud é incisivo ao dizer que o processo de recalque acaba por nos conduzir ao sofrimento e à enfermidade. Logo, em virtude de uma tamanha repressão social, estaríamos condenados a sofrer...
... A não ser que consigamos sublimar nossos desejos. Desta maneira, a sublimação do desejo é situada como uma alternativa ao processo de recalque. Alternativa esta, vale marcar, bastante feliz! Se conseguirmos criar ou produzir algo a partir da força da nossa sexualidade, não precisaríamos recalcá-la e consequentemente produzir tantos sintomas.
Por isto, o artista é por Freud apresentado como o oposto do neurótico, aquele que consegue aproveitar-se de toda a plasticidade da pulsão sexual e desviá-la para outros fins socialmente valorizados.
Vale frisar que, a partir desta visão, sempre se colocam em sala de aula algumas questões polêmicas e que geram muitas discussões: Será que o artista que sublima efetivamente sofre menos que o neurótico que recalca? E quanto àqueles que não possuem o dom para as artes, para a ciência ou para os esportes, estariam eles condenados ao eterno sofrimento? Será que o trabalho de sublimar nossos desejos sexuais efetivamente faz desaparecer quaisquer vontades sexuais propriamente ditas?
Qual é a relação entre o recalque e a sublimação?
Esta é uma questão de difícil resposta, pois a depender do texto freudiano, os dois conceitos se confundem bastante.
Nos “Três ensaios sobre a sexualidade” (Freud, 1905/1996) vimos que os dois conceitos encontram-se interligados. Ou seja, é porque há o recalque dos desejos sexuais que a criança consegue sublimá-los.
Já em “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna” (Freud, 1909/1996), a sublimação é apresentada como uma alternativa ao processo de recalque e, portanto, independente dele. Um sujeito pode, assim, sublimar seu desejo sem tê-lo anteriormente recalcado.
Acredito que a resposta definitiva para a questão tenha sido dada por Freud (1915/1996) em “As pulsões e suas vicissitudes”. Nele, conforme veremos logo a seguir, o recalque e a sublimação são colocados como dois destinos efetivamente distintos para a força da pulsão sexual.
A sublimação como destino da pulsão
Assim, é interessante marcar que a partir de “As pulsões e suas vicissitudes”, Freud passa a conceber a sublimação como um dos destinos possíveis da pulsão. Os outros destinos seriam o recalque, a reversão da pulsão ao seu oposto e o retorno da pulsão em relação ao eu.
No entanto, embora neste texto a sublimação seja alçada a esta categoria de destino pulsional, cabe lembrar que o tema não é propriamente desenvolvido. De fato, a análise sobre os outros três destinos da pulsão é bastante exaustiva, mas infelizmente o mesmo não ocorre com o conceito de sublimação.
Conversando com colegas psicanalistas, sempre chegamos à suposição de que, infelizmente, esta questão talvez tenha sido objeto do tal artigo desaparecido...
A sublimação é um mecanismo de defesa do ego?
Por fim, é interessante analisar esta polêmica. Com efeito, embora encontremos por aí inúmeras fontes que consideram a sublimação um mecanismo de defesa do ego, vale dizer que Freud jamais escreveu coisa assim. A autora desta ideia foi sua filha Anna Freud.
Trata-se, aqui, de uma concepção bastante controvertida e não unânime entre os psicanalistas. Segundo Laplanche e Pontalis (1998), por exemplo, é problemático considerar a sublimação como um mecanismo de defesa do ego porque assim reduziríamos todas as nossas criações artísticas e intelectuais a uma mera defesa contra nossos conflitos sexuais. Claro que a sublimação possui esta vertente defensiva, mas talvez seja questionável reduzi-la a isto.
Para estes dois autores, as nossas manifestações artísticas e intelectuais são muito mais do que simples defesas. E, assim, o ato de sublimar pode inclusive levar a uma grande elaboração dos nossos conflitos. Com certeza, muitos de nós já experimentamos a sensação de estar com algum problema ou conflito na esfera sexual e, através de uma atividade sublimatória, conseguir o alívio que tanto buscávamos.
Portanto, mais do que uma simples defesa, a sublimação talvez mereça ser encarada como um verdadeiro motor para a elaboração do mal-estar que tanto nos assola.
Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
Freud, Sigmund. (1905). Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 117-231.
_____. (1909). Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 165-186.
_____. (1915). As pulsões e suas vicissitudes. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 115-144.
Laplanche, Jean. & Pontalis, Jean-Baptiste. (1998). Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
Roudinesco, Elisabeth. & Plon, Michel. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
Algumas frases ditas de forma espontânea podem carregar muito mais do que apenas uma piada. Para Freud, os chamados chistes revelam desejos inconscientes e funcionam como uma via de escape para pensamentos que normalmente seriam reprimidos.
Neste artigo, você vai entender o que são os chistes na psicanálise, qual sua relação com o inconsciente e por que essas tiradas espirituosas dizem tanto sobre nós.
Em linhas gerais, os chistes respondem por tudo aquilo que se relaciona à ordem do cômico. Segundo a psicanálise, através do humor, o sujeito conseguiria manifestar algumas das suas tendências inconscientes, sejam elas agressivas ou mesmo obscenas.
O significado de chiste para a psicanálise
Para a psicanálise, ao contrário do que muitos pensam, os chistes não são exatamente piadas. Trata-se, aqui, de um antigo mal-entendido ocasionado pela problemática tradução do alemão “Witz” (termo empregado por Freud) por “chiste” que, literalmente, significa “piada”. No entanto, a ideia presente no texto freudiano não é exatamente esta.
Nesta perspectiva, destaca-se a opção de Lacan (1998) que, em seu “Seminário 5”, defendeu a tradução de “Witz” por “tirada espirituosa”. Para mim, esta é uma opção mais compatível com as análises de Freud e com os exemplos por ele mencionados. Por este viés, não seria através de qualquer piada que o inconsciente se manifestaria, mas apenas através de um tipo particular delas: as tiradas.
Uma “tirada” pode ser definida como qualquer fala, observação ou comentário mais ou menos espontâneo que através de jogos de palavras, trocadilhos ou neologismos consegue provocar riso nos outros. Em todas as tiradas, é comum haver certa dose de cinismo, ironia ou mesmo sarcasmo. E, de fato, qualquer um de nós reconhece que através de uma tirada, conseguimos dizer uma série de coisas que jamais poderiam ser ditas de outra maneira.
Qual a diferença entre chiste e piada?
Ao contrário do que muitos pensam, quando Freud escreveu sobre os chistes, ele não estava se referindo às piadas de maneira geral. Porém, a apenas um tipo delas: as “tiradas”.
As “tiradas” são espécies de trocadilhos, neologismos ou jogos de palavras que fazemos durante uma conversa e através dos quais conseguimos manifestar algumas das nossas tendências inconscientes.
Freud e o humor
São muitos os exemplos de chistes ou tiradas fornecidos por Freud. A maioria sem graça alguma... Há uns dois ou três mais engraçadinhos, mas mesmo assim, nem tanto.
Lembro de já ter compartilhado com alguns amigos psicanalistas a estranha sensação de não ter rido de quase nenhuma das tiradas apresentadas por Freud (muitas delas, inclusive, sequer entendi...). Como eles também confessaram não ter rido, concluímos que das duas uma: ou Freud era um péssimo piadista ou então há coisas que realmente só tem graça em alemão<. Ou as duas coisas...
Trata-se de algo semelhante ao que acontece quando, por exemplo, assistimos à transmissão do Oscar e também não rimos de exatamente nenhuma piada. E isso enquanto o apresentador conta mil delas no palco e a plateia inteira se esgoela de tanto rir. Deve haver coisas que só tem graça pra eles mesmo...
Enfim, seguem os dois exemplos de tiradas mais ou menos engraçadinhas apresentadas por Freud:
Exemplo 1: A vaidade e os quatro calcanhares de Aquiles
O primeiro é o de dois amigos que conversavam sobre alguém que eles odiavam. Tratava-se de uma figura em evidência e bastante eminente na época. Durante a conversa, um comenta com o outro: “Bem, a vaidade é um de seus quatro calcanhares de Aquiles”.
Obviamente, o amigo riu de tamanha espirituosidade e sarcasmo. Uma tirada bem engraçadinha! Ora, percebe-se que ao referir-se à pessoa nestes termos, o piadista quis igualá-la a um animal, já que somente estes possuem quatro calcanhares.
Segundo Freud (1905/1996), o que ocorreu nesta ocasião foi o seguinte: o piadista possuía um impulso hostil em relação a alguém eminente, mas, por motivos óbvios, tal hostilidade não podia de forma alguma transparecer. Ante esta impossibilidade, ele acaba construindo um dito irônico capaz de expressar seus duros sentimentos.
Exemplo 2: Phocion e o elogio irônico
O outro exemplo é o de Phocion, estadista ateniense. Quando, em certa ocasião, ele termina um discurso e se vê aplaudido pelo povo, vira para os amigos e pergunta: “Qual foi a besteira que eu falei agora”?
Ora, para quem não entendeu a tirada, é necessário explicar que Phocion encarava o povo como propriamente estúpido. Portanto, se o estavam aplaudindo, certamente era porque ele havia dito alguma asneira durante seu pronunciamento. De fato, esta foi uma fala irônica e sarcástica que manifestava todo o seu desdém pela população.
Com a publicação do livro “Os chistes e suas relações com o inconsciente”, em 1905, Freud encerrava a sua trilogia sobre o conceito de inconsciente.
A trilogia se inicia com “A interpretação de sonhos” de 1900 e prossegue com a “Psicopatologia da vida cotidiana” de 1901. Através destas três obras, Freud realizou suas intenções de analisar como o inconsciente se estrutura e funciona, além de também examinar como ele se manifesta.
Nestes três livros, Freud nos mostra as cinco formas de manifestação do inconsciente: os sonhos, os atos falhos, os lapsos, os sintomas e os chistes.
Mas, então, como os chistes se relacionam com o inconsciente?
Para a psicanálise, tudo se passa como se tivéssemos um domínio inconsciente no qual encontram-se algumas das nossas tendências recalcadas. Ou seja, vivemos em uma sociedade que não nos permite dar livre curso a tudo o que desejamos e, neste sentido, não podemos deixar que tais tendências proibidas se manifestem. Trata-se de desejos sexuais e obscenos, ou então, de tendências por demais agressivas que, por motivos meramente morais, não podemos realizar.
Porém, através de um chiste, de um trocadilho ou de um jogo de palavras conseguimos dar livre curso a estas tendências imorais. Com efeito, através de uma tirada espirituosa podemos dizer alguma coisa querendo, no fundo, dizer outra. Assim, algo proibido e inconveniente pode finalmente ser mostrado, conforme atestam os exemplos a seguir.
Uma tirada é uma maneira não tão direta de falarmos sobre coisas imorais, sejam elas sexuais ou agressivas: algo que jamais poderia ser dito de forma nua e crua o pode através de um jogo de palavras engraçado e inteligente.
Alguns exemplos de chistes
Segundo Freud (1905/1996), os chistes ou tiradas mais comuns são os obscenos, os agressivos e os cínicos. Vejamos exemplos dos três:
Chiste ou tirada obscena
No escurinho do cinema
Chupando drops de anis
Longe de qualquer problema
Perto de um final feliz
Se a Deborah Kerr que o Gregory Peck
Não vou bancar o santinho
Minha garota é Mae West
Eu sou o Sheik Valentino
Mas de repente o filme pifou
E a turma toda logo vaiou
Acenderam as luzes, cruzes!
Que flagra, que flagra, que flagra!
(Rita Lee & Roberto de Carvalho – Flagra)
Imaginem uma roqueira brasileira e seu marido, os dois ardendo de paixão, querendo fazer uma música repleta de obscenidades em plena ditadura militar? Não ia dar!
Então, a solução foi apelar para a espirituosidade. E o verso “Se a Deborah Kerr que o Gregory Peck” é uma tirada que entrega tudo! Ora, Deborah Kerr e Gregory Peck são dois atores antigos de Hollywood. E Rita e Roberto fizeram um trocadilho interessantíssimo com o nome dos dois: algo que soa como “Se a Deborah quer que o Gregory peque”.
Assim, através do humor e da espirituosidade, os dois conseguiram manifestar suas tendências obscenas, compondo uma música sobre como deve ser praticar o sexo oral no escurinho do cinema. Neste sentido, os versos “chupando drops de anis”, “perto de um final feliz” e “acenderam as luzes, cruzes, que flagra!” adquirem novos sentidos para além do literal. Sentidos, aliás, engraçadíssimos!
Chiste ou tirada agressiva
Diz pra eu ficar muda, faz cara de mistério
Tira essa bermuda que eu quero você sério
Tramas do sucesso, mundo particular
Solos de guitarra não vão me conquistar
Uh, eu quero você como eu quero
Uh, eu quero você como eu quero
(...)
Longe do meu domínio, cê vai de mal a pior
Vem que eu te ensino como ser bem melhor
(Leoni & Paula Toller – Como eu quero)
Ao contrário do que muitos pensam, esta não é uma música de amor, mas sim, de ódio. E o alvo de tanto ódio é uma ex-empresária do Kid Abelha que, na época, namorava o antigo baterista da banda. Um relacionamento bastante conturbado por ela ficar exigindo que o músico abandonasse seu trabalho para dedicar-se a algo mais sério. Daí os versos “tira essa bermuda que eu quero você sério” e “solos de guitarra não vão me conquistar”.
A tirada está no refrão: notem que não há vírgula em “eu quero você como eu quero”. Ou seja, não se trata de uma exclamação (eu quero você, como eu quero!), mas sim, de uma imposição: eu quero você como eu quero (que você seja...). Uma sacada inteligente e engraçada.
Com efeito, através do humor e aproveitando dos duplos sentidos de algumas expressões, a gente consegue dizer um bando de coisas e ainda passarmos desapercebidos.
Chiste ou tirada cínica
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
(...)
Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
(Ruy Guerra & Chico Buarque – Fado tropical)
“Fado tropical” é super irônica. Trata-se de uma composição do ano de 1973, época na qual a censura perseguia por demais o Chico Buarque e não o deixava gravar quase nada... Então, ele era obrigado a compor músicas repletas de trocadilhos e jogos de palavras com o intuito de burlar os censores.
Esta música, então, conseguiu passar pela censura que, aliás, amou a letra. E isto porque eles pensaram que o Chico estava fazendo um elogio saudosista aos tempos nos quais o Brasil era uma colônia portuguesa. Tal interpretação se fez graças aos versos “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal”, “E o rio Amazonas que corre trás-os-montes e numa pororoca deságua no Tejo” e, sobretudo, “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um império colonial”.
No entanto, não era nada disso. Os elogios do Chico aos portugueses, bem como os anseios para que o Brasil se tornasse um imenso Portugal, se deram porque exatamente naquele ano, a Revolução dos Cravos destruía uma ditadura que já durava décadas... Daí o Chico querer que o mesmo acontecesse ao Brasil! Outra tirada, portanto, super espirituosa, sarcástica e irônica!
Chistes, prazer e laço social
Por fim, é necessário frisar a interessante ideia de Freud (1905/1996) de que os chistes ou tiradas se constituem como verdadeiros promotores de laços sociais.
De fato, há no mínimo três sujeitos envolvidos no contexto de uma tirada: o sujeito que joga com as palavras, aquele que o ouve, além do objeto da ironia ou sarcasmo. E quando esta tirada é replicada por aquele que a ouve ainda podem inserir-se nesta cadeia outros tantos sujeitos.
Portanto, uma rede de laços sociais mais ou menos extensa e feita a partir de um prazer compartilhado. Prazer este promovido por uma espécie de “suspensão” (ainda que momentânea) do recalque que alguns ditos espirituosos conseguem tão bem promover.
Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
Freud, S. (1905). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 8. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 9-231.
LACAN, J. (1999). O Seminário livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.
Trocar palavras, esquecer nomes, se confundir em momentos decisivos — são situações que parecem simples deslizes, mas que podem esconder algo muito mais profundo. Para a psicanálise, esses chamados “atos falhos” são pistas reveladoras sobre desejos inconscientes que tentamos reprimir.
Neste artigo, você vai entender como Freud interpretou esses enganos do cotidiano, por que eles nos causam tanto constrangimento e como, sem perceber, acabamos revelando verdades que gostaríamos de manter escondidas até de nós mesmos.
Freud (1901/1996) define os atos falhos como erros que frequentemente cometemos em nossas falas. Eles ocorrem quando queremos dizer alguma coisa, mas inesperadamente nos enganamos e falamos outra. Só que, a partir deste engano, acabamos falando a verdade.
Os atos falhos ocorrem não apenas no nível daquilo que falamos, também englobando os aparentes enganos em todas as nossas ações.
Vale lembrar que, em algumas edições, os atos falhos podem ser chamados pelo termo mais global “parapraxias”.
Segundo Laplanche e Pontalis (1998) isto se deu pela opção dos tradutores da Standard Edition por criar o termo parapraxis para nele agrupar os mais variados lapsos de linguagem.
Atos falhos curiosos
Quem nunca chamou a namorada pelo nome da ex? Quem nunca cometeu um engano grotesco bem na hora de uma entrevista de emprego? Quem nunca soltou aquela besteira completamente risível na hora de paquerar alguém? Quem nunca falou algo “sem querer” justamente no momento mais inoportuno e, por isso, morreu de vergonha?
Eu mesmo já fiz tudo isso... Lembro-me, por exemplo, dos atos falhos que cometi em plena prova de aula do concurso para ser professor da Unirio. Diante de um juri de cinco psicanalistas, pelas quatro vezes em que tinha que falar o termo “relações sociais”, acabei falando “relações sexuais”. Morri de vergonha, mas passei no concurso...
Outros tantos atos falhos aconteceram em congressos, palestras e inclusive em duas das aulas que dei para a Casa do Saber. E, para além da minha vida profissional, meu cotidiano também é repleto de atos falhos.
Para a psicanálise, estes tantos atos falhos não seriam simples erros ou enganos aleatórios. Pelo contrário, trata-se da manifestação de uma verdade até então impedida de se mostrar. E é justamente por isso que morremos de vergonha quando cometemos um ato falho. Se eles fossem meros enganos não haveria porque sentirmo-nos tão constrangidos.
Os atos falhos são um dos principais temas do livro “Psicopatologia da vida cotidiana”. Nele, a ideia de Freud (1901/1996) é a de que há algumas verdades que todos nós insistimos em negar e a esconder de nós mesmos. No entanto, quando menos esperamos, estas verdades encontram uma brecha e finalmente conseguem se manifestar em nossas falas.
Conforme veremos adiante, estas tantas verdades que insistimos em negar estão ligadas aos nossos desejos inconscientes.
Portanto, um ato falho é:
“um ato pelo qual um sujeito substitui, sem querer, um projeto ou uma intenção a que visa deliberadamente por uma ação ou conduta totalmente imprevistas” (Chemama, 1995, p. 18).
São muitos os exemplos que posso mencionar aqui, pois me considero um verdadeiro colecionador de atos falhos.
Como disse, eu mesmo já cometi muitos e, sinceramente, adoro quando alguém os comete na minha frente. Em todos os atos falhos que já fiz, fiquei extremamente vermelho, ruborizado e quase enterrei minha cabeça no chão de tanta vergonha. Contra a minha vontade, a verdade nua e crua acabou aparecendo e eu me senti quase que desnudo na frente de todos que me escutavam.
Tem um exemplo de Freud engraçadíssimo. Conta ele que, em certa reunião social, um amigo estava de olho em uma convidada de seios belos e super fartos. Lá pelas tantas, o sujeito finalmente tomou coragem e foi chegar na dama. O pretexto que ele utilizou para iniciar uma conversa foi dizer o quanto o centro de Viena estava bonito e enfeitado para a Páscoa. E então ele pergunta à dama: “A senhora já foi ver como o centro de Viena está bonito? Vale a pena! A cidade está toda decotada”.
Assim, dá para imaginarmos a vergonha deste amigo de Freud. A verdade apareceu de forma incisiva: ele não estava nem um pouco preocupado com os enfeites de Páscoa, mas sim, com o decote da jovem dama.
E, aliás, temos mesmo que desconfiar que o protagonista desta situação foi um “amigo” de Freud, já que sempre quando contamos alguns dos nossos atos falhos, jamais confessamos que fomos nós os seus autores...
Outros exemplos de atos falhos
Há outros exemplos que gosto muito.
O primeiro é outro dado pelo próprio Freud (1901/1996). Trata-se do ato falho de uma senhora autoritária que costumava dar todas as ordens em casa. Ela mandava e desmandava, o marido obedecia e os dois iam mantendo o casamento aos trancos e barrancos.
Certa vez, esta senhora conta a Freud que o marido caíra doente e que se consultara com um médico para saber quais alimentos podia comer. Daí ela relata que o médico disse para o marido não se importar com dietas e que ele “poderia comer e beber o que eu quiser”.
Há também alguns exemplos engraçados e cometidos ao vivo diante das câmeras de televisão. Um destes foi o de um político que, lá pelos anos 2000, estava todo encalacrado com escândalos de corrupção. Eram muitas as acusações, uma atrás da outra, e o Senado chegou a montar uma CPI para investigar tantos escândalos.
Até que, certo dia, este político estava ao microfone se defendendo diante de todo o Senado, quando disse: “Eu me declaro inocêncio”.
O escárnio foi generalizado e todos os jornais, revistas e telejornais deram grande destaque a tal constrangimento. Isto porque houve outro político preso semanas antes por corrupção cujo nome era Inocêncio de Oliveira. Claro que tamanho ato falho não pôde ser utilizado como prova ou confissão dos diversos crimes que tal político cometera, porém rendeu grandes risadas a toda a população.
Um terceiro exemplo é o de um ex-presidente nosso. Certo dia, ao elogiar o Exército e criticar as outras instituições brasileiras, falou com todas as letras:
“Para as Forças Armadas, se o militar mente, acabou a carreira dele... O cara não sai sargento! O subtenente não sai tenente! O coronel não sai general! Não tem prescrição pra isso... E nós temos um Chefe do Executivo que mente!”.
Ele queria dizer “Chefe do Judiciário”, mas se enganou... “Chefe do Executivo” era ele próprio!
Este mesmo ex-presidente, certo dia, cometeu outro ato falho, bem na época em que tentava a reeleição. Reeleger-se, para ele, além de uma questão de honra, era também algo fundamental. Isto porque, com um cargo político, ele finalmente se livraria de ser preso pelos tantos crimes que cometera durante seu governo.
Só que a reeleição estava difícil. Seu arqui-inimigo político estava com boa vantagem em todas as pesquisas e era bem provável (tal como efetivamente aconteceu) que ele ganharia esta batalha.
Daí, ao final de um debate entre os dois, e diante das câmeras de televisão da maior emissora do país, o candidato à reeleição diz: “Muito obrigado, meu Deus! E se essa for a sua vontade, estarei pronto para cumprir com mais um mandato de deputado federal”.
A risada foi geral! Seu desespero era tanto que ele estava até topando o cargo de deputado só para não ser preso...
Por fim, também ficou famoso o ato falho de uma pastora durante um culto:
“Na casa do meu marido, eu tinha tudo o que eu queria. Ele me dava tudo. Ele me dava joias, ele me dava presentes, ele me vestia, ele me comia, oh, ele me dava de comer...” — e por aí a pastora seguiu elogiando o marido... Abafa o caso!
Atos falhos nas ações
Há também os atos falhos que ocorrem no domínio das nossas ações. Quem nunca se confundiu e ao invés de mandar uma mensagem super sexy para o amante acabou mandando para o pai ou para a mãe? Quem nunca se enganou sobre o dia da semana e acabou não realizando os compromissos daquele dia? Quem nunca falou mal do patrão ou do professor sem perceber que ele estava bem atrás e ouvindo tudo?
Fora as tantas crises de riso que somos capazes de ter nos momentos mais inapropriados como enterros, velórios, execuções de hino e nos “um minuto de silêncio”.
Para estas tantas ações, vale o mesmo que foi colocado a respeito dos atos falhos das nossas falas. Aqui também não se trata de meros equívocos ou erros bobos, mas sim, de verdades aparecendo, verdades que insistimos em ocultar de todos e, sobretudo, de nós mesmos.
Um exemplo que se sucedeu com Freud (1901/1996): conta ele que, por seis anos, frequentava diariamente um apartamento que ficava no segundo andar de uma construção. Certa vez, enquanto dirigia-se distraído para lá, ele se pega subindo um lance a mais de escadas. Quando finalmente se dá conta do ato falho, ele percebe que naquele momento estava bastante irritado com uma crítica de um colega seu de que sempre “ia longe demais” nos textos que escrevia.
E, a partir deste ato falho, podemos ter certeza que era verdade o que seu amigo dissera...
Atos falhos e inconsciente
Conforme destacamos acima, Freud (1901/1996) considera os atos falhos como manifestações do inconsciente.
Assim, devemos considerar que, para a psicanálise, todos nós temos um inconsciente, ou seja, um domínio em nosso psiquismo que desconhecemos. Em outros termos, trata-se de ressaltar que todos nós possuímos desejos desconhecidos, fantasias desconhecidas e mesmo características das quais não temos o menor conhecimento.
Mas por que estes tantos desejos, fantasias e características se tornam inconscientes? Segundo Freud (1909/1996) estas tantas tendências acabam se tornando inconscientes por serem incompatíveis com a moral em voga na sociedade. Neste sentido, quando possuímos um desejo tido como imoral, nos defendemos dele recalcando-o, ou seja, tornando-o inconsciente.
Deste modo, o recalque é tido como o mecanismo responsável por tornar inconsciente um desejo imoral. No entanto, há que se alertar para o fato de que tornar um desejo inconsciente não significa matá-lo. Pelo contrário, o desejo continua vivo e à espreita de alguma situação propícia para se manifestar.
E é exatamente isto o que ocorre quando cometemos um ato falho. A tendência inconsciente que insistíamos em negar consegue finalmente uma brecha para aparecer. Quando isso acontece, toda a nossa verdade é escancarada... e na frente de todos! Por isto tanto ruborizamos e nos envergonhamos diante dos nossos tantos “aparentes” enganos:
“O ato falho surge como uma formação de compromisso entre a intenção consciente do sujeito e seu desejo inconsciente, compromisso esse que se exprime por perturbações que assumem a forma de ‘acidentes’ ou de ‘falhas’ da vida cotidiana” (Chemama, 1995, p. 18).
Portanto, cabe destacar que, para a psicanálise, um ato falho nada tem de falho. Pelo contrário, ele é extremamente bem-sucedido em apresentar o desejo inconsciente de forma bastante direta.
Ato falho e escuta clínica
Por apresentarem o desejo inconsciente de forma tão manifesta, os atos falhos consistem em tendências muito privilegiadas pela clínica psicanalítica.
Desta maneira, quando em meio às suas associações livres, um paciente comete um ato falho, o analista jamais deve ignorá-lo. Ou seja, por mais que o paciente argumente que “foi um engano”, que “não quis dizer isso” ou que “eu errei”, o psicanalista não deve se deixar levar por tais desculpas. Pelo contrário, é recomendável que ele peça ao paciente para associar livremente a respeito do ato falho cometido. Com isto, um material muito maior pode acabar sendo trazido para a análise.
Trata-se, portanto, de valorizar os atos falhos na clínica psicanalítica enquanto portadores de um sentido e jamais como erros, enganos ou frutos de desatenções e descuidos. Um ato falho, muitas vezes, acaba revelando uma verdade que analista e paciente há muito vinham procurando. Por isso, a clínica psicanalítica deve em muito valorizá-lo.
Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
Chemama, R. (1995). Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas.
Freud, S. (1901). A psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 6. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-290.
______. (1909). Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 165-186.
Laplanche, J. & Pontalis, J. B. (1998). Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
A psicanálise, também conhecida como “terapia da fala”, é uma teoria e prática clínica que busca, a partir da análise do inconsciente, entender a mente humana.
Embora tenha sido fundada por Sigmund Freud no final do século XIX, outros autores e teóricos contribuíram para que a psicanálise se desenvolvesse até como a conhecemos hoje.
Freud reuniu um grupo de colaboradores, o que resultou na criação da Sociedade Psicanalítica de Viena. Apesar das divergências conceituais, os debates entre ele e seus seguidores foram fundamentais para os desdobramentos da psicanálise.
Vamos agora conhecer alguns dos principais autores da psicanálise, os conceitos elaborados por eles e suas ideias.
Sigmund Freud nasceu em 6 de maio de 1856, em Freiberg in Mähren, no antigo Império Austríaco. Filho de comerciantes de lã, mudou-se ainda criança com a família para Viena.
Em 1873, ingressou na Universidade de Viena para cursar medicina. Interessou-se por biologia e neurociência, com destaque para os estudos sobre o cérebro humano.
Apesar de sua inicial preferência, foi da clínica que nasceu sua principal contribuição: a psicanálise.
Observando pacientes com sintomas histéricos, Freud percebeu que as causas do sofrimento não eram apenas fisiológicas. Aos poucos, distanciou-se dos métodos médicos tradicionais e passou a investigar os conflitos psíquicos.
Os principais conceitos de Sigmund Freud são:
Inconsciente:
O inconsciente é um pilar fundamental da psicanálise, porque é nele que se encontram os conteúdos da mente que escapam à consciência, mas que influenciam nossos pensamentos, comportamentos e relações.
A partir do método da associação livre, o psicanalista auxilia o paciente a encontrar as origens do sofrimento psíquico presentes no inconsciente, possibilitando a transformação de sua jornada subjetiva e pessoal.
Transferência e contratransferência:
Os conceitos de transferência e contratransferência tem grande importância para a psicanálise. A transferência ocorre quando o paciente projeta no analista sentimentos e experiências ligadas a figuras do passado, revelando conteúdos inconscientes.
Já a contratransferência é a reação emocional do analista diante do vínculo estabelecido com o paciente. Embora inicialmente vista por Freud como um obstáculo, passou a ser compreendida como um recurso valioso para compreender o paciente e fortalecer o vínculo terapêutico.
Id, ego e superego:
Estes três conceitos fazem parte da estrutura do aparelho psíquico que Freud construiu na segunda tópica freudiana.
Ego
O ego é a instância psíquica com dimensões conscientes e inconscientes que representa a realidade, formado pelas interações sociais. Atua como instância mediadora entre os impulsos do id, as exigências do superego e a realidade externa.
Uma vez que é responsável pela mediação dos impulsos do id e as exigências do superego, ele substitui o princípio do prazer pelo da realidade.
Id
O id é a instância inconsciente e instintiva da mente, controlada pelo princípio do prazer. Ele representa impulsos, desejos e pulsões, buscando satisfação imediata. Segundo Freud, é a origem de conflitos e sintomas psíquicos, uma vez que abriga conteúdos reprimidos que podem gerar sintomas e conflitos internos.
Superego
Por fim, o superego, considerado por Freud como herdeiro direto do complexo de Édipo. Este é a instância psíquica que se situa entre o consciente e o inconsciente.
Ao passo que ele representa normas, valores e moralidade internalizados ao longo da vida, acaba atuando como um juiz interno dos pensamentos, desejos e ações, punindo desvios com sentimentos como culpa e vergonha. Sendo assim, influencia profundamente o comportamento do indivíduo.
Jacques Lacan
Jacques Lacan (Reprodução)
Jacques Lacan nasceu em Paris, em 14 de abril de 1901. Criado em uma família católica, rompeu cedo com a religião e se interessou por Nietzsche, Spinoza e Freud. Em 1919, ingressou na Faculdade de Medicina de Paris e, em 1927, iniciou seus estudos em psiquiatria no Hospital Sainte-Anne.
Conhecido por revisar e divulgar a obra freudiana, Lacan reformulou a psicanálise a partir da linguística, filosofia e estruturalismo, sendo um dos teóricos mais influentes da psicanálise contemporânea.
Conheça alguns dos principais conceitos de Jacques Lacan:
Inconsciente estruturado como uma linguagem
Segundo Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem.
Influenciado por Saussure, entendeu que o inconsciente segue uma lógica própria, guiada por metáforas e metonímias, manifestando desejos e conteúdos reprimidos em sonhos, atos falhos e sintomas. Assim, não se revela explicitamente, mas como um texto que precisa ser interpretado.
Estádio do espelho
O Estádio do Espelho é um momento no qual a criança é capaz de reconhecer a sua própria imagem refletida no espelho, sendo assim, ela passa a ser capaz de perceber a sua totalidade corporal. Esta é uma etapa fundamental na constituição do sujeito.
Desejo na teoria de Lacan
O desejo, para Lacan, se diferencia do impulso ou da necessidade, porque o desejo lacaniano nunca se satisfaz completamente. Ele não é algo que possuímos, mas algo que nos constitui.
Desta forma, desejo não é algo que possuímos, mas sim algo que nos constitui. Ele é a tentativa de preencher uma falta, um vazio que nunca sana.
Melanie Klein nasceu em 30 de março de 1882, em Viena. Apesar do desejo de cursar medicina, estudou história por limitações financeiras.
Ela teve uma vida pessoal turbulenta, desde uma relação conturbada com a mãe até a perda de vários entes queridos, incluindo seu filho Hans.
Melanie Klein ficou conhecida por desenvolver a psicanálise infantil e ampliar as ideias de Freud. Para ela, os conflitos psíquicos começam mais cedo do que Freud havia indicado, ainda nos primeiros meses de vida.
Alguns dos conceitos mais importantes de Melanie Klein:
Análise do brincar
De acordo com Melanie, brincar é uma das principais formas de expressão do inconsciente durante a infância, assemelhando-se aos sonhos e à associação livre dos adultos.
O ato de brincar permite que as crianças expressem suas emoções, manifestando suas fantasias e desejos inconscientes. Sendo assim, o psicanalista é capaz de interpretar os processos inconscientes da criança.
Relações objetais primárias
As relações objetais primárias se referem aos primeiros vínculos afetivos da criança, sobretudo com a mãe. Para Klein, o primeiro objeto não é a mãe inteira, mas o seio materno.
Sendo assim, a amamentação, além da função nutritiva, é vista como um momento fundamental de interação entre mãe e filho, influenciando profundamente as futuras formas de se relacionar com os outros.
Complexo de Édipo
Melanie Klein fez uma releitura do Complexo de Édipo proposto por Sigmund Freud.
Na visão de Klein, o Complexo de Édipo - a expressão de sentimentos como inveja e ciúme - inicia-se no primeiro ano de vida da criança, portanto, mais cedo do que Freud propôs.
Donald Winnicott
Donald Winnicott (Reprodução)
Donald Winnicott nasceu em 7 de abril de 1896, na Inglaterra. Formou-se em medicina em 1920 e iniciou sua formação psicanalítica em 1927. Durante esse período, vivenciou o conflito entre os seguidores de Anna Freud e Melanie Klein na Sociedade Britânica de Psicanálise. Apesar de adotar uma postura independente, teve maior afinidade com a escola kleiniana.
Winnicott destacou-se por suas contribuições ao desenvolvimento infantil, enfatizando o papel fundamental do ambiente e dos cuidados maternos no amadurecimento emocional saudável da criança.
Conceitos de Donald Winnicott:
Mãe suficientemente boa
Segundo Donald, a mãe suficientemente boa é aquela que é capaz de se adaptar e proporcionar um ambiente seguro e acolhedor para a criança. Portanto, este contexto deve oferecer estabilidade emocional para que o verdadeiro self da criança possa se expressar e o bebê seja capaz de desenvolver a sua autonomia psíquica.
Objeto transicional
De acordo com Winnicott, o objeto transicional trata-se de um item que a criança escolhe para simbolizar a mãe (como um cobertor ou um brinquedo). Este objeto representa um sentimento de segurança, especialmente no momento em que o bebê percebe que a mãe é uma parte separada dele. Sendo assim, ele ajuda a criança a lidar com a fase de transição entre a realidade interna e externa.
Verdadeiro e Falso self
Enquanto verdadeiro selfie representa a autenticidade da personalidade da criança, que se desenvolve a partir de um cuidado adequado e um ambiente seguro e acolhedor, o falso self se manifesta como uma defesa diante de um ambiente inadequado para que o verdadeiro selfie se apresente, porém isso impede a expressão autêntica da pessoa.
Sándor Ferenczi nasceu em 7 de julho de 1893, na Hungria, e iniciou seus estudos em medicina na Faculdade de Medicina de Viena, especializando-se em neurologia e neuropatologia.
Embora colaborador estimado de Freud e ter feito parte de seu círculo íntimo, chegando integrar o “Comitê Secreto”, divergiam em alguns conceitos e práticas.
Freud e Jung também tiveram uma relação inicial de colaboração, mas se separaram devido a diferenças teóricas. Freud via o inconsciente como repressor, enquanto Jung introduziu o conceito de inconsciente coletivo, ampliando o foco. Essa divergência marca um rompimento que impactou profundamente a psicanálise moderna.
Conhecido como enfant terrible, Ferenczi revolucionou a psicanálise introduzindo novos conceitos e um olhar inovador sobre o papel do psicanalista, impactando tanto o campo teórico quanto o clínico.
Alguns conceitos de destaque de Ferenczi:
Elasticidade da técnica
Ferenczi rompeu com a rigidez técnica proposta por Freud e defendeu uma postura mais flexível, empática e responsiva do analista durante a sessão.
Desta forma, o profissional poderia acolher o sofrimento do paciente de forma mais humanizada. Ferenczi acreditava que o método deveria se adaptar ao paciente e não ao contrário.
Transferência e introjeção
Sándor Ferenczi fez uma releitura do conceito de transferência de Freud. Para ele, a transferência era mais do que uma repetição de experiências traumáticas, mas sim uma tentativa de reparação.
Já a introjeção é um processo no qual o paciente internaliza experiências e figuras importantes, assumindo a culpa pelo que aconteceu. Para Ferenczi, este era um mecanismo central do trauma.
Teoria do trauma
Para Sándor, o trauma é mais do que o evento em si, mas também as consequências emocionais da negação ou do silêncio frente ao trauma vivido.
Ele ainda complementa que, para ressignificar o sofrimento, é necessário que haja confiança na relação analista e paciente. Desta forma, uma análise empática seria o caminho para que o analisado encontrasse a cura.
Wilfred Bion, nascido em 8 de setembro de 1897 no Punjab, foi um autor contemporâneo da psicanálise, destacando-se pela sua originalidade teórica sobre o pensamento e as experiências emocionais primitivas.
Na década de 1920, depois de ter contato com as obras de Freud, decidiu estudar medicina na University College London. Influenciado por Melanie Klein, aprofundou suas pesquisas nos processos psíquicos iniciais e na construção do aparelho mental, marcando a psicanálise com novas abordagens e ideias.
Alguns dos principais conceitos de Wilfred Bion:
Teoria do pensar
Segundo Wilfred Bion, a mente se desenvolve a partir da necessidade de significar as experiências emocionais. Esse processo é o primeiro passo da função Alfa, que permite a transformação de emoções brutas em pensamentos.
A partir dessa capacidade de transformação, a mente cria pensamentos e o sujeito se torna capaz de se tornar um pensador.
Função alfa e beta:
A teoria alfa-beta de Bion descreve como a mente processa experiências emocionais. A função alfa transforma essas experiências sensoriais em pensamentos, palavras ou sonhos (elementos alfa).
Quando falha, cria elementos beta, experiências brutas que não podem ser pensadas e podem gerar angústia, e a pessoa acaba projetando-as. Se ausente, o analista ajuda a transformar esses elementos por identificação projetiva.
Identificação projetiva
Para Bion, a identificação projetiva é uma forma de comunicação primitiva, em que o paciente projeta conteúdos brutos no analista.
Sendo assim, o analista, ao acolher e transformar essas projeções, pode devolvê-las de forma mais compreensível. Isso possibilita ao paciente integrar essas partes e desenvolver sua capacidade de pensar.
Obras selecionadas de cada um dos autores da psicanálise para você conhecer
A Interpretação dos Sonhos – Sigmund Freud (1900)
O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu – Jacques Lacan (1949)
A Psicanálise de Crianças – Melanie Klein (1932)
Bebês e Suas Mães – Donald Winnicott (1983)
Thalassa: Um Ensaio sobre a Teoria da Genitalidade – Sándor Ferenczi (1924)
O Aprender com a Experiência – Wilfred Bion (1963)
Este texto pode ter sido um passo importante na sua imersão na psicanálise. Trata-se de um campo com muitos caminhos para você desbravar e mergulhar cada vez mais na compreensão da mente humana.
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PAVÃO, Antônio Carlos. A teoria projetiva da consciência. Revista Simbio-Logias, v. 13, n. 19, 2021.
BION, Wilfred. O conceito de continente e contido. Revista Mineira de Psiquiatria, v. 24, n. 2, p. 44-48, jul./dez. 2022.
WINNICOTT, Donald W.Processos de amadurecimento e ambiente facilitador: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
Investigar a psicanálise é explorar o inconsciente, o sofrimento psíquico e o processo analítico. Ela auxilia a entender como funcionam as abordagens sobre o ser humano, os conflitos internos, desejos e traumas que moldam os comportamentos e emoções, ampliando o olhar do sujeito para si e para o mundo.
Nesse caminho, alguns conceitos são centrais para a compreensão do campo, pois ajudam a entender de modo aprofundado como a lente psicanalítica percebe esses fenômenos. Assim, dominar os conceitos da psicanálise é essencial para quem deseja adentrar esse universo, seja para fins acadêmicos, profissionais ou por interesses pessoais.
Esse guia irá apresentar os fundamentos da psicanálise de forma clara e acessível, trazendo referências clássicas, exemplos e indicações para aprofundamento.
O inconsciente é, talvez, o conceito mais emblemático da psicanálise. Esse pilar foi elaborado por Sigmund Freud, seu fundador, que definiu o inconsciente como a instância psíquica onde se alojam desejos reprimidos, ideias censuradas e conteúdos que escapam à consciência.
Ao investigar sobre a histeria e sobre o ato de sonhar, lembrar e relatar os sonhos, Freud percebeu que havia algo atuando fora da consciência, que influenciava diretamente os pensamentos e os comportamentos humanos. Assim, o inconsciente seria responsável por revelar as questões que mais foram reprimidas internamente pelo sujeito.
Repressão
A repressão (ou recalcamento) é o mecanismo pelo qual conteúdos inaceitáveis para o consciente são excluídos da consciência e empurrados para o inconsciente. Freud desenvolveu esse conceito a partir do estudo de pacientes com histeria, ao perceber que lembranças traumáticas eram recalcadas e retornavam em forma de sintomas.
Assim, Freud identificou a repressão como um motor da neurose, pois ela denunciaria um processo de adoecimento. Esse processo estaria ligado ao conflito entre o desejo e as exigências da realidade ou da moralidade.
Clinicamente, compreender o que foi reprimido pode ajudar a aliviar o sofrimento e trazer sentido ao sintoma.
Outros conceitos centrais para a psicanálise, trata-se da transferência e da contratransferência.
A transferência é o fenômeno pelo qual o paciente desloca para o analista experiências, sentimentos e desejos inconscientes que originalmente pertenciam a figuras significativas da infância, como os pais ou cuidadores. Freud a considerava um “campo de batalha”, mas também a chave da análise.
Já a contratransferência se refere às reações emocionais do analista diante do paciente. Inicialmente considerada um obstáculo, a contratransferência passou a ser vista como uma valiosa ferramenta de análise, desde que o analista esteja atento a suas próprias emoções e reações.
Na psicanálise, a pulsão é compreendida como um impulso energético entre o corpo e a mente, que busca aliviar a tensão interna. Ela está entre o somático e o psíquico, não sendo uma necessidade fisiológica, mas um motor de desejo. As pulsões têm fonte corporal, mas se expressam na mente como um empuxo em direção à satisfação.
Freud as distinguiu em pulsões de vida (Eros) e pulsões de morte (Thanatos). Enquanto a primeira teria relação com a união e a preservação da vida, a segunda apontaria para a repetição, a destruição e o retorno ao inorgânico. A segunda, em particular, criou bases para entendimentos sobre a agressividade, sadismo, masoquismo e psicopatologia.
Discutida na obra Além do Princípio do Prazer (1920), a teoria das pulsões é crucial para entender comportamentos compulsivos e autodestrutivos.
Em 1923, Freud propôs um modelo de aparelho psíquico: Id, ego e superego.
Para ele, o id seria uma espécie de reservatório das pulsões, onde habitam os desejos inconscientes, regidos pelo princípio do prazer. Em outras palavras, o id é a fonte dos impulsos inconscientes.
Já o ego, é a instância mediadora entre o id, o superego e a realidade, buscando satisfazer os desejos de maneira social e moralmente aceitáveis.
O superego, por sua vez, representa a internalização das normas e proibições sociais - entre elas, parentais —, operando como um juiz moral.
Esse modelo permite entender conflitos psíquicos complexos, por exemplo, quando o desejo do id (impulsos) é bloqueado pelo superego (instâncias morais), pode surgir sentimentos e sintomas como culpa.
Complexo de Édipo
Inspirado na tragédia de Sófocles, Freud formulou o Complexo de Édipo para explicar a estruturação do desejo e da identidade sexual na infância.
Analisando o desenvolvimento infantil a partir de casos clínicos, Freud observou a manifestação do desejo, sobretudo, de meninos, sobre o genitor do sexo oposto, ou seja, a mãe, vendo o pai enquanto um obstáculo.
Para ele, esse conflito gera angústia na criança e precisa ser resolvido para que ela avance em seu desenvolvimento psíquico. A resolução do Complexo de Édipo se daria a partir da renúncia ao desejo incestuoso e a identificação com o genitor do mesmo sexo, o que permitiria a internalização da autoridade e dos limites social e moralmente estabelecidos (superego).
Resistência
O conceito de resistência tem relação com as estratégias de autopreservação do inconsciente. Trata de tudo aquilo que, de forma inconsciente, impede o sujeito de acessar seus conteúdos reprimidos. Essa resistência pode se manifestar por meio da recusa, do silêncio, da evasão, do esquecimento ou da racionalização.
Para alguns estudiosos, a resistência é considerada um obstáculo à associação livre de ideias, pois impede que o paciente não permaneça aberto a falar tudo o que vier à mente no processo analítico. No entanto, é justamente a resistência que revela o ponto exato onde o inconsciente se recusa a se mostrar.
“Só quando a resistência está em seu auge é que pode o analista, trabalhando em comum com o paciente, descobrir os impulsos recalcados que estão alimentando a resistência; e é este tipo de experiência que convence o paciente da existência e do poder de tais impulsos” (Freud, 1914/1996, p. 202).
Sintoma
Para a psicanálise, o sintoma não é apenas um sinal que denuncie uma doença, mas uma forma de expressar um conflito inconsciente, um desejo recalcado. Ele tem um valor simbólico e pode ser interpretado como uma mensagem a ser decifrada.
Em “Inibição, sintoma e angústia” (1926/1980), Freud descreve o sintoma como “um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado jacente; [o sintoma] é uma consequência do processo de recalcamento” (Freud, 1980, p. 112).
Enquanto Freud percebe o sintoma como fundamentalmente relacionado ao sentido, Lacan o identifica (sinthoma) a partir da linguagem e do processo interpretativo. Assim, para o segundo, o sintoma revelaria a relação do sujeito não apenas com o inconsciente, mas também com o Outro e com o Real a partir da sua dimensão simbólica.
O que a experiência analítica nos ensina em primeiro lugar é que o homem é marcado, é perturbado por tudo aquilo a que se chama sintoma, na medida em que o sintoma é aquilo que o liga aos seus desejos (Lacan, 1992, p. 262-263).
Sonhos
Freud afirma que os sonhos são realizações disfarçadas de desejos inconscientes. Eles funcionam como uma via privilegiada de acesso ao inconsciente, pois dão forma ao que escapa do discurso racional.
Em “Interpretação dos Sonhos” (1899/1900), Freud os identifica como uma “realização disfarçada de um desejo reprimido” (Freud, 1900, p. 45) que não tem relação com os sonhos que se sucedem após eventos traumáticos. Estes últimos estariam mais relacionados à compulsão à repetição, do que ao desejo.
Definir o conceito de narcisismo é um desafio, na medida em que essa discussão percorre toda a teoria freudiana, sofrendo alterações e aprofundamentos ao longo do tempo.
Para a psicanálise, o narcisismo se refere às manobras da libido que o sujeito faz sobre si mesmo. Diferenciado por Freud como narcisismo primário (infantil) e secundário (retorno do investimento do outro para si), o conceito é central para entender as relações de autoestima e idealização.
O narcisismo primário é uma herança do ideal narcísico dos pais. A criança passaria a ocupar o lugar do que não foi vivido pelos seus cuidadores, cabendo a ela realizar os sonhos e projetos que estes foram obrigados a renunciar. Já o narcisismo secundário teria relação com um refluxo da libido para o próprio eu enquanto sujeito. Em outras palavras, seria o retorno ao eu dos investimentos feitos anteriormente.
“O narcisismo não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo da pulsão de autoconservação, do qual justificadamente atribuímos uma porção a cada ser vivo” (Freud, 1914/2010, p. 14-15).
O termo “narcisismo” deriva do mito grego de Narciso, elaborado na obra Metamorfoses, de Ovídio. Na história, Narciso foi um jovem de muita beleza que se apaixonou pelo seu próprio reflexo na água - por isso a relação com o termo.
Associação livre
A associação livre é uma técnica que consiste em permitir que o paciente fale livremente, dizendo tudo o que vier à mente. Para Freud, essa é a principal via de acesso ao inconsciente, pois é um espaço onde o discurso se manifesta, e o analista pode ouvir além do que é dito diretamente.
O analista, por sua vez, escuta essas associações em busca de lapsos, contradições e repetições. Assim, a técnica é capaz de revelar o modo como os significantes se encadeiam no discurso e permite interpretar os efeitos de sentido que emergem no processo.
Já a repetição é um fenômeno pelo qual o sujeito revive experiências passadas, especialmente traumas que não foram elaborados. Ao analisar casos clínicos, Freud observou esse padrão em pacientes que, em vez de recordar, repetiam certas situações, mesmo que dolorosas.
Para ele, esse gesto estaria ligado à compulsão à repetição — conceito apontado na obra Além do Princípio do Prazer (1920).
“Uma vez que nenhuma dessas situações que o paciente repete em transferência poderia, no passado, propiciar-lhe prazer, seria de supor que esses elementos hoje tenderiam a emergir como recordações ou em sonhos, causando um desprazer menor do que quando se atualizam na transferência como se fossem novas experiências” (Freud, 2006/1920, p.146-147).
Ato falho
O conceito de ato falho é uma manifestação interessante de ser investigada pela psicanálise. Erros aparentemente banais, como esquecimentos, trocas de palavras, revelariam conteúdos inconscientes, pois a fala “trocada” denunciaria um sintoma.
Para Freud, o ato falho seria uma forma de “tomar conhecimento do que foi reprimido” (Freud, 1923-25/2011, p. 250), sendo caracterizada pelo movimento do sujeito em revelar, negativamente, algo que se encontra recalcado.
Assim, esses “pequenos deslizes” revelariam desejos, resistências e conflitos. Na clínica, a atenção aos atos falhos ajuda a compreender a dinâmica psíquica do inconsciente.
Formas fundamentais de funcionamento psíquico (neurose, psicose e perversão)
Para Freud, a psique humana se organiza a partir de três princípios fundamentais: neurose, psicose e perversão. Cada uma corresponde a um modo de lidar com o desejo, o recalque e a realidade.
A neurose (histeria) teria relação com desejos proibidos não aceitos pela pessoa. Então, ela empurra os desejos para o inconsciente (recalque). No entanto, esses desejos voltam disfarçados em forma de sintoma: ansiedade, fobia, insônia, entre outros. Assim, a neurose estaria ligada à repressão e à formação de sintomas.
Já a psicose (paranóia), trata da recusa da pessoa em aceitar alguma parte da realidade. Em vez de reprimir ou processar o acontecimento, ela expulsa da mente essa realidade (recusa). Isso faz com que ela crie uma nova realidade, através de delírios e alucinações.
A perversão (fetichismo), por sua vez, envolve a manutenção de desejos proibidos, sem que a pessoa queira abrir mão deles. Em outras palavras, o sujeito tem desejos proibidos e finge que o limite (castração) não existe, então busca encontrar as vias para satisfazer o desejo sem culpa.
Conclusão: conceitos fundamentais da psicanálise e sua importância
Entender os conceitos da psicanálise é mergulhar em uma linguagem que dá forma ao sofrimento humano, aos desejos, conflitos e modos de existir. Mais do que teorias, esses conceitos estão vivos na experiência analítica e na escuta do outro, revelando a singularidade de cada sujeito e a complexidade de sua vida psíquica.
Esses conceitos oferecem ferramentas para interpretar os impasses da vida e para pensar as subjetividades. Por isso, a psicanálise continua sendo um campo vivo, provocativo e cada vez mais necessário para quem deseja compreender o ser humano.
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FREUD, S. (1920). Além do Princípio do Prazer. In: Escritos Sobre a Psicologia do Inconsciente. Tradução Luis Alberto Hanns (Org). Rio de Janeiro: Imago, 2006. v. 2, p. 123-192.
FREUD, S. (1914). Introdução ao narcisismo. In: ___. Obras completas. São Paulo: Companhia das letras, 2010. Vol. 12.
FREUD, S. (2011) O Eu e o Id, Autobiografia e outros textos In: Sigmund Freud, Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, v XVI. (Obra Original publicada em 19223-1925)
FREUD, S. (1996). Recordar, repetir e elaborar. In: ______. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1914.
LACAN, J. (1992). O seminário livro 8: a transferência Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Original publicado em 1960-1961).
Você já parou para pensar que há forças dentro de você das quais nem sequer tem consciência, mas que influenciam suas escolhas, seus medos e seus desejos mais íntimos? Para a psicanálise, esse território oculto da mente tem nome: inconsciente.
Neste artigo, vamos explorar o que é o inconsciente segundo Freud — sua maior descoberta —, entender como ele se manifesta por meio de sonhos, atos falhos, sintomas e esquecimentos, além de conhecer a relação entre o inconsciente e o recalque, suas diferenças em relação ao pré-consciente e ao consciente, e as contribuições de Jung com a ideia do inconsciente coletivo.
O termo “inconsciente” significa literalmente “aquilo que é desconhecido” (“consciência” em latim significa “conhecido” e o prefixo “in”, neste caso, dá a ideia de negatividade). Ele é tido como a maior descoberta de Freud e principal conceito da psicanálise.
Quando Freud postulou que todos nós possuímos um inconsciente ele considerou, portanto, que todos nós nos desconhecemos. Ou seja, possuímos desejos, fantasias, características ou mesmo traumas que sequer conhecemos. No entanto, estes tantos desejos, fantasias, características ou traumas influenciam nossa vida de maneira crucial.
Freud (1900/1996) postulou o conceito de inconsciente muito cedo, já em sua primeira obra, o livro “A interpretação de sonhos”.
Tal postulação se deu em virtude dos mais de vinte anos de experiência e de tratamento com suas histéricas. Em linhas gerais, as histéricas eram mulheres que sofriam de alguns sintomas de conversão, ou seja, dores e paralisias corporais sem que nada de anatômico ou fisiológico as explicasse.
Por exemplo, era muito comum que uma histérica ficasse surda. Neste caso, os médicos faziam nela os mais variados exames e não encontravam quaisquer lesões ou defeitos que justificavam aquela surdez. Pelo contrário, todo o seu organismo funcionava de modo absolutamente normal: os ouvidos, as inervações, os órgãos interiores, o cérebro... E por isto nenhum médico conseguia explicar como essa histérica veio a ficar surda.
Tal explicação só veio com Freud. Através da análise dos mais variados casos, ele finalmente descobriu que esses sintomas de conversão eram manifestações de desejos inconscientes e, portanto, desconhecidos às histéricas.
Alguns exemplos de casos clínicos de pacientes histéricas de Freud
Como ilustração, há o famoso caso de Elisabeth von N. (Breuer & Freud, 1895/1996), paciente de Freud que sentia inexplicáveis dores na perna, às vezes chegando mesmo a paralisá-las. Em suas associações livres com Freud, a paciente descobriu que possuía um forte desejo pelo cunhado, mas que, de forma alguma, conseguia “dar um passo a frente” (segundo suas palavras) para conquistá-lo. Desta maneira, a impossibilidade de “dar esse passo à frente” era, de alguma forma, simbolizada na paralisia de suas pernas.
Há também o caso de Dora (Freud, 1905a/1996), histérica que, dentre vários outros sintomas, possuía fortes dores na região do abdômen. Em sua análise com Freud, ela reconheceu-se apaixonada pelo melhor amigo de seu pai, o Sr. K.
Certo dia, este senhor deu-lhe uma investida e a jovem prontamente o recusou. Porém, exatos nove meses após esta cena, ela veio a sentir as benditas dores no abdômen, como se elas representassem a simulação de um parto. Nesta medida, Dora veio a descobrir o quanto lamentava-se por ter recusado as investidas do Sr. K.
Assim, através da análise de sucessivos casos, Freud confirmou a existência de desejos inconscientes em todos os seus pacientes. Mas por que estes desejos se tornam inconscientes?
Freud (1909/1996) demonstra que alguns dos nossos desejos acabam se tornando inconscientes por serem incompatíveis com as regras morais. Segundo ele, nós vivemos em uma sociedade governada por uma “moral sexual civilizada”, ou seja, uma moral que atinge e critica basicamente a nossa vida sexual.
Tal moral reconheceria como corretos apenas os desejos sexuais genitais e heterossexuais, de preferência, direcionados ao contexto matrimonial. Portanto, quando algum dos nossos desejos escapa a esta regra, ele ficaria condenado a tornar-se inconsciente através do processo de recalque.
Nesta medida, o recalque é definido como uma defesa frente à nossa sexualidade. Ele consiste, basicamente, em fazer com que um desejo consciente venha a se tornar inconsciente, ou seja, desconhecido para nós.
No entanto, é necessário frisar que recalcar um desejo sexual não significa matá-lo. Pelo contrário, o desejo passa a se tornar apenas desconhecido. Porém, ele continua vivo dentro de nós, à espera de alguma uma ocasião oportuna para manifestar-se.
Mas, então, como os nossos desejos inconscientes conseguem manifestar-se?
Como o inconsciente se manifesta?
Segundo Freud, nossos desejos inconscientes manifestam-se de cinco maneiras diferentes: nos sonhos, nos atos falhos, nos esquecimentos, nos chistes ou tiradas espirituosas e nos sintomas. Vejamos cada uma delas.
Sonhos: segundo Freud (1900/1996), “os sonhos são realizações de desejos inconscientes”. Conforme destacamos, os desejos inconscientes são muito imorais e até mesmo perigosos. Por isso nos censuramos tanto e fazemos de tudo para que eles permaneçam inconscientes e jamais surjam na consciência.
No entanto, quando estamos dormindo, deixamos um pouco de nos censurar. Daí tais desejos conseguem disfarçar-se e aparecer nos sonhos. Através deste disfarce, eles conseguem não ser reconhecidos e, assim, burlam a nossa censura. Cabe alertar que é justamente devido a este disfarce que os nossos sonhos parecem tão confusos e disparatados.
Atos falhos: os atos falhos são também por Freud (1901/1996) considerados manifestações do inconsciente. Eles são definidos como erros ou enganos nas nossas falas. Ocorrem quando almejamos dizer alguma coisa, mas inesperadamente nos enganamos e acabamos falando outra. Só que através deste engano, acabamos dizendo a verdade.
Um exemplo citado por Freud é o de um senhor que, em uma reunião social, conversava com uma dama de seios fartos. O papo entre os dois era sobre os preparativos de Berlim para o dia de Páscoa. E, assim, no meio do assunto, ele diz: “A senhora viu a exposição de Wertheim? Está totalmente decotada”.
Esquecimentos: Segundo Freud (1901/1996), nossos esquecimentos também são manifestações do inconsciente. Ou seja, quando esquecemos “algo” é porque desejamos efetivamente esquecer este “algo”, ou então, alguma coisa a ele relacionada.
Um exemplo que aconteceu com o próprio Freud: certo dia, uma amiga pediu-lhe que fosse até o Centro de Viena para comprar-lhe um pequeno cofre. Ele sabia onde ficava a loja em que deveria ir, mas não a encontrou.
Percorreu ruas e ruas inteiras do centro e nada... Até que quando chega em casa, lembra-se que esqueceu de percorrer apenas uma rua da cidade, justamente onde ficava esta loja. Segundo Freud, tal esquecimento se deu porque nesta rua morava uma família da qual ele queria distanciar-se e jamais manter contato.
Chistes ou tiradas espirituosas: De acordo com Freud (1905b/1996), os chistes ou as diversas tiradas que fazemos em nossas conversas também são manifestações do inconsciente. Elas ocorrem quando almejamos dizer algo proibido e imoral e que, portanto, não podemos falar... Mas fazendo um trocadilho ou uma ironia, acabamos por indiretamente dizer e até provocamos risos em quem nos ouve.
Um exemplo também fornecido por Freud é o de um senhor que conversava com um amigo sobre alguém que ele odiava. No meio do papo, ele solta: “Bem, a vaidade é um de seus quatro calcanhares de Aquiles”.
Outro exemplo também mencionado por Freud foi o de Phocion, estadista ateniense. Em certa ocasião, ele termina um discurso para o povo e, então, se vê aplaudido. Como ironia, vira para os amigos e pergunta: “Qual foi a besteira que eu falei agora”? Ora, Phocion encarava o povo como propriamente estúpido e, portanto, se o estavam aplaudindo, certamente era porque ele havia dito alguma asneira durante seu pronunciamento. Com efeito, esta foi uma pergunta irônica e sarcástica que manifestava todo o seu desdém pela população.
Sintomas: De acordo com o que explicamos acima a respeito das pacientes histéricas de Freud, os sintomas também são formas de manifestação de um desejo inconsciente.
Inconsciente e psicanálise
Portanto, a partir de tudo o que foi exposto, podemos dizer que, para a psicanálise, o inconsciente não corresponde apenas “àquilo que foi esquecido”. Pelo contrário, apesar de não termos consciência dos desejos recalcados, eles jamais podem ser considerados inertes ou estanques. Ou seja, não devemos entendê-los como algo que foi retirado da consciência de uma vez por todas, permanecendo inconsciente para todo o sempre.
Para a psicanálise, o inconsciente é ativo. Em outros termos, há todo um dinamismo que lhe é próprio e que faz com que as tendências recalcadas lutem, a todo instante, para novamente se manifestarem na consciência.
A respeito disso, vimos tudo o que se passa no contexto dos sonhos, dos atos falhos, dos esquecimentos, das tiradas e dos sintomas: recalcar um desejo e, assim, torná-lo inconsciente não significa matá-lo ou condená-lo ao esquecimento. Pelo contrário, existe uma luta constante entre o desejo sexual imoral e as tendências que tentam silenciá-lo.
Inconsciente, pré-consciente e consciente
Também é importante marcar que, em seu modelo de aparelho psíquico apresentado em “A Interpretação dos Sonhos”, Freud (1900/1996) o dividiu em três diferentes sistemas: o inconsciente, o pré-consciente e o consciente.
Inconsciente: Conforme está sendo assinalado, o inconsciente corresponde a uma parcela de si que o sujeito desconhece. Todos os desejos sexuais que escapam à moral são recalcados e assim permanecem à espera de alguma forma de manifestação.
Resta mencionar que tudo o que é inconsciente é indestrutível, ou seja, jamais se extingue ou é encerrado. Pelo contrário, nossos desejos recalcados permanecem vivos e ativos para todo o sempre.
Pré-consciente: Já o pré-consciente corresponde às tendências momentaneamente inconscientes, mas que podem voltar à consciência sem maiores problemas. Isto porque elas não são propriamente imorais ou perigosas. São apenas coisas que voluntariamente optamos por esquecer momentaneamente ou não dar muita atenção.
Por exemplo, quando temos planos de fazer uma viagem, mas estamos impossibilitados por quaisquer questões, afastamos este plano do nosso pensamento consciente. Tão logo ressurja a oportunidade, voltamos nosso pensamento para a viagem.
Ou então, quando temos uma tarefa de trabalho, mas queremos aproveitar o final de semana, deixamos de pensar neste dever. Porém, tão logo chega a segunda-feira, voltamos nossa atenção para o trabalho e, assim, a tarefa volta a se tornar consciente.
Consciente: Já a consciência responde basicamente pela percepção do mundo e pelo conhecimento das informações que dele chegam. Cabe à consciência também a função de percepção dos nossos mais diversos sentimentos, dentre eles, os de prazer e de desprazer.
Freud, Jung e o inconsciente: diferentes percepções
Por fim, é necessário frisar que, ao contrário de Freud, Jung vai falar da existência de dois inconscientes: o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo.
De acordo com Silveira (1995), o conceito de inconsciente pessoal é razoavelmente semelhante ao conceito freudiano. Ele diz respeito a determinadas tendências que permanecem inconscientes por serem incompatíveis com a atitude consciente, ou então, por serem demasiado fracas e não disporem de energia suficiente para manifestar-se na consciência.
Já o inconsciente coletivo corresponde às camadas mais profundas da nossa mente. Ele diz respeito a alguns fundamentos estruturais do psiquismo comuns a todos os homens, independente de suas culturas ou raças. Trata-se de uma espécie de herança comum que explica, dentre outras tantas coisas, o estranho fato de indivíduos tão diferentes e tão distantes entre si possuírem desejos, fantasias e comportamentos em muito semelhantes.
Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
Breuer, J. & Freud, S. (1893-1895). Estudos sobre histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-316.
Freud, S. (1900). A interpretação de sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vols. 4 e 5. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 13-650.
_____. (1901). A psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 6. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-290.
_____. (1905a). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 13-116.
_____. (1905b). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 8. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 9-231.
Silveira, N. (2007). Jung: vida e obra. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
A figura do psicanalista desperta cada vez mais interesse, seja por quem busca um processo terapêutico mais profundo, seja por estudantes e profissionais que desejam atuar na área. Mais do que trabalhar uma técnica terapêutica, o psicanalista atua em um campo de conhecimento complexo, que investiga o inconsciente e os caminhos singulares de cada pessoa. Em um mundo cada vez mais marcado pela urgência, a formação em psicanálise defende o tempo da escuta, o valor da palavra e a subjetividade do sujeito.
Neste artigo, apresentaremos um guia completo para entender quem é o psicanalista, o que faz, onde atua, como se dá a sua formação e como é o curso. Além disso, iremos abordar as diferenças entre psicanalista e outros profissionais da saúde mental, apresentando as principais linhas da psicanálise e seus conceitos centrais.
O psicanalista é um profissional que atua na escuta e compreensão do inconsciente humano. Sua prática é baseada na psicanálise, um campo criado por Sigmund Freud no século XIX, que busca entender os processos psíquicos profundos através da fala do paciente e da interpretação de sintomas.
O processo interpretativo do psicanalista se baseia não nos sintomas médicos, mas no que está por trás deles: os desejos reprimidos, os traumas inconscientes, as lembranças ocultas, além da interpretação de sonhos e padrões de repetição.
Diferente de outras profissões da saúde mental, o psicanalista foca em tornar conscientes os processos inconscientes que influenciam os comportamentos e ações. Nesse sentido, o profissional da psicanálise tem o potencial significativo de transformar os modos como as pessoas se sentem em relação às suas experiências e ao sofrimento mental.
O psicanalista conduz um processo terapêutico que auxilia o paciente a acessar conteúdos psíquicos que não estão imediatamente disponíveis à consciência, mas que se manifestam por meio das fantasias, sonhos, lapsos, sintomas e repetições.
O seu trabalho consiste em escutar atentamente, interpretar quando necessário e oferecer novas formas de se pensar e ressignificar experiências. Assim, o que o psicanalista faz é construir um espaço seguro para o processo analítico do paciente.
Ao longo do processo terapêutico construído pelo profissional, a sessão se baseia na associação livre, uma técnica em que o paciente é incentivado a falar livremente o que vier à mente, sem censura.
Durante as sessões, emergem fenômenos como a transferência - quando o paciente transfere sentimentos para o psicanalista, relacionados a outras figuras importantes da vida - e a contratransferência - apontada como as reações emocionais do analista ao paciente.
Esses elementos são importantes para a compreensão da dinâmica interna do paciente, pois revelam padrões inconscientes de relacionamento, desejos recalcados e formas de defesa psíquica.
Nesse cenário, é estruturado o que foi denominado por setting analítico, ou seja, um ambiente, um contexto elaborado cuidadosamente para compor as sessões. O objetivo é construir um espaço confiável, com acordos pré-estabelecidos, como a regularidade nos atendimentos, os horários e o formato.
Através da escuta atenta e das interpretações oferecidas em sessão, o psicanalista ajuda o paciente a dar sentido ao que antes era vivido de forma repetitiva, sofrida ou enigmática. Assim, o paciente desenvolve uma nova relação com sua história, podendo romper com repetições que o aprisionam e construir novos caminhos subjetivos.
👉 É importante lembrar que não existe uma “fórmula” para as sessões de psicanálise. O psicanalista não irá oferecer conselhos ou receitas pré-estabelecidas. Cada encontro é único, guiado pelo discurso do paciente e pelas intervenções pontuais do analista.
Por isso, o objetivo terapêutico não é dar “respostas prontas” ao paciente, mas apresentar interpretações que visam abrir caminhos de reflexão e transformação.
Psicanalistas e psicólogos trabalham com a compreensão da mente humana através da escuta. Eles conduzem o processo terapêutico através da investigação sobre questões emocionais e comportamentais, buscando os mecanismos para contribuir com o bem-estar das pessoas.
No entanto, apesar das semelhanças, eles possuem trajetórias, formações, métodos de trabalho e abordagens teóricas bastante distintas. Além disso, também se distinguem na forma como cada um compreende e aborda o sofrimento psíquico. Vamos, então, entender qual a diferença entre esses profissionais.
O psicanalista utiliza o método psicanalítico, baseado nos princípios criados por Freud. Esse método parte do pressuposto de que muitos dos nossos comportamentos e sintomas têm origem no inconsciente, em conteúdos reprimidos, desejos não reconhecidos e memórias recalcadas. O processo analítico envolve não apenas a resolução de sintomas, mas a compreensão inconsciente sobre esses sintomas.
O psicanalista pode atuar em consultórios particulares, clínicas de saúde mental, instituições de ensino, projetos sociais, entre outros espaços. Sua atuação se estende para além da clínica tradicional, podendo contribuir com equipes multidisciplinares e com a produção do conhecimento científico.
Já o psicólogo pode utilizar de diferentes métodos, a depender da sua formação e escolha teórica. Ele tem liberdade para atuar em clínicas, hospitais, escolas, empresas e instituições, e utilizar de diferentes abordagens terapêuticas, como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), Gestalt, Humanista e a Psicologia Analítica.
Além disso, é comum que psicólogos exerçam a própria Psicanálise, após realizar um processo formativo específico para isso.
Ao contrário da prática psicanalítica, as abordagens mais convencionais da psicologia tendem a trabalhar com problemas mais pontuais e objetivos, na busca por estratégias práticas para lidar com eles, visando um alívio mais rápido do sofrimento e a reestruturação do comportamento.
É importante destacar que para se tornar psicólogo, é necessário a formação de graduação na área de Psicologia, com registro no Conselho Regional de Psicologia (CRP). O processo formativo dura, em média, 5 anos, e é necessário realizar estágios supervisionados para exercer a prática clínica.
Para se tornar psicanalista, primeiramente, é necessário compreender que o processo formativo é apenas o ponto de partida de uma jornada contínua. Dentro da comunidade psicanalítica, há um percurso amplamente reconhecido, que pode nos auxiliar a compreender o que é necessário para essa formação.
Interesse e curiosidade pela escuta psicanalítica:
O primeiro passo é conhecer a psicanálise não apenas como técnica, mas como uma forma de compreender o ser humano. Trata-se de um método complexo de compreensão da subjetividade humana, por isso, exige um olhar crítico, atento e curioso pela abordagem e pelos seus contextos.
Assim, investigar, pesquisar e explorar o mundo da psicanálise é essencial.
Uma sugestão de como esse interesse pode ser estimulado, se dá a partir do contato com assuntos relacionados. Livros, cursos introdutórios, filmes, séries e revistas, podem ser um excelente ponto de partida para conhecer mais sobre a psicanálise.
Vivência teórica e autoanálise:
Mais do que um curso em psicanálise, esse é um processo de transformação. Se tornar psicanalista não apenas envolve o estudo da teoria, mas também o confronto com o próprio inconsciente e o desenvolvimento de uma escuta refinada e profissional.
Nesse sentido, é importante que seja realizada uma vivência da análise, de preferência, por meio da psicanálise. Passar por um processo analítico estando “do outro lado” é essencial não apenas para compreender como acontece, mas para desenvolver a capacidade de fala e escuta.
Escolher um analista de confiança e explorar essa vivência pode trazer resultados significativos para o processo formativo.
Inserção em instituições psicanalíticas:
Muitos profissionais se associam a escolas ou sociedades psicanalíticas para aprofundar os estudos na área. A participação em seminários, congressos, a integração em grupos de pesquisa e a organização de vínculos com a comunidade analítica, também são ótimas vias de acesso à discussões do campo.
Além disso, a busca por cursos reconhecidos e bem avaliados também é necessária, uma vez que a escolha de um instituto ou escola irá influenciar diretamente no processo formativo e na prática psicanalítica.
O processo formativo acontece, tradicionalmente, a partir do tripé psicanalítico: a análise pessoal, a supervisão clínica, e o estudo teórico das obras de Freud, Lacan, Winnicott, Melanie Klein e outros psicanalistas.
Vamos entender cada etapa:
Na análise pessoal, o foco está na experiência subjetiva do futuro analista - ela é a base da psicanálise. Nessa etapa, ele é estimulado enquanto paciente a explorar seus pensamentos, emoções e sentimentos de forma livre e segura. Geralmente é guiada por algum psicanalista da própria escola ou instituição.
Já na etapa da supervisão clínica, o psicanalista em formação é acompanhado em seus atendimentos por outro analista mais experiente. A supervisão visa auxiliar o profissional a aprimorar suas habilidades terapêuticas e sua capacidade analítica.
Por fim, o estudo teórico é a base conceitual da formação. O conhecimento sobre autores e conceitos como inconsciente, id, superego, pulsão, transferência, desejo, fantasia, são fundamentais na compreensão do comportamento humano a partir da psicanálise.
A formação do psicanalista é singular e se dá fora do sistema universitário tradicional. Embora legalmente não se exija diploma acadêmico para exercer a psicanálise, a maioria dos institutos mais reconhecidos costuma exigir uma formação prévia em áreas como Psicologia, Medicina ou outra das ciências humanas.
Com duração de 1 e 4 anos, a carga horária da formação psicanalítica varia de acordo com a escola ou instituto. Mais do que a formalização acadêmica, o interessante é considerar nesse processo a profundidade e o envolvimento subjetivo do futuro analista.
Além disso, os cursos dos institutos mais reconhecidos mantêm critérios éticos e podem incluir entrevistas de admissão, avaliações regulares e orientações sobre limites éticos da prática analítica.
As sessões de psicanálise, normalmente, adotam um tempo padrão de 50 minutos de duração, podendo variar para mais ou para menos. Independentemente da extensão, o mais importante é a frequência e a constância dos atendimentos.
A regularidade - geralmente de uma a três vezes por semana - é essencial para que o processo analítico ganhe profundidade. Do mesmo modo, é necessário para que o inconsciente possa se expressar em suas repetições, associações e silêncios - que também dizem muito!
Os cursos de psicanálise são oferecidos por escolas ou institutos com orientação freudiana, lacaniana, kleiniana, entre outras. Cada linha/escola propõe metodologias de estudo e enfoques específicos.
Entenda:
Psicanálise Freudiana
A escola ou psicanálise freudiana, por exemplo, tem por objetivo analisar as pulsões de vida e morte, as estruturas psíquicas (neurose, psicose e perversão) e a sexualidade. A partir dela, são analisados os sonhos, os padrões e o processo elaborativo do paciente.
Psicanálise Lacaniana
Já a psicanálise lacaniana desenvolvida por Jacques Lacan - também denominada de Escola Francesa -, tem como eixo central a linguagem. Nessa abordagem, a escuta visa captar as rupturas do discurso para tocar o real do sujeito.
Com a linguística, a psicanálise se potencializa para compreender os sentidos de como o paciente se posiciona no mundo e nas relações a partir dos modos como fala.
Psicanálise Kleiniana
Um outro exemplo é a escola ou psicanálise kleiniana, desenvolvida por Melanie Klein, centrada na relação entre figuras parentais e o mundo interno do bebê. Nessa abordagem, são investigadas as fantasias inconscientes originadas desde a primeira infância, ainda nas primeiras interações, sobretudo, maternas.
Nesse sentido, todas as abordagens investigam sobre o inconsciente, mas cada uma o faz a partir de uma lente específica, com foco em diferentes aspectos do psiquismo e em modos distintos de conduzir a escuta clínica.
O que aprendemos sobre o psicanalista: conclusão do guia
Neste artigo, aprendemos como ser psicanalista envolve um compromisso ético profundo com o sofrimento do outro e com uma busca pela autocompreensão do sujeito. Entendemos que a psicanálise não é apenas uma profissão, mas um modo de escutar e compreender o ser humano em sua complexidade.
Se você se interessa pela escuta, pelo inconsciente e pelo cuidado com a subjetividade, a psicanálise pode ser um caminho transformador. E se está em busca de um processo terapêutico profundo, esse método pode proporcionar mudanças e percepções significativas.
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Você sabe o que é o tripé da psicanálise? Neste artigo, vamos explorar os três pilares fundamentais para a formação de um psicanalista: a análise pessoal, a supervisão clínica e o estudo teórico. Vamos entender como surgiu a exigência desse tripé, qual a sua importância para a prática ética da psicanálise e de que forma ele ajuda a construir a escuta analítica. Também vamos discutir os riscos de ignorar essas etapas e as implicações éticas na atuação profissional.
O tripé da psicanálise diz respeito aos três pilares da formação de um psicanalista: análise pessoal, supervisão e estudo teórico. De acordo com Freud (1926/1996), somente uma formação fundamentada nestas três bases tornaria um sujeito apto para ser psicanalista.
A formação psicanalítica
A primeira menção de Freud ao tripé da formação psicanalítica data de 1919 quando publicou o pequeno ensaio “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”. No entanto, foi somente entre os anos de 1925 e 1933 que o obedecimento a este tripé foi oficialmente considerado a condição fundamental para a formação de quem quisesse praticar a psicanálise.
Segundo Roudinesco & Plon (1988), tal oficialização se fez dentro da IPA (Associação Psicanalítica Internacional), primeira instituição de formação de psicanalistas fundada por Freud e seu discípulo Ferenczi em 1910. Ora, como a psicanálise vinha desfrutando de uma imensa fama, era comum que os mais variados tipos de pessoas passassem a praticá-la e a se declararem psicanalistas. E o problema era que muitos destes não tinham a preparação necessária para tal.
Deste modo, era necessário barrar o caminho e a admissão na IPA dos chamados “psicanalistas selvagens”, gíria que na época fazia referência aos maus psicanalistas, espécies de “charlatões” que praticavam a psicanálise. Além deles, seriam barrados os psicóticos, os “gurus” e os líderes religiosos. E, neste contexto, uma longa e polêmica discussão também se fez sobre os que praticavam a psicanálise sem possuir o diploma de médico (Freud, 1926/1996).
O surgimento do tripé da formação psicanalítica
Daí a instituição do tripé da formação psicanalítica: era preciso colocar um mínimo de ordem em tamanha bagunça. E para tal, passou a ser exigido que os psicanalistas em formação passassem por 1) uma análise pessoal; 2) uma supervisão de seus primeiros atendimentos; e 3) se dedicassem aos mais variados estudos teóricos ao longo deste percurso.
Assim, em primeiro lugar, formulou-se a necessidade de um psicanalista passar por uma análise pessoal com outro psicanalista reconhecido pela IPA. Tal procedimento funcionaria como garantia de que ele estava sendo “bem analisado”. E jamais alguém poderia qualificar-se com o título de psicanalista antes de terminar seu processo de análise pessoal.
Em segundo lugar, havia a necessidade de supervisão. Deste modo, após o término de suas análises pessoais e com a devida autorização de seus psicanalistas, os formandos poderiam começar a atender desde que supervisionados por alguém também reconhecido pela IPA.
Por fim, foi exigido que, ao final de todo este percurso, eles apresentassem um trabalho teórico original a ser comunicado em uma das reuniões científicas da IPA. Tal trabalho seria o resultado dos muitos estudos que eles eram obrigados a fazer durante seus processos de análise pessoal e de supervisão.
Com a aprovação deste trabalho teórico, eles poderiam finalmente declarar-se psicanalistas, praticar a profissão e serem reconhecidos pela IPA (Miller, 1989). A seguir analisaremos detalhadamente cada um dos três pilares do tripé da psicanálise.
Análise pessoal: o mergulho necessário no próprio inconsciente
Conforme estamos demonstrando, a primeira base do tripé é a análise pessoal. Em relação a isto, ficou famosa a intervenção de Freud (1910/1996) quando, durante as conferências proferidas nos Estados Unidos, perguntaram-lhe do que precisaria alguém para tornar-se psicanalista. Ele então respondeu que esta pessoa deveria saber “interpretar os próprios sonhos”.
Deste modo, fica marcado ser imprescindível que o futuro psicanalista tenha certo contato com suas tendências inconscientes. Com efeito, a psicanálise é uma prática que se aprende em um divã. De forma que o manejo psicanalítico em si seja algo impossível de ser aprendido apenas em livros, artigos, palestras e mesmo em universidades e cursos de especialização.
Deve o futuro psicanalista passar por um amplo processo de análise pessoal e é apenas através desta experiência que ele conseguirá entender o que se faz em um consultório. Em suma: só entende o trabalho do psicanalista aquele que se propõe a elaborar suas próprias tendências inconscientes.
Aquele que não aceita passar por uma análise pessoal ficaria mais vulnerável a alguns riscos. Dentre eles:
a) O risco de projetar-se em seus pacientes
Com efeito, aquele que não se submete a uma análise pessoal pode acabar projetando demais suas próprias questões em seus pacientes.
Nas palavras de Freud (1912/1996), “quem não se tiver dignado a tomar a precaução de ser analisado (...) cairá facilmente na tentação de projetar (...) algumas das peculiaridades de sua própria personalidade (...) e desencaminhará os inexperientes” (pp. 130-131).
Como exemplo, podemos mencionar o de um psicanalista bastante ciumento e que, assim, corre o risco de acabar sugerindo a um de seus pacientes que ele é traído. Ou seja, pode o paciente contar-lhe que, volta e meia, sua esposa sai com as amigas ou mesmo sozinha, mas que ele não vê qualquer problema nisso. No entanto, o analista ciumento por demais pode acabar reagindo a esta fala com um estranho conselho de “cuidado que numa dessas, você pode acabar perdendo ela para outro homem”.
Ou então o exemplo de um psicanalista que não lida muito bem com alguns de seus desejos homossexuais e que, assim, pode acabar concluindo que um de seus pacientes é homossexual, sem nem escutá-lo direito. Neste caso, o paciente pode contar-lhe sobre uma forte amizade que mantém com outro rapaz e, assim, sem nem escutar-lhe direito, o psicanalista pode concluir haver um desejo sexual nesta relação meramente amigável.
b) O risco de criar algumas resistências em seu trabalho
O processo de análise pessoal também ajuda o psicanalista a elaborar algumas de suas questões que, caso contrário, funcionariam como verdadeiras resistências ou entraves à sua escuta. Em outros termos, algumas questões suas ainda mal-elaboradas poderiam gerar alguns “pontos cegos” que viciariam sua escuta e o impossibilitaria de ouvir o que seus pacientes efetivamente dizem:
“O médico (...) não pode tolerar quaisquer resistências em si próprio. (...) Deve-se insistir, antes, que tenha passado por uma purificação psicanalítica e ficado ciente daqueles complexos seus que poderiam interferir na compreensão do que o paciente lhe diz. (...) Todo recalque não solucionado nele constitui o que foi apropriadamente descrito por Stekel como um ‘ponto cego’ em sua percepção analítica” (Freud, 1912/1996, pp. 129-130).
Como exemplos destas resistências ou “pontos cegos”, podemos mencionar o caso de um psicanalista que, ainda sem ter elaborado suficientemente algumas questões com seus pais, teria sua escuta contaminada por este problema. Assim, supomos que ele culpe seus pais por alguns de seus fracassos na vida. Neste caso, ao ouvir um paciente que se queixa de tristeza, solidão ou timidez, pode o psicanalista apressadamente concluir que os pais deste paciente são os verdadeiros culpados pelo que ele se queixa.
Ou então o exemplo de um psicanalista que tem sua escuta viciada por ainda não lidar muito bem com o fato de um de seus filhos consumir álcool. Neste sentido, ao ouvir um paciente relatar-lhe que seus filhos gostam de sair com amigos para beber (mas sendo isto um mero detalhe em seu discurso e que nem lhe importa muito) pode o psicanalista privilegiar demais este fragmento, ao invés de centrar-se em questões que efetivamente incomodam o paciente.
Supervisão em psicanálise: escutar o que escutamos
A segunda base do tripé é a supervisão. Ela pode ser definida como a prática de um psicanalista (iniciante ou não) de levar seus casos para discuti-los com outro psicanalista mais experiente.
Deste modo, em supervisão, o psicanalista será devidamente alertado a respeito, por exemplo, das projeções que eventualmente faz em seus pacientes, das possíveis resistências ou “pontos cegos” em sua escuta e, sobretudo, se está ou não conseguindo manter com eles uma “atenção flutuante”.
Conforme vimos no texto sobre a associação livre, a “atenção flutuante” corresponde à necessidade de o psicanalista saber escutar seus pacientes sem, a princípio, privilegiar quaisquer aspectos de seus discursos. Trata-se de uma tarefa bastante difícil de ser cumprida e, neste aspecto, uma supervisão pode muito bem auxiliá-lo.
Por exemplo, quando nos concentramos demais em um material que nossos pacientes nos trazem, é certo que negligenciamos outros tantos. E isto não deve ocorrer em nossos consultórios. Caso atuemos desta forma, estaremos arriscados a jamais descobrirmos nada além do que já sabemos. Neste sentido, uma boa supervisão pode ser muito útil.
Fora que quando um psicanalista cede à tentação de privilegiar apenas um ou poucos aspectos dos discursos de seus pacientes, pode-se ter a certeza de que ele assim age em virtude de suas próprias questões.
Por exemplo, vamos supor que um psicanalista possua uma série de problemas com seus irmãos. Neste caso, quando, dentre tantas outras coisas, algum de seus pacientes vem a narrar-lhe uma briga de família, pode o psicanalista acabar centralizando demais sua escuta neste ponto. O problema aqui é que o paciente pode nem ter se importado muito com a briga e efetivamente querer trabalhar outros assuntos. No entanto, o psicanalista mal supervisionado corre o risco de, em virtude de suas próprias questões, acabar privilegiando este aspecto.
Estudo teórico na psicanálise: teoria como sustentação da escuta
Por fim, o terceiro alicerce do tripé da psicanálise é o estudo teórico. De fato, as mais variadas instituições de formação psicanalítica oferecem uma série de cursos, módulos, palestras, debates e grupos de estudos sobre os mais variados temas da psicanálise.
Assim, durante todo o período no qual o psicanalista em formação faz sua análise pessoal e pratica a supervisão de seus primeiros atendimentos, ele também tem a oportunidade de mergulhar em uma série de estudos teóricos.
Tais estudos teóricos podem se dar sobre os principais conceitos da teoria freudiana: o inconsciente, os sonhos, a sexualidade, o narcisismo, as fantasias, a transferência, as pulsões, a angústia e o desamparo, dentre tantos outros.
Há também nas instituições alguns módulos de estudo sobre os principais autores pós-freudianos: Ferenczi, Balint, Winnicott, Lacan, Klein, dentre outros.
E também é interessante notar a presença de muitos grupos de estudos sobre questões atuais cujas discussões em muito auxiliam em nossa prática: debates sobre racismo, homofobia, debates sobre gênero, etc.
Portanto, conclui-se ser necessário o cumprimento deste tripé para que alguém venha a tornar-se psicanalista. Em si, seus três pilares são indissociáveis. Ou seja, de nada adiantaria estudar sem fazer uma análise pessoal ou supervisão. Do mesmo modo, de nada adiantaria apenas fazer supervisão sem uma análise pessoal e um estudo teórico. O mesmo vale para alguém que apenas tenha passado por uma análise pessoal, mas se recusa a estudar e a ser supervisionado.
Deste modo, a formulação deste tripé envolve toda uma discussão ética sobre o trabalho daqueles que se recusam a cumpri-lo. Há muitos, por exemplo, que se dizem psicanalistas apenas por possuírem uma faculdade de psicologia e terem aprendido sobre psicanálise, mas que, por exemplo, nunca se submeteram a uma análise pessoal.
Fora os tantos “psicanalistas selvagens”, “gurus”, líderes religiosos e mesmo “charlatães” que, tal como na época de Freud, ainda existem e fazem seus questionáveis atendimentos por aí.
Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
Freud, Sigmund. (1910). Cinco lições de psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 11. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 15-65.
______. (1912). “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 123-135.
______. (1919). “Sobre o ensino da psicanálise nas Universidades”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 17. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 185-191.
______. (1926). “A questão da análise leiga”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 20. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 175-249.
Miller, Dominique. (1989). “Tão só como sempre estive em minha relação com a causa analítica”. In: Miller, Gérard. Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
Roudinesco, Elisabeth. & Plon, Michel. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
A associação livre é considerada por Sigmund Freud a regra fundamental da psicanálise e desempenha um papel central no trabalho clínico. Neste artigo, você vai entender o que é a técnica da associação livre, como ela surgiu, qual sua importância para o acesso ao inconsciente e como é aplicada nas sessões de psicanálise. Também vamos abordar o papel da escuta do analista, o conceito de atenção flutuante, as resistências que podem surgir ao longo do processo e os principais entraves à escuta psicanalítica.
De acordo com Sigmund Freud (1904/1996), a técnica da associação livre é a regra fundamental da psicanálise. Ela é definida como convite que o psicanalista faz aos seus pacientes para que, durante as sessões, digam tudo o que lhes vêm ao pensamento, sobretudo, o que acharem sem importância ou lhes provoquem dor ou vergonha. Através desta técnica, Freud conseguia chegar mais facilmente às tendências inconscientes que tanto lhes causavam sofrimento.
Como surgiu a técnica da associação livre de Freud?
É difícil precisar o momento em que ela surgiu. De fato, mesmo enquanto praticava a sua auto-análise, Freud (1900/1996) já se servia da técnica da associação livre. Assim, visando interpretar seus sonhos, por exemplo, ele pegava um de seus fragmentos e ia associando-o a tudo o que lhe vinha à mente. Ao longo deste trabalho, ele ia descobrindo uma série de desejos inconscientes seus.
No entanto, é comum situar o caso de Emmy von N. (Breuer & Freud, 1895/1996) como aquele no qual a técnica da associação livre foi utilizada pela primeira vez. Freud nos conta que ele costumava falar bastante com esta paciente e até mesmo interferir no livre curso dos seus pensamentos. Até que, certa vez, ela o adverte para que deixasse de intervir a todo instante, de forma que ela pudesse falar à vontade sobre tudo o que lhe vinha ao pensamento.
A associação livre na psicanálise
Apesar de ter sido utilizada desde muito cedo, a técnica da associação livre só vai se constituir como técnica privilegiada da psicanáliseapós Freud abandonar a hipnose.
Como muitos já sabem, Freud iniciou sua prática servindo-se da hipnose, vindo a abandoná-la em alguns poucos anos. Tal abandono se deu por vários motivos. O primeiro foi que a hipnose não era considerada exatamente um método científico e, assim, não desfrutava de muito respeito entre os médicos. O segundo foi que nem todo paciente era hipnotizável e, com isto, Freud deixava de atender uma enormidade deles.
No entanto, o principal motivo que o levou ao abandono da hipnose foi a descoberta de que era possível chegar às tendências inconscientes de seus pacientes mesmo com eles acordados. Bastava que se pedisse que dissessem tudo o que lhes vinha ao pensamento, sem maiores censuras ou restrições. Com isto, a livre associação foi alçada à categoria de regra fundamental da psicanálise (Freud, 1904/1996).
Como funciona a técnica da livre associação?
Conforme destacamos, a técnica da associação livre possibilita que o paciente associe suas ideias de forma livre e sem maiores interferências do analista. Este se limitaria a escutar e a observar aonde as associações vão chegar. De vez em quando, é claro, cabe ao analista fazer algumas perguntas ao paciente, mas sempre com o intuito de melhor estimular suas associações.
Através desta técnica, o paciente consegue, por exemplo, expor seus pensamentos, falar sobre alguns acontecimentos cotidianos e construir um relato sobre aquilo que o faz sofrer. Ele pode também falar de seus conflitos, de seu passado, dos projetos para o futuro e, inclusive, de suas fantasias e ideias de qualquer ordem (Freud, 1904/1996).
Associação livre e o inconsciente
Com efeito, destacamos que a psicanálise parte do pressuposto de que todos nós possuímos desejos inconscientes (desejos dos quais não temos qualquer conhecimento). Segundo Freud (1909/1996), são justamente estes desejos que se escondem por trás de tudo o que nos faz sofrer. Trata-se de desejos sexuais que tiveram de ser afastados da consciência por serem considerados imorais.
Assim, quando um sujeito vem procurar análise, o psicanalista deve com ele trabalhar para trazer estes desejos novamente à consciência. Desta forma, o paciente consegue elaborar seu sofrimento.
De fato, conduzir o material inconsciente à consciência foi considerado o principal objetivo da clínica psicanalítica, pelo menos nos primeiros anos de trabalho de Freud. Para tal, o analista se serviria da associação livre, propondo que seu paciente tudo dissesse e encadeiasse umas às outras as suas associações. Ao longo deste trabalho, acontecia de o paciente perceber em si algumas tendências inconscientes que ele nem desconfiava existir.
À guisa de ilustração podemos tomar o caso de Elisabeth, paciente de Freud, que em muito sofria em virtude de fortes dores na perna. Nesta medida, através da técnica da associação livre, a paciente ia falando, contando sua história, trazendo seu passado e relatando suas mais diversas fantasias e acontecimentos cotidianos.
Até que, ao longo destas tantas associações, ela descobriu possuir os mais ardentes desejos pelo próprio cunhado. Porém, não conseguia “dar um passo adiante” em seus propósitos, justamente, em virtude dos tantos preceitos morais existentes. Deste modo, Elisabeth concluiu que suas dores na perna eram justificadas por seu desejo sexual pelo cunhado aliado à impossibilidade de correr atrás de seus objetivos (Breuer & Freud, 1895/1996).
Cabe agora perguntar: por que quando o analista solicita que o paciente diga tudo o que lhe vem ao pensamento, ele frisa para que não se exclua aquilo que considere sem importância, pareça-lhe sem sentido ou lhe cause dor, vergonha ou mesmo asco? A resposta é: porque assim acredita-se que o trabalho de associação livre consiga driblar a força das resistências.
Como se pode imaginar, não é tarefa muito fácil fazer com que, a partir das associações livres, os desejos inconscientes cheguem à consciência. Isto porque, ao longo das sessões, as livres associações frequentemente se esbarram com algumas forças contrárias à conscientização dos desejos. Freud (1904/1996) denominou estas forças de “resistências”. Vejamos alguns de seus tantos exemplos.
Alguns exemplos de resistências na psicanálise
Tais resistências podem se reconhecer, por exemplo, quando o paciente silencia em meio às suas associações, quando sente dificuldade em dizer o que lhe vem à mente, quando prontamente se recusa a falar, quando falta à alguma sessão ou mesmo quando coloca uma série de empecilhos para o prosseguimento da análise.
Mas há também as situações nas quais o paciente se embaraça em virtude do que iria contar ou sente vergonha a respeito do que está narrando. Inclusive, há as situações nas quais o prosseguimento das associações livres lhe cause desconforto, tristeza ou mesmo dor. Ademais, há o caso nos quais suas associações pareçam não fazer muito sentido. Em todos estes casos, Freud (1904/1996) diz fazer-se presente a força das resistências.
Um último exemplo remete ao caso de quando o paciente deixa de contar algo porque o considera irrelevante. Geralmente, este é mais um dos pretextos que funciona como uma arma das resistências. Nesta medida, é sempre surpreendente observar que aquilo que o paciente julga como pouco importante é justamente o que mais diretamente vai conduz aos desejos inconscientes.
Daí o pedido para que o paciente não exclua de seu discurso o que considere sem importância ou que venha lhe causar tristeza, dor ou embaraço dentre tantos outros sentimentos penosos. De fato, quanto mais as associações provocam embaraço, desprazer ou sejam consideradas sem sentido ou mesmo sem importância, pode-se ter a certeza de que elas estão se aproximando das tendências inconscientes.
A escuta psicanalítica
Freud (1912b/1996) também destaca que ao ouvir as associações livres de seus pacientes, o psicanalista deve manter uma “escuta flutuante”.
Por “escuta flutuante” ou “atenção flutuante”, ele caracteriza uma escuta que não privilegia qualquer elemento das associações livres de seus pacientes. Deste modo, tal como deve acontecer com as associações do analisando, a escuta do psicanalista deve ser igualmente livre. Por isto, há o destaque de que o psicanalista deve tudo ouvir, de forma a não se concentrar – pelo menos à princípio – em quaisquer dos elementos narrados.
Caso o analista se concentre por demais em determinado elemento das associações livres, ele corre o risco de negligenciar outra série de elementos que podem ser importantes para o caso. Além do mais, ao fechar os ouvidos para estes outros elementos, ele periga não descobrir nada além do que já sabe e, com isto, recorrer a graves enganos.
Em relação à escuta flutuante, Freud também coloca que ela deve ser isenta de quaisquer entraves. Dentre eles, os três mais conhecidos são: as concepções teóricas que o psicanalista traz consigo, os diversos preconceitos que ele insiste em manter e também alguns julgamentos seus de qualquer ordem.
Daí a necessidade de o psicanalista do tripé psicanalítico, onde deve fazer uma análise pessoal – além de uma supervisão – para se livrar, ao máximo, destas tendências que prejudicam sua escuta. Ilustremos cada um destes três entraves.
Concepções teóricas
Há, portanto, a necessidade de o psicanalista se esforçar para, de certa maneira, esquecer parte de seus conhecimentos teóricos, pelo menos enquanto escuta seus pacientes. Deste modo, o psicanalista evitaria acabar aplicando aos casos que atende uma teoria conhecida que, talvez, nada tenha a ver com eles.
Um exemplo grosseiro remete a uma possível paciente que chegue ao seu consultório sentindo fortes dores nas pernas e ele presuma que, assim como aconteceu com Elisabeth, ela estaria apaixonada pelo cunhado.
Ou então que, em conformidade com o que aprendeu a respeito do
complexo de Édipo, o psicanalista venha a concluir de antemão que a esposa de um paciente seu seja a substituta de sua figura materna. Assim, sem nem escutar direito o paciente, o psicanalista acaba dizendo-lhe:
“Você provavelmente briga com a sua esposa, igual brigava com a sua mãe”. Ou:
“Você sente ciúmes dela tal qual na infância sentiu ciúmes da sua mãe”.
Preconceitos
Nesta mesma perspectiva, uma análise pessoal aliada a uma supervisão também poderia impedir que determinados preconceitos do analista venham a prejudicar sua escuta. Como ilustrações, há o caso do psicanalista homofóbico que pode vir a achar que seus pacientes homossexuais são relativamente anormais ou
perversos.
Há também o caso do psicanalista extremamente machista que pode estranhar e mesmo criticar algumas atitudes e pensamentos de suas pacientes mulheres. Além do caso do psicanalista extremamente religioso e moralizatório que possa vir a fazer longos sermões aos pacientes que utilizam drogas lícitas ou mesmo ilícitas.
Julgamentos pessoais
Outros exemplos correntes remetem aos próprios julgamentos pessoais do psicanalista que prejudicam sua escuta no caso de não serem bem analisados ou supervisionados. Desta forma, há o caso de uma psicanalista que, por exemplo, sofre por nunca ter conseguido ser mãe e que, assim, tenha dificuldade em escutar os motivos de uma paciente que decidiu abortar uma gravidez indesejada. Ou mesmo o caso de um psicanalista com tendências políticas mais reacionárias e que possa vir a ter dificuldade em escutar alguns comportamentos de seus pacientes com visões mais progressistas.
A partir de tudo o que foi acima colocado, podemos concluir que a atenção flutuante está para o analista assim como a associação livre está para o analisando e que ambas se complementam durante o tratamento (Freud, 1912/1996). Assim como as associações do paciente devem ser livres de preconceitos ou julgamentos, a escuta do psicanalista também o deve ser. E se o analista abre mão de sua atenção flutuante, ele inevitavelmente joga fora todo o proveito que se poderia retirar das associações livres de seus pacientes.
Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
BREUER, J. & FREUD, S. (1893-1895). Estudos sobre histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-316.
FREUD, S. (1900). A interpretação de sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vols. 4 e 5. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 13-650.
______. O método psicanalítico de Freud. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 233-240.
______. (1909). Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 165-186.
______. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 121-133.
Muitas pessoas confundem os papéis do psicanalista e do psicólogo. Ambos os profissionais atuam no cuidado em saúde mental, escutam pacientes e trabalham com questões emocionais e comportamentais. No entanto, apesar das semelhanças na prática clínica, existem diferenças importantes entre eles.
O psicanalista e o psicólogo possuem trajetórias, formações e campos de atuação próprios. Os métodos de trabalho e as abordagens teóricas utilizadas também se diferem, refletindo maneiras distintas de compreender o funcionamento psíquico e de conduzir o processo terapêutico.
Neste artigo, vamos entender o que diferencia o psicanalista do psicólogo, as áreas de atuação, a formação e como eles contribuem para o bem-estar emocional e mental das pessoas.
O psicanalista é um profissional da psicanálise, uma abordagem terapêutica criada por Sigmund Freud. O psicanalista analisa os sintomas, investiga os motivos inconscientes por trás desses sintomas, e busca tratá-los. Além disso, explora questões como a linguagem, os traumas e os sonhos do paciente para acessar conteúdos reprimidos pela psique.
Sua prática é marcada pela abordagem do sujeito a partir das manifestações do desejo, sendo que o objetivo não é a cura em seu sentido biomédico, mas o processo de subjetivação e elaboração psíquica de conflitos pessoais.
O processo analítico na psicanálise costuma ser mais longo, pois analisa questões complexas e subjetivas para o paciente. Nesse processo, a interpretação de padrões de pensamento e comportamento são estratégias centrais para a escuta clínica.
O psicólogo opera para compreender os modos como as pessoas se relacionam com o mundo e com elas mesmas. Na prática, o profissional da psicologia auxilia o paciente a entender os pensamentos, as emoções e percepções, dentro de um contexto de sociabilidade, e elabora soluções para se construir um maior bem-estar.
Embora o processo terapêutico seja mais reduzido a depender do objetivo, a área da psicologia inclui uma multiplicidade de abordagens teóricas e práticas clínicas, o que permite diferentes formas de condução do processo analítico.
Entre as abordagens mais utilizadas, destaca-se a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), focada na identificação de padrões de comportamento disfuncionais e na reestruturação cognitiva para promover mudanças práticas no cotidiano.
Já a Psicologia Humanista valoriza a experiência subjetiva do indivíduo e busca promover seu potencial de crescimento através do vínculo terapêutico. A Gestalt-terapia, por sua vez, é centrada na percepção do “aqui e agora” e na responsabilidade pessoal.
Além disso, muitos psicólogos exercem a própria Psicanálise, após passar por uma formação específica nessa abordagem. Eles encontram nela um campo de aprofundamento teórico e clínico que enriquece a sua prática e amplia os modos de escuta e intervenção sobre o sofrimento humano. Assim, um psicólogo pode se tornar membro de uma escola ou sociedade psicanalítica, que reconhece sua capacitação e atuação na área.
Como Psicólogos e Psicanalistas Entendem a Ansiedade: Um Exemplo
Mencionamos que ambos olham para o sofrimento mental de modos distintos. Mas, como isso acontece?
Um diagnóstico de ansiedade , por exemplo, pode ser analisado por psicólogos a partir de modelos teóricos com foco na função adaptativa ou disfuncional do comportamento ansioso. Na prática, a psicologia irá ajudar a identificar os gatilhos emocionais e a reestruturar os pensamentos ansiosos. Além disso, auxiliará a reduzir os sintomas e ensinar técnicas de manejo emocional, com metas e tempo definidos.
Já para a psicanálise, a ansiedade é interpretada como um sintoma subjetivo, com raízes no inconsciente. Ela denunciaria algum outro aspecto psíquico do sujeito, que precisaria ser analisado profundamente. Na prática, o psicanalista investigaria a relação com traumas, desejos, conflitos e padrões de pensamento e comportamento ansiosos, aprofundando o processo terapêutico.
O que é psicanálise e o que é psicologia?
Antes de aprofundarmos sobre o processo formativo e os campos de atuação, é preciso entender brevemente o que é cada área.
A psicanálise é uma abordagem terapêutica centrada na investigação do inconsciente sobre a personalidade do paciente. Criada por Sigmund Freud no final do século XIX, a terapia psicanalítica investiga o que está fora da consciência, mas que influencia diretamente nos modos de agir, pensar, sentir e sofrer.
Por outro lado, a psicologia é uma ciência que estuda o comportamento humano e os processos mentais. Ela tem por objetivo trabalhar as dimensões cognitivas, afetivas e comportamentais das pessoas, em todas as fases da vida.
O exercício profissional da psicologia acontece por meio de uma formação de graduação universitária, que dura em média, 5 anos. Além disso, para realizar a prática clínica, é necessário realizar estágios supervisionados e se registrar no Conselho Regional de Psicologia (CRP).
Durante a prática, o psicólogo também pode realizar entrevistas clínicas, testes psicológicos e utilizar de outros recursos que auxilie no processo terapêutico.
Já na psicanálise, a formação tem duração de 1 a 4 anos, dependendo da instituição e da carga horária. Além disso, o processo formativo se dá, tradicionalmente, por meio do tripé psicanalítico: análise pessoal, supervisão clínica e estudo teórico. O estudo contínuo das obras de Freud, Lacan, Melanie Klein, Winnicott, entre outros psicanalistas, é fundamental para o desenvolvimento profissional do psicanalista.
Na psicanálise a formação acontece por meio de institutos ou escolas de psicanálise, de forma livre e independente da graduação universitária. Não sendo uma profissão regulamentada por lei no Brasil, a formação psicanalítica não possui conselho e nem exigência de registro profissional.
Embora, legalmente, a formação em psicanálise não exija diploma universitário, a maioria dos institutos mais reconhecidos costuma exigir formação prévia em áreas como psicologia, medicina ou ciências humanas.
Atenção:
É importante destacar que psicanalistas não podem realizar testes ou emitir laudos e pareceres psicológicos. Do mesmo modo, um psicólogo só pode se apresentar como psicanalista se tiver realizado uma formação específica em psicanálise.
A atuação de psicanalistas e psicólogos também acontece de modos distintos, tanto por questões institucionais e legais, quanto pela concepção de saúde e sofrimento mental adotada por cada campo.
Embora ambas possam trabalhar com escuta clínica, seus espaços de trabalho e formas de inserção na sociedade divergem bastante.
O psicólogo pode atuar nas seguintes áreas regulamentadas por lei:
Psicologia Clínica: Oferece psicoterapia individual, de casal, em grupo ou família. Trabalha com diferentes abordagens para promover saúde mental, entre elas, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), Humanista, Gestalt,
Psicologia Analítica e Psicanálise.
Psicologia Jurídica ou Forense: Atua no sistema de justiça, realizando avaliação psicológica em vítimas, réus e seus familiares. Contribui com pareceres técnicos e decisões judiciais, quando envolvem questões subjetivas.
Psicologia Hospitalar: Trabalha em hospitais, clínicas e unidades de saúde no cuidado emocional de pacientes, familiares e equipes profissionais. Auxilia na adaptação de diagnósticos, internações e processos de luto.
Psicologia Educacional ou Escolar: Atua em instituições de ensino promovendo inclusão e desenvolvimento psíquico de alunos. Responde junto a professores e famílias para auxiliar com dificuldades de aprendizagem e relações escolares.
Psicologia Organizacional e do Trabalho: Exerce a prática em empresas e instituições com recrutamento de profissionais. Desenvolve ações de prevenção ao estresse, melhorando a gestão de pessoas e a comunicação.
Neuropsicologia: Investiga a relação das funções cognitivas do cérebro com o comportamento humano. Com base nos estudos das neurociências, a neuropsicologia atua para entender as influências de questões neurológicas sob a atenção, a memória, o raciocínio, as emoções e o comportamento do paciente.
A formação psicanalítica, por sua vez, pode abrir portas para áreas de atuação não convencionais. O psicanalista pode explorar a:
Clínica psicanalítica: Realiza atendimentos individuais, geralmente em processos mais longos e aprofundados. O foco é na investigação sobre o inconsciente através do estudo dos sonhos, das experiências infantis e relações familiares.
Formação de outros psicanalistas: Diversos psicanalistas se dedicam ao processo formativo de outros profissionais da psicanálise. O ensino de cursos livres, a supervisão de atendimentos clínicos e a construção de núcleos de estudos teóricos também integram essa formação.
Produção acadêmica: Atuam na elaboração do conhecimento científico, participando de eventos, congressos e espaços de discussão intelectual. Produzem livros e artigos, além de ministrar aulas e palestras, com o objetivo de aprofundar as investigações nos estudos sociais e culturais sob o olhar psicanalítico.
Interlocuções profissionais: A formação psicanalítica pode ser somada a outras formações, como psicologia, medicina com foco em psiquiatria, filosofia, literatura, sociologia e outras áreas das humanidades.
A psicanálise também tem ganhado espaço em clubes de leitura, atendimentos populares e projetos culturais, sendo utilizada como ferramenta crítica para analisar fenômenos contemporâneos.
O programa de expansão em teoria e clínica psicanalítica da Casa do Saber é especialmente desenvolvido para profissionais e estudantes de psi que buscam aprofundar seus conhecimentos em psicanálise.
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Tanto a psicanálise quanto a psicologia oferecem caminhos legítimos e potentes para o cuidado em saúde mental.
Para quem deseja seguir carreira, a psicologia oferece possibilidades de atuação em múltiplas áreas, sendo assegurado pelo Conselho (CRP). Já a psicanálise, oferece um campo de atuação mais flexível e livre em termos profissionais, mas que exige comprometimento, estudo contínuo e envolvimento com instituições formadoras.
Já para quem busca atendimento, a escolha entre um psicólogo e um psicanalista pode depender do tipo de abordagem que a pessoa deseja experimentar. Diferentes linhas teóricas podem oferecer caminhos igualmente valiosos e profundos. Por isso, ao procurar um psicólogo, é recomendável se informar sobre a abordagem utilizada para entender se ela está alinhada com o que se busca para o processo terapêutico.
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